«O aspecto moral da segunda cidade do país pouco se tem analisado; sobre ele declara-se, favorável ou hostilmente. /O Porto divergiu de todo o tempo, nos sentimentos, no modo de pensar, nos hábitos de vida, do tipo exibido, como modelo, pela capital do país. Cioso da sua autonomia, existe entre o Porto e Lisboa uma velha rivalidade. /Como se verifica por toda a parte, mercê da benignidade do seu céu, normalmente azul, e do seu clima docemente temperado, o autóctone do sul é um homem de rua, falador, vivo, pouco tenaz; de carácter suave mas frouxo, ele é naturalmente propenso a viver mais do exterior, respirando abundantemente das circunstâncias ambientes, preso ao conjunto das pessoas pelos laços de uma solidariedade que o convívio intensifica. No norte, os longos invernos, as persistentes chuvas, a tristeza das cidades enlameadas não tornam fácil o conceito de Diderot: C'est beau, la rue. O carácter enrijece na disciplina da inospitalidade da natureza e a vida de família ganha na proporção em que os hábitos de rua se obliteram e deperecem. /A comprovação histórica verifica a indução, quando assinala na sinceridade das impressões dos viajantes, ainda os mais recentes, como Ch. de Mazade para Lisboa e Olivier Merson para o Porto, que a primeira destas duas cidades é uma cidade francesa e a segunda uma cidade inglesa». (Sampaio Bruno) Quando afirma que a Renascença Portuguesa não poderia ter nascido senão no Porto, Fernando Pessoa está a reconhecer a superioridade intelectual dos portuenses em relação aos sulistas, dando razão à lei estabelecida por Oliveira Martins: o embate do carácter do norte, representado no Porto, com o carácter do sul, simbolizado em Lisboa, é explicado a partir de variedades de tipo étnico. Portugal é um país etnicamente dividido e a sua história pode ser reduzida a um confronto étnico entre o tipo celta do Norte e a etnia mourisca do Sul. E este confronto tem sido vencido por Lisboa que, através da centralização despótica do poder político, coloniza todo o território nacional, sacando-lhe todas as riquezas que canaliza para a capital e tirando-lhe todas as oportunidades de desenvolvimento económico e cultural. A história de Portugal vista como história da centralização lisboeta atinge o seu ponto culminante depois do 25 de Abril: o regime fascista usou o Benfica para colonizar as mentes dos portugueses, dando-lhes a ilusão de uma coesão nacional inexistente, mas o regime democrático - sobretudo com os governos de Cavaco Silva - deslocalizou todo o poder económico, financeiro, comunicacional e cultural do país para a capital, criando as condições necessárias para a crise profunda que vivemos no momento presente. Sampaio Bruno não acolhe cabalmente a tese de Oliveira Martins, preferindo justificar a cisão nacional a partir de diferenças económicas - o Porto burguês e liberal - e climáticas, tal como já tinha sido feito por Montesquieu: a inospitalidade da natureza atiça o desenvolvimento intelectual da mente portuense e enrijece o corpo para a luta de vida ou de morte (Hegel) contra o centralismo canibal lisboeta. Heródoto, Aristóteles, Montesquieu e Jean Bodin já tinham insistido na influência directa do clima nos comportamentos humanos: «O grande calor debilita a força e a coragem dos homens, enquanto nos climas frios existe uma certa força do corpo e do espírito que torna os homens capazes de acções duradouras, difíceis, grandes e audaciosas». Montesquieu conclui que a cobardia dos povos dos climas quentes os torna escravos, enquanto a coragem dos povos dos climas frios os mantém livres. A servidão civil está, portanto, ligada ao clima: «Os homens (dos climas quentes) só são levados a executar tarefas penosas pelo medo do castigo». O clima frio conduz à liberdade e o clima quente à servidão. Na peugada de Bodin, Sampaio Bruno considera que a inospitabilidade da natureza é compensada pelo aperfeiçoamento das faculdades mentais e cognitivas superiores: os homens dos climas frios vivem mais da interioridade do que da exterioridade. O recolhimento interior aguça o desenvolvimento do espírito. A oposição entre o Norte e o Sul de Portugal converte-se assim numa oposição entre o homem