Etrúria, o Berço da Europa, segundo Werner Keller. Sarcófago Etrusco, 520 a.C. |
«A noção elaborou-se cerca de 1853 e permanece presente em Marx até ao fim da sua vida. Engels em Anti-Dühring (1877), em A Época Franca (1882) retoma-a e enriquece-a, mas ela desaparece em A Origem da Família, da Propriedade Privada e do Estado (1884). Engels deixa-a nas edições dos Livros II (1885) e III (1894) de O Capital que faz publicar após a morte de Marx. /A elaboração mais desenvolvida deste conceito de Marx encontra-se num manuscrito de 1855-1859, inédito até 1939, intitulado Formen die der Kapitalistischen Produktion vorhergehn, publicado em Grundrisse der Kritik der Politischen Ökonomie. O texto Formen constitui o esquema mais complexo de evolução das sociedades que Marx nos deixou. Deverá por conseguinte ser confrontado com A Origem da Família de Engels, escrita vinte e cinco anos depois. /Esta noção foi elaborada a partir de uma reflexão sobre documentos britânicos que descreviam as comunidades aldeãs e os Estados da sociedade indiana do século XIX. A essa informação acrescentaram-se leituras de narrativas de viajantes relativas ao Médio Oriente e à Ásia Central. Um facto impressiona Marx e Engels: a ausência de propriedade privada do solo. No manuscrito Formen, Marx descreve sete formas diferentes da apropriação do solo, quer dizer, da relação dominante de produção entre os homens nas sociedades pré-industriais. Estas formas sucedem-se até ao modo de produção capitalista, no qual a separação do trabalhador das condições objectivas da produção é radical. O texto de Marx apresenta-se por conseguinte como um esboço da evolução da propriedade da terra no seio da humanidade e sobretudo na Europa e é um fragmento separado da análise das formas de acumulação primitiva. Essa evolução vê suceder: a comunidade primitiva, o modo de produção asiático, o modo de produção antigo, o modo de produção esclavagista, o modo de produção germânico, o modo de produção feudal, o modo de produção capitalista.» (Maurice Godelier)
Este é mais um texto programático que se segue à tentativa não-partilhada de sistematizar o panteão inca: o conceito de modo de produção asiático, forjado por Marx em 1853, permite tematizar a religião inca, dando-lhe uma certa unidade. Ontem, na caixa de comentários do post anterior, teci algumas considerações sobre a religião inca, vacilando quanto à classificação dos seus deuses. Alfred Métraux utilizou o conceito de modo de produção asiático (ou, como lhe chamou Jiro Hoyakawa em 1934, modo de produção tributário) para caracterizar a sociedade inca, e sobretudo a civilização mochica - uma sociedade hidráulica no sentido de Wittfogel! - que a precedeu, mas não soube apreender as funções sociais da religião no seio de um tal modo de produção, encarado desde logo como uma passagem da comunidade primitiva para uma sociedade de classes, sendo levado a opor a religião oficial do Império Inca aos cultos das etnias subjugadas pelos incas, donde resulta uma espécie de sincretismo religioso. Hoje, após meditar os textos de Jean Chesneaux, Maurice Godelier e Karl Wittfogel, entre outros, descobri uma outra via para sistematizar o panteão inca em função de dois eixos fundamentais: o eixo das relações da religião com a natureza que não sofreu alterações significativas, e o eixo das relações da religião com as relações sociais que sofreu profundas modificações, tanto no domínio da unidade do grupo como no domínio da unidade entre o indivíduo e o grupo. Segundo Godelier, «a própria essência do modo de produção asiático é a existência de comunidades primitivas onde reina a posse comum do solo e organizadas, parcialmente ainda, sobre a base das relações de parentesco, e de um poder de Estado que exprime a unidade real ou imaginária destas comunidades, controla o uso dos recursos económicos essenciais e se apropria directamente de uma parte do trabalho e da produção das comunidades que domina». Ou, nas palavras de Jean Chesneaux, o modo de produção asiático caracteriza-se «pela combinação da actividade produtiva colectiva das comunidades aldeãs e pela intervenção económica de uma autoridade estatal que explora estas comunidades ao mesmo tempo que as dirige; esta exploração, de carácter global e não individual, foi denominada por Marx de "escravatura generalizada"». Antes da Conquista Inca, o modo de produção de numerosas tribos andinas assentava na produção de tubérculos no interior da comunidade aldeã local - a ayllu, onde residia um grupo de parentesco de linhagem, cujo chefe de aldeia - o curara - era o primeiro beneficiário da entreajuda comunitária. A propriedade da terra era comunitária: parcelas da terra eram redistribuídas periodicamente entre famílias restritas, cada uma das quais não podia transformar o direito de uso em forma de propriedade privada, separada da propriedade comum. Além disso, o trabalho também assumia uma forma comunitária: os aldeões ajudavam-se reciprocamente, de modo a cumprir as várias tarefas produtivas, cultivando as terras comuns para manutenção dos túmulos das divindades e dos chefes locais. Porém, quando foram conquistadas pelos incas, estas comunidades aldeãs sofreram uma profunda transformação: uma parte das suas terras foi expropriada e tornou-se domínio do Estado e da Igreja Incas. As relações de produção foram transformadas através da introdução de um novo modo de produção que assentava num regime de corveias: o Estado Inca concedeu às comunidades locais gratuitamente o direito de subsistir em troca da obrigação de trabalhar as terras que se tornaram domínio do Estado (terras da coroa) e da Igreja (terras dos templos). Como escreve John Murra: «Não se podia tocar a sério na auto-suficiência dos ayllus. O Estado preocupava-se em apenas extrair as corveias aos camponeses sem interferir na sua auto-suficiência». Porém, como observa John Murra, «a existência e a sobrevivência de uma estrutura sociopolítica como a do Estado Inca assentam tecnologicamente numa agricultura capaz de produzir sistematicamente excedentes para além das necessidades de subsistência do campesinato». Deste modo, graças ao desenvolvimento das forças produtivas na agricultura e à produção de excedentes, estavam criadas as condições necessárias para o aparecimento de uma sociedade de classes e de um Estado multi-tribal e pluri-étnico, que, para garantir a reprodução do novo modo de produção, introduziu um regime de corveias bem regulado, uma burocracia, uma contabilidade, e meios de armazenagem e de transporte dos produtos, sendo forçado a empreender grandes obras de interesse público, tais como a construção de estradas, de terraços, de jardins, de templos e de palácios, que cavaram ainda mais a distância entre o campesinato e as classes dominantes. Ora, a organização da vida material e da actividade produtiva pelo sistema político através da recolha de tributos ou de impostos acentuou a dicotomia entre a cidade e o meio rural, ao mesmo tempo que gerou uma contradição entre a manutenção das comunidades locais e a sua negação pelo Estado. É certo que os incas usavam a violência para obrigar as populações subjugadas a trabalhar para os conquistadores, reprimindo as revoltas e deportando populações inteiras, mas foram suficientemente inteligentes para usar a ideologia como meio de redução dessa contradição, de modo a dissimular e a justificar a opressão. Os incas usaram alguns dos elementos do modo de produção das tribos conquistadas para dar forma ao novo modo de produção, apresentando o poder político como expressão de uma comunidade superior que englobava o conjunto das comunidades locais: o Grande Inca - encarnando o Estado e descendendo em filiação directa do Sol ou do casal Sol-Lua - tornou-se o "pai de todos", o "rei protector" que garante a justiça, o que levou as religiões locais a adquirir uma nova função, não já uma função política, mas uma função cultural, a de definir a identidade dos grupos locais. Em vez de absorver as entidades locais de modo a eliminá-las, o Grande Inca apresenta-se aos súbditos como o pai de todas as comunidades locais, consideradas suas "filhas", fazendo reinar a justiça no seu seio e protegendo-as contra os inimigos. Estas breves considerações permitem aplicar a distinção entre culto central e cultos periféricos - quase cultos de protesto! - ao estudo da religião inca, cujo panteão é claramente hierarquizado, estando as deidades locais subordinadas às deidades do culto central no quadro de uma religião agrícola. De certo modo, a religião inca em torno do culto central - a legitimação ideológica da exploração e da opressão! - é uma invenção político-teológica de imperadores quase legendários: Pachacuti, Manco Capac e, sobretudo, Viracocha, o herói civilizacional deificado. (O culto dos antepassados das comunidades locais tende a ser absorvido ou eclipsado pelo culto do Imperador. Além disso, o recrutamento militar, um dos elementos do tributo que exigia o sacrifício da vida individual a favor do bem do grupo, implicou a ideia de uma compensação pós-histórica, nomeadamente no quadro do culto dos antepassados: surgiu assim uma nova sequência religiosa ligada à recompensa dos mortos na guerra e aos paraísos dos heróis. O sepultamento dos mortos e a mumificação dos Incas eram práticas relacionadas com essa nova preocupação. A múmia de cada Inca era conservada no palácio que o imperador tinha construído em vida e participava em certas festas religiosas: o domínio dos mortos continuava a imiscuir-se no domínio dos vivos, uma vez que conservava as suas terras. Huáscar chegou mesmo a expropriar as múmias reais das suas terras, o que lhe valeu a inimizade das linhagens reais que beneficiavam com a extensão dessas propriedades.)