interior e o homem exterior. Sampaio Bruno recorre à arquitectura para explicar esta diferença de carácter: a remodelação de Lisboa pelo Marquês de Pombal - uma iniciativa do Estado - uniformizou as edificações em andares, promovendo a prosmicuidade de uma escada comum e tornando de tal modo o domicilio odioso que os seus habitantes são levados a preferir a rua. O homem exterior é o homem da rua que, tendo «o dia garantido pela sinecura do emprego público», tende a ser imprevidente e frouxo. A vida fácil do lisboeta, garantida pelo emprego público e pela iniciativa do Estado, conduz à regressão cognitiva e à atrofia dos órgãos mentais. Sampaio Bruno apreende um conceito bio-antropológico fundamental: o homem exterior desenvolve uma intolerância para com o desprazer que induz a perda da capacidade de empreender trabalhos difíceis e o desenvolvimento da exigência impaciente da imediata satisfação de todos os desejos que despontam. A necessidade incoercível de satisfação converte o homem exterior em presa fácil dos produtores e das empresas comerciais: o homem exterior é um consumidor que não tem consciência do facto de ser escravo das compras a crédito e o seu estilo de vida é capturado pelo tédio mortal. No Porto nada disto sucedia no tempo de Sampaio Bruno, porque na Cidade Invicta o pão tinha de «ser laboriosamente conquistado dos lucros do comércio»: o estímulo da iniciativa do portuense era aguçado pelas actividades comerciais e as eventualidades da hora seguinte redobravam «o espírito sobre si mesmo, imprimindo ao carácter seriedade e dando-lhe ao mesmo tempo maleabilidade e resistência». A análise do carácter do Norte e do carácter do Sul realizada por Sampaio Bruno enquadra-se no âmbito da interpretação económica da história fundada por Karl Marx: Sampaio Bruno sintetiza-a neste preceito irremediável - Primum vivere, deinde philosophari. O homem precisa de comer antes de filosofar: a compreensão de toda a superstrutura das instituições políticas e jurídicas exige o estudo da estrutura económica. O marxismo explica a maneira de pensar dos homens duma época determinada pela sua maneira de viver, isto é, pelo seu modo de produção, em vez de explicar, como faz a concepção idealista da história, a sua maneira de viver pela sua maneira de pensar. O Porto liberal e burguês, o Porto comercial e cosmopolita, o Porto da iniciativa privada e do trabalho, exigia - e continua a exigir - uma nova maneira de pensar: a Escola do Porto elaborou a filosofia adequada à modernização de Portugal e à criação de uma sociedade aberta. Porto e Lisboa representam duas visões de Portugal completamente distintas e antagónicas: o Porto - a cidade inglesa - tem um projecto para Portugal, um projecto de desenvolvimento económico e cultural integrado e não-desigual, enquanto Lisboa - a cidade francesa ou talvez tropical - é o seu próprio projecto nacional. Nesta hora de crise nacional, a pergunta pessoana vira-se contra a própria capital: Onde está o erro estrutural de Portugal? O erro estrutural de Portugal está em Lisboa, como é evidente. Que benefícios tira o país em ser governado por uma capital que, depois de servir-se dos seus impostos e das suas escassas riquezas, o abandona à miséria, à pobreza e ao desemprego? Lisboa governa no seu próprio interesse regional: a sua política é sangrar o país para investir em si própria. Lisboa não tem um projecto para Portugal: Lisboa come e engorda, Lisboa faz do país o seu refeitório privado, Lisboa rouba e empobrece todos os portugueses, enfim Lisboa é uma puta estéril, velha, feia e gorda, incapaz de gerar um messias. Os movimentos das cruzadas não conseguiram expulsar todos os mouros de Portugal: a capital foi tomada paulatinamente pelos mouros sobreviventes que, no decorrer do tempo, se vingaram, expulsando os judeus de Portugal - o povo arqui-inimigo da mouraria - e mandando liquidar Francisco Sá Carneiro - o seu arqui-inimigo portuense. Lisboa é uma vagabunda de pernas abertas ao mundo, verdadeiramente insaciável na sua ganância estúpida e na sua vaidade saloia, que, no momento presente, quer atrair novos clientes, deslocalizando a organização de Red Bull Air Race do Porto para a capital e ligando-se a Madrid pelo TGV e ao mundo do turismo sexual pela construção de um novo aeroporto. Além de ser invejosa, mentirosa, desleal e falsa, Lisboa da mouraria é avessa ao espírito ocidental e à inteligência e, como tal, é uma cidade asiática que, após ter perdido o império colonial, se comporta como uma espécie de Estado asteca, controlado por uma teia corrupta e intriguista de burocratas e de colarinhos-brancos que gera a colecta de impostos e os fundos comunitários, de modo a garantir a manutenção dos seus próprios privilégios em detrimento do interesse nacional. Karl Wittfogel analisou a sociedade asiática, articulando a noção liberal de despotismo oriental e a noção marxista de modo de produção asiático. A tese fundamental de Wittfogel afirma a existência de formas pré-industriais de sistemas de Estado totalitário. As formas de Estado despótico - o despotismo oriental de Locke e de Montesquieu - surgiram, no passado remoto, por causa da necessidade de controlar os recursos hidráulicos e o sistema da agricultura de irrigação. O despotismo oriental é uma forma de dominação total, cuja essência reside no controle burocrático e administrativo de todas as instituições e actividades sociais, económicas, jurídico-políticas e culturais. A forma de governo predominante é altamente centralizada, burocrática e arbitrária: a burocracia não só calcula e coordena, como também comanda todas as actividades sociais, bloqueando o surgimento na sociedade civil de associações e de grupos sociais independentes que possam limitar e contrair o poder político. Nas sociedades asiáticas, entre as quais podemos integrar o centralismo lisboeta, as classes dirigentes - e os seus partidos políticos - são completamente fechadas e a burocracia instalada monopoliza o acesso aos meios de administração e aos centros de decisão. Este controle monopolista dos aparelhos de Estado, tanto dos repressivos como dos ideológicos, públicos ou privados, significa um monopólio do poder social real - político, jurídico, económico e ideológico, que não decorre da propriedade privada, mas do acesso aos meios burocráticos de controle centralizado e de apropriação corrupta dos bens públicos. A sociedade asiática constitui um sistema sob controle total de um staff administrativo - as classes dirigentes -, que existe por causa do sistema de Estado. Alguns historiadores lisboetas lamentam a inexistência de liberalismo em Portugal, mas este lamento só é verdadeiro quando se falsifica a História de Portugal, identificando-a com a História de Lisboa: a capital de Portugal foi sempre uma feroz adversária do liberalismo, da democracia e da iniciativa privada. Graças ao Tratado de Methwen, o Porto encheu-se de ingleses, operando-se uma infiltração do carácter britânico sobre o portuense, através das relações comerciais, do contacto social e da transfusão de sangue (casamentos entre portuenses e ingleses). O Porto tornou-se uma cidade inglesa, isto é, uma cidade liberal e burguesa: «os burgueses do Porto acostumaram-se a fazer educar seus filhos na Inglaterra, o cultivo da língua inglesa foi exigido aos empregados do comércio e a imitação portuguesa do tipo britânico prolongou-se até às exterioridades do vestuário, aos gostos, às minuciosas meticulosidades mais despercebíveis» (Sampaio Bruno). O romance Uma Família Inglesa de Júlio Dinis retrata com fidelidade esse Porto burguês e liberal, fortemente seduzido pela cultura democrática e pela literatura clássica inglesas: Júlio Dinis bebeu em Charles Dickens o elixir de filantropia que dilui nos seus romances «uma vaga tinta socialista, pela condenação dos abusos tradicionais, pela consciência do progresso». Consciência do progresso, isto é, do desenvolvimento económico, tecnológico e cultural, é precisamente aquilo que marca a História do Porto no contexto da História de Portugal. Quando elabora a sua teoria da formação democrática de Portugal, Jaime Cortesão - ilustre membro da Escola do Porto e o maior historiador da nacionalidade portuguesa - destaca o papel de motor do desenvolvimento económico, político e cultural desempenhado pela cidade do Porto na luta contra o atraso estrutural nacional: «Os progressos sociais correm parelhas com os da actividade económica. Onde o comércio e a indústria houverem atingido maior desenvolvimento, aí, em princípio, devemos procurar as classes urbanas, mais diferenciadas. O Porto é, durante a Idade Média, o símbolo perfeito da concordância desses dois fenómenos, em Portugal. Ali, pelas vantagens do porto, juntamente fluvial e marítimo, pela posição geográfica que tornara o burgo o entreposto da região mais populosa e rica do País, o comércio marítimo tomou tão rápido incremento, que em 1361 os representantes do concelho se ufanavam de haver ali mais navios que em todo o restante Reino. E dali, em 1415, saía ainda uma armada que os homens bons da cidade mais tarde proclamavam que doutro qualquer lugar da Espanha não poderia sair tão forte e numerosa. Já então, entre os produtos exportados pela barra do rio e difundidos pelos portos do Norte da Europa e do Levante, sobrelevavam os vinhos de Riba-Douro. Na rude labuta da pesca, da construção naval, do tráfico a distância por mar e terra, se formaram e enriqueceram os burgueses e os mesteirais do Porto, cujo passado constitui a mais bela página de toda a história social e urbana, em Portugal. Burgo episcopal, os seus habitantes, quase todos adventícios, acorridos do interior às novas fainas do mar, desde o meado do século XII, houveram que travar batalha, que durou séculos, para arrancar as suas liberdades e franquias à prepotência senhorial dos bispos. À violência dos senhores mitrados, que os oprimiam sem piedade, e a cada passo do alto do sólio episcopal jogavam os raios da excomunhão sobre os vassalos rebelados, os homens do burgo responderam com violência igual». O Porto formou-se na luta contra os abusos feudais e conseguiu prosperar em grande parte «graças à acérrima firmeza com que soube defender-se da parasitagem das duas classes oligárquicas: o alto clero e a nobreza militar», elevando-se durante a Idade Média, como outros grandes burgos comerciais da Europa, à «categoria duma democracia urbana, dum pequeno Estado dentro do Estado». Durante todo esse período dos três últimos quartéis do século XIV, o Porto já exibia «uma forte independência, não só em relação às outras classes, mas ao próprio Estado, sem que aliás tivesse constituído um elemento dissolvente em relação à unidade nacional». Jaime Cortesão lembra-nos que um dos actos de maior alcance político na história da Nação foi um tratado de comércio com a Inglaterra (1353), negociado e firmado por um burguês do Porto - Afonso Martins, em nome dos burgueses e dos mesteirais das povoações marítimas de Portugal. Este acto político mostra que o Porto já era nesse tempo a «metrópole social do Reino»: as suas classes urbanas, mau grado os abusos e opressivos privilégios do clero e da nobreza militar, tiveram um poder de iniciativa na formação política de Portugal, até porque se gerou nessas relações comerciais com a Inglaterra a aliança política que garantiu mais tarde a vitória do Mestre de Avis, que se casou com uma inglesa na Sé-Catedral do Porto e nos deu esse magnífico portuense - o Infante D. Henrique. O Porto é o pequeno Estado precursor dentro do Estado Português e, como escola política da Nação, imprimiu o rumo da evolução política que o Reino só mais tarde havia de realizar. O Porto foi sempre a vanguarda consciente de Portugal que liga a nossa nação ao mundo, ao Brasil e ao Norte da Europa. Onde começa o pensamento filosófico em Portugal? Jaime Cortesão compara aquilo a que chama milagre luso ao milagre grego (Renan, John Burnet) ou mesmo ao milagre holandês: os três povos são de minúsculo volume demográfico, mas «notáveis justamente por uma cultura própria de forma urbana e laica e pela expansão geográfica». Ora, sabemos que o aparecimento da polis e o nascimento da filosofia são fenómenos intimamente ligados (Jean-Pierre Vernant): o pensamento racional é solidário das estruturas sociais e mentais das sociedades urbanas abertas. O milagre luso teve o seu berço na cidade do Porto, «onde durante as lutas contra os bispos, nos séculos XIII e XIV, se formou uma democracia urbana muito afim, pelo espírito de independência, das comunas da Flandres. O