O conceito de modo de produção asiático tem uma história política, articulada com a sua história filosófica, cujo desfecho, depois da Queda do Muro de Berlim, deu razão a Wittfogel contra os seus críticos "comunistas", alguns dos quais abandonaram o conceito para evitar que ele fosse usado para criticar o chamado "mundo socialista". Hoje, numa Europa cada vez mais capturada por uma classe dirigente burocrática, centralizadora e envelhecida, deve ser a própria "Direita de interesses" que teme o regresso do conceito de modo de produção asiático: A actual estagnação da União Europeia deve-se fundamentalmente às suas características "asiáticas" ou mesmo feudais no contexto de uma economia capitalista. Já devem ter reparado que, ao retomar o conceito de modo de produção asiático, pretendo não só refazer a teoria marxista da história, mas também e sobretudo libertar o marxismo do "comunismo", isto é, da sua colonização asiática ou da tentação de recuo à comunidade primitiva dita "comunista": elaborar uma teoria diferencial da história é, num só e mesmo movimento, inventar uma nova prática política para o marxismo, um novo projecto político capaz de livrar o Ocidente da estagnação e do despotismo oriental. Engels aprofundou à luz de Morgan uma das vias de passagem ao Estado: a via ocidental que conduziu à generalização da escravatura produtiva e da produção mercantil. Ao seu lado, a chamada via oriental conduziu - na Rússia, na Índia, na Mesopotâmia, no Egipto, em África, na China e no Peru - a formas despóticas de Estado e de sociedade de classes, sem destruir a antiga organização comunitária. Porém, apesar da existência de duas vias de passagem ao Estado e à sociedade de classes, o modo de produção asiático desenvolveu-se também na Europa (Charles Parain), sobretudo com os etruscos ou mesmo com as civilizações cretense e micénica. Graças aos gregos e aos romanos, e mais tarde aos germanos, cujo modo de produção germânico preparou o terreno para o feudalismo, a Europa conseguiu livrar-se do modelo asiático ou tributário para percorrer a sua própria via que a conduziu até ao capitalismo. É provável que a clivagem de desenvolvimento entre o Sul e o Norte da Europa encontre aqui a sua raiz mais remota: o modo de produção asiático significa maior progresso das forças produtivas realizado com base em antigas formas comunitárias de produção, pelo menos no período inicial, mas depois acaba por levar à estagnação milenar e à imutabilidade devidas à ausência de desenvolvimento da propriedade privada e da produção mercantil, vacilando entre a barbárie e a civilização. Marx viu isso e não vejo a necessidade de eliminar este elemento do modo de produção asiático, a não ser a necessidade de reconhecer os limites da teoria dos modos de produção para explicar todo o processo histórico sem levar em conta a biogramática do homem e outros factores, em especial os ecológicos. Com efeito, há povos que, apesar da colonização europeia, ainda não conseguiram avançar para novas formas de existência social, muitos dos quais nem sequer descobriram a escrita: eis aqui um facto incontornável que não pode ser omitido por uma teoria diferencial da história. Não vale a pena rejeitar o conceito para garantir um suposto universalismo que a história desmente claramente: a abandono do "comunismo" como projecto político livra a história dessa monstruosidade que é fazer dele o futuro comum de todas as sociedades humanas, como se o seu desenvolvimento dependesse do esquema imposto por Estaline. A civilização veio do Oriente - a história começa na Suméria! (Samuel Noah Kramer) - para o Ocidente, onde conheceu o seu maior desenvolvimento democrático e filosófico, e, no momento presente, ameaça voltar para o Oriente mais longínquo e distante da Europa, onde promete converter-se numa civilização de insectos. A utopia social de Marx e o pessimismo de Weber - a jaula de ferro! - perderam terreno a favor do declínio do Ocidente de Spengler: o Ocidente foi vítima do seu próprio universalismo que, uma vez consumado, implica o deslocamento da civilização para o Oriente, e os "déspotas" gerados no e pelo Estado Social - o equivalente das grandes obras estatais de irrigação do modo de produção asiático, servidas por um corpo de funcionários privilegiados! - começam a ser vítimas da escravidão generalizada, o que desmente qualquer esquema de desenvolvimento linear da sociedade: os europeus mimados estão a ser privados dos "direitos sociais" e da própria liberdade. A Europa já entrou em colapso: a profecia de Spengler está a cumprir-se e lá onde parecia existir democracia já havia uma forma embrionária de despotismo velado, encabeçado pelos burocratas, tecnocratas, economistas e gestores. O esquema de desenvolvimento ocidental esgotou-se e, com ele, a modernidade chegou ao seu fim: a abundância de diplomas uniformizou de tal modo a inteligência das pessoas que acabou por secar as fontes da inovação e a própria raça. Num mundo cada vez mais globalizado, torna-se difícil antecipar cenários futuros. Ao homem ocidental só lhe restam duas vias: ou aceita resignadamente o seu empobrecimento, o seu destino fatal, ou trava uma luta de vida ou de morte contra as classes dominantes sem ter a garantia de uma vitória final, a menos que a profecia maia se realize na longa noite de 21 de Dezembro de 2012 com a aniquilação do mundo. Então, perguntam-me: onde está o esboço de uma nova prática política? Nunca afirmei ser um filósofo da aurora: eu sou o filósofo da funda meia-noite, aquele que anuncia o fim catastrófico de um mundo. A Filosofia morreu no dia fatídico em que a burrice foi diplomada: a aurora mergulhou nesse instante no abismo sem fundo, o abismo que é hoje a vossa vida, a menos que arrisquem a vida na luta contra o sistema vigente. Afinal, depois de terem fingido ser aquilo que não eram, já não têm nada a perder, porque mais vale morrer a lutar contra a escravidão do que ser escravizado sabendo que não há salvação possível.
J Francisco Saraiva de Sousa
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