Porto tornou-se, durante aqueles séculos, a grande escola de educação política do povo português, como defensora, a ferro e fogo, das liberdades individuais e da supremacia do poder civil. Ali se formou o modelo mais perfeito da cidadania em Portugal, o cidadão do Porto, cujos direitos foram mais tarde reclamados pelas maiores cidades do Brasil e estão na base sucessiva das suas autonomias provinciais e independência de nação». O Porto foi a primeira cidade portuguesa a libertar-se do modelo de uma sociedade fechada - a cidade episcopal e feudal - e a desenvolver-se ao calor da economia burguesa e do modelo de sociedade aberta: o avanço temporal do Porto em relação à sociedade portuguesa em geral fez dele uma cidade universal e imortal que, ao longo do tempo, orienta o destino nacional como a estrela da redenção (Franz Rosenzweig) de Portugal. As origens históricas da Escola do Porto mergulham neste passado inovador da História do Porto, mas o seu aparecimento formal ocorre somente no final do século XIX como protesto contra o positivismo ladrão e corrupto predominante na capital: a Renascença Portuguesa nasceu no Porto e, como diz com tristeza Fernando Pessoa, «não poderia ter nascido senão no Porto». Acontecimentos aparentemente díspares revelam uma conexão essencial quando lidos à luz da luta portuense pela construção de uma sociedade aberta e de uma economia de mercado liberta da tutela corrupta do Estado e dos seus altos funcionários: O Porto é a primeira - ou uma das primeiras - cidade europeia a dotar-se da instituição da Bolsa (o acordo de 1293), Lisboa expulsa os judeus de Portugal (1496) e a Escola do Porto traz de volta os nossos judeus - o seu pensamento - a Portugal, a começar pelo mais ilustre - Baruch Espinosa. A aliança comercial entre o Porto e as cidades do Norte da Europa, onde se refugiaram os judeus portugueses expulsos da pátria por uma capital "amiga" invejosa, desleal e saloia da riqueza alheia, é, simultaneamente, uma aliança política e cultural: Porto e Amesterdão são cidades gémeas de tal modo idênticas que o futuro desenvolvimento da Cidade Invicta passa pela recuperação e revitalização dessa afinidade sanguínea. Pelas Notas do Exílio, sabemos que Sampaio Bruno terá visitado a Biblioteca dos judeus portugueses de Amesterdão, cujo nome de Árvore da Vida faz claramente uma alusão ao pensamento cabalista de Isaac Lúria. A Kabbalah exerceu uma grande influência sobre a elaboração da filosofia da história de Sampaio Bruno, fornecendo-lhe a ideia basilar do exílio de Deus em Deus e do exílio histórico de Portugal. António Telmo cita uma texto de Gershom Scholem, substituíndo o nome de Isaac Lúria pelo de Sampaio Bruno e alterando em consequência certas referências: «Em suma, podemos considerar a Kabbalah de Sampaio Bruno uma interpretação mística do exílio e da redenção ou até um grande mito do exílio. A substância dessa Kabbalah reflecte os sentimentos dos portugueses desterrados na sua própria Pátria. Para eles, o exílio e a redenção são, do modo mais exacto, grandes símbolos místicos. Esta nova doutrina de Deus e do Universo corresponde à nova ideia moral da humanidade que propagou nos seus livros: o ideal do filósofo, cujo fim é a reforma messiânica, a transcensão do mal do mundo, a reintegração de todos os seres em Deus. Assim, o homem de acção espiritual, graças ao movimento que recebe dos Anjos, pode quebrar o exílio, o exílio histórico de Portugal, o da humanidade, e este exílio interior no qual gemem todas as criaturas». O jogo proposto por António Telmo capta a ideia basilar da filosofia da história de Sampaio Bruno - a ideia de exílio histórico de Portugal, mas desvirtua a filosofia portuense quando a trata como uma interpretação mística da história, como se a Renascença Portuguesa sediada no Porto estivesse desligada do renascimento político. A Kabbalah é, na sua mais pura essência, uma arma política revolucionária, e Sampaio Bruno "usa-a" para afirmar a heterodoxia do pensamento portuense e a sua dissidência política. Martin Buber, Franz Rosenzweig, Gershom Scholem, Leo Löwenthal, Franz Kafka, Walter Benjamin, Gustav Landauer, Ernst Bloch, Georg Lukács e Erich Fromm fizeram um uso semelhante da Kabbalah e, como «não há história sem uma filosofia subjacente» (Jaime Cortesão), a filosofia destes pensadores, bem como a de Sampaio Bruno, visa transformar qualitativamente o mundo - quebrar o exílio histórico de Portugal, o exílio da humanidade e o exílio interior no qual gemem todas as criaturas. O Brasil Mental de Sampaio Bruno não é somente uma crítica do positivismo brasileiro - esse catolicismo sem Deus, mas também e fundamentalmente uma crítica do positivismo português: a amizade pessoal entre Sampaio Bruno e Teófilo Braga e a confraternidade republicana não podem encobrir a ruptura da Escola do Porto com a ortodoxia positivista lisboeta. O positivismo lisboeta é pensamento gordo, no sentido de se acomodar à realidade social vigente, liquidando o desejo de a transcender e o desespero que ela suscita nos portugueses. Contra o pensamento satisfeito com a realidade estabelecida que se perpetua nas figuras lisboetas pardacentas da economia neoliberal - os amigos dos grandes investimentos públicos em Lisboa, a Escola do Porto, em especial Guerra Junqueiro, Sampaio Bruno, Leonardo Coimbra e Teixeira de Pascoaes, retoma o evolucionismo, imprimindo-lhe uma valência política que visa libertar a natureza (dimensão ecológica), o homem (dimensão antropológica universal) e a sociedade (dimensão social e política) da dominação do mal do mundo. Quando apresenta o marxismo no final da sua obra O Brasil Mental, Sampaio Bruno reconhece a sua dívida para com a dialéctica hegeliana: Hegel fez da filosofia um factor histórico concreto e trouxe a história à filosofia. No seu elemento estritamente português, a filosofia da história elaborada pelos ilustres portuenses é uma filosofia da esperança histórica de Portugal: o Encoberto, o Desejado, não é nem um príncipe predestinado nem mesmo um povo, mas o próprio Homem chamado a salvar Deus, os seus semelhantes, a natureza e as suas criaturas (Sampaio Bruno). Pela sua longa história democrática e pelo seu pensamento profundo e sério, o Porto que deu o nome a Portugal - conforme diz o Hino do FCPorto - guarda a memória de Portugal, zela pelo bom nome de Portugal e sonha com o futuro novo de Portugal. Em reconhecimento agradecido pela lealdade portuense à causa da liberdade, D. Pedro IV de Portugal - e Pedro I do Brasil - doou o seu coração à cidade do Porto, e D. Maria II, sendo ministro Almeida Garrett, atribuiu-lhe oficialmente a divisa «Antiga, muito nobre e sempre leal e invicta Cidade do Porto». J Francisco Saraiva de Sousa
quarta-feira, 23 de dezembro de 2009
sexta-feira, 18 de dezembro de 2009
Leonardo Coimbra, Filósofo Portuense
«A religião é uma Relação, é a relação dum eu limitado com o Infinito que o sustenta, é essencialmente a atitude desse eu, que, vendo-se em angústia, insuficiência e possível abandono, se abre em humildade ao Invisível que o socorre. Esse Invisível é um estranho hóspede, que bateu para que se abrisse e foi, de pronto, reconhecido por nós como o único e autêntico dono da casa. É o hóspede que alimenta o hospedeiro e põe neste a confiança de que só perdendo-se nele, se reencontrará em substancial e imperecível realidade. O orgânico, a ressonância corporal, a simbólica que o corpo empresta é linguagem daquela atitude e nunca a substância do seu ser. O corpo salva-se pela penetração da vontade até aquele ponto em que ele, caindo e levantando-se mas obedecendo, serve a relação do homem com Deus». (Leonardo Coimbra, S. Paulo de Teixeira de Pascoaes) Perante uma Lisboa velha, feia e gorda, sempre pronta a a-propriar-se sem vergonha das iniciativas do Porto, como sucedeu agora com o caso Red Bull Air Race, a melhor atitude dos portuenses é afirmar a universalidade da Cidade Invicta no mundo global, sem fazer qualquer referência a esse antro centralista de corrupção que é a capital vaginal de Portugal decadente e corrupto. A cidade do Porto tem uma história e um legado cultural único que os portuenses devem honrar e autonomizar, de modo a marcar a sua diferença num país imbecilizado e resignado que se deixa capturar pela capital asteca, prestando-lhe tributo, e a acentuar a sua marca original no mundo: o Porto não precisa de Lisboa, essa enorme vagina podre, estéril e venérea que engole Portugal. Escutando os desejos profundos e justos do povo portuense, as elites da Invicta devem aprender a pensar a sua cidade como uma nação e a identificar-se com as suas instituições de prestígio mundial, entre as quais o Futebol Clube do Porto, a única instituição que Lisboa não pode deslocar ou saquear. Nesta hora de conflito aberto com Lisboa e o seu centralismo canibal, os cidadãos do Porto devem esquecer as suas actuais filiações partidárias e reunir-se em torno de um amplo e vasto partido do Norte, capaz de travar a luta pela nossa libertação e pelo nosso desenvolvimento económico, social, jurídico-político, lúdico e cultural. Portugal está cansado de Lisboa, mas nós portuenses já não a suportamos: a nossa alma azul diz-nos que o Porto é uma nação e é como tal que o vivemos. O Marquês de Palmela escreveu esta frase que se tornou profecia cumprida: «A intriga, essa é que é a verdadeira moléstia nacional, a peste portuguesa que nos há-de matar a todos». Cheira mal em Portugal e cheira a Lisboa, a capital putrefacta e insaciável que saqueia o país e os fundos estruturais comunitários, não em benefício nacional integrado, mas em benefício dos bandos organizados de escroques (Max Horkheimer) que afluem ao Terreiro do Paço para saciar a sua gula desmesurada por lucros e poder pessoais. As classes governantes sediadas na capital asteca comportam-se como bandos de escroques e corrompem-se descaradamente, condenando o país à miséria e à pobreza e alimentando o seu pensamento gordo que exibem sem vergonha nos ecrãs televisivos. Contra a falência de Lisboa como capital e o seu positivismo ladrão - amigo dos bens públicos, o Porto encontra no seu legado histórico-cultural a força da heterodoxia e da dissidência política. Leonardo Coimbra (1883-1936), criador da Faculdade de Letras da Universidade do Porto e co-fundador da Renascença Portuguesa, juntamente com Teixeira de Pascoaes e outros ilustres portuenses, elaborou uma filosofia sistemática da liberdade, a que chamou criacionismo. A designação dada ao seu primeiro pensamento filosófico induz o leitor desprevenido em erro: o criacionismo não é uma espécie de teologia da criação, mas uma filosofia da liberdade que recorre abundantemente à dialéctica para demarcar-se dos sistemas filosóficos que cousificam as categorias - ou noções - fundamentais da filosofia. «A nossa filosofia é, como escreveu Leonardo Coimbra, uma filosofia da liberdade, porque o seu Universo é uma sociedade de consciências e a consciência feita pessoa é a actividade livre e criadora. O grandioso Cosmos material é, pela mais legítima das analogias, acção de consciências». Leonardo Coimbra deu-lhe o nome de criacionismo, demarcando-se do cânone oficial que usa este termo «para discutir o falso problema da criação do mundo por Deus no tempo, ou da eterna existência do mundo no tempo. Este problema não tem sentido. Resulta do mais vicioso, plebeu e vulgar cousismo do tempo. Tempo abstracto e inerte, pairando sobre um Deus adormecido e sobre um mundo inexistente! A mais insignificante determinação do tempo exige a existência do mundo». Leonardo Coimbra rejeita a oposição oficial entre criacionismo e evolucionismo, alegando que o último «tem de admitir actividade criadora e cair num criacionismo». Entendido como filosofia da liberdade, o criacionismo «garante o valor criacionista da actividade cósmica» e é, por virtude própria, progressivo e criador. A evolução é criadora, como dirá Bergson, e situa-se no dinamismo do pensamento que, interrogando continuamente o mundo, deve acompanhar o dinamismo dos fenómenos, de modo a escutar «sempre o longínquo palpitar do coração do Ser». A evolução criadora é assim uma dialéctica ascensional do ser que, no plano ontológico, vai da matéria à vida, da vida à consciência e da consciência à pessoa, e, paralelamente, no plano epistemológico, vai das ciências da matemática à biologia, da biologia à psicologia e da psicologia à sociologia. A dialéctica científica leva à pessoa, «a palavra da síntese filosófica»: «Não precisamos de sobrepor à síntese objectiva uma síntese subjectiva. A realidade não se divide nas duas coisas - sujeito e objecto. O sujeito e o objecto são vagas anunciações da pessoa activa e livre tendo como instrumentos de acção os determinismos subordinados». A biologia, a psicologia e a sociologia convergem na pessoa, exigindo a inflexão da trajectória do pensamento científico para esta «irredutível realidade» - a pessoa que «só é livre, quando vence todos os cousismos, isto é, quando vence as solicitações inferiores ou limites materiais», abrindo-se à transcendência e ao infinito num mundo visto como «uma sociedade de mónadas» (G. W. Leibniz) e não como «uma degenerescência de Deus». Infelizmente não possuímos um estudo integrado e integral da Escola do Porto, porque os estudos existentes exibem a tendência nefasta de dissolver a problemática filosófica portuense nesse campo pardacento chamado filosofia portuguesa, como se não houvesse uma filosofia portuense autónoma de cariz mundial. Ora, há uma filosofia portuense que fala a diversas vozes sem no entanto abdicar da sua unidade essencial: a crítica radical do positivismo e do evolucionismo mecanicista, que a afasta do pensamento dominante em Portugal na época da Primeira República. Guerra Junqueiro (1850-1923) é o pai e o mentor da filosofia elaborada pela Escola do Porto: a temática da dialéctiva evolutiva ascensional que vai da matéria inorgânica à vida, da vida à consciência e da consciência a Deus foi lançada por Guerra Junqueiro, sendo retomada e reelaborada por Sampaio Bruno (1857-1915), Teixeira de Pascoaes (1877-1952) e Leonardo Coimbra, entre outros. A filosofia portuense ocupa um lugar único e original no âmbito da História da Filosofia Ocidental, antecipando uma problemática filosófica que será "retomada" por Henri Bergson, Samuel Alexander, Alfred N. Whitehead, Lloyd Morgan, Smuts, R. G. Collingwood, Teilhard de Chardin, Bernhard Rensch, Hans Jonas, Edouard Goldsmith, James Lovelock, William Irwin Thompson, Ilya Prigogine e Errol E. Harris. Ângelo Alves destacou as duas faces da atitude de Leonardo Coimbra na sua fase criacionista: a face negativa que é o seu antipositivismo e a face positiva que é a sua intenção metafísica. O próprio Leonardo Coimbra afirmou que o pensamento filosófico deve ao positivismo a «atenção que hoje desperta a metafísica»: «O pensamento metafísico foi envergonhado pelo pensamento científico, sempre em progresso e em afirmações de palpável fecundidade. O espírito alarmado olhou-se de novo, e, se reconheceu que a metafísica lhe é entranha, ficou sempre com a censura nos ouvidos, e hoje a sua metafísica é consciente e crítica, prudente e humilde, corajosa e honesta». A recusa do positivismo reconduz a uma «metafísica consciente e crítica» que, tomando como objecto as próprias ciências (Antero de Quental), procura revelar o direccionismo ascendente da evolução criadora que culmina na pessoa: «A pessoa é em sociedade e para a sociedade», sem a qual - a consciência colectiva - não poderia usar criativamente a linguagem e os sinais que dão vida ao pensamento individual e emergir como pessoa moral e religiosa. Arnaldo Cardoso de Pinho realizou de modo brilhante uma viagem pelo pensamento sempre em andamento de Leonardo Coimbra, de modo a mostrar a unidade de todo o seu pensamento teologicamente orientado em torno da realidade da pessoa e da continuidade da vida e da consciência. Porém, este impulso teológico só pode ser compreendido na chama antropológica que, resistindo à coisificação e às idolatrias coisistas, revela uma realidade dinâmica que, na escalada ascendente - e teleologicamente orientada - do Ser, sobe da matéria à vida, da vida à consciência e da consciência à pessoa que se abre a Deus: «Ciência, moral e religião são obras do pensamento, que, na pessoa e para a pessoa, as edifica». O Princípio Antrópico Cosmológico que surge da interpretação de Copenhaga da teoria quântica - iniciada por Niels Bohr - revela a actualidade e a pertinência da filosofia da Escola do Porto, em especial do criacionismo de Leonardo Coimbra. Em termos muito genéricos, o princípio antrópico afirma que nós existimos porque o universo é da maneira como nós vemos que ele é. Ora, se a realidade física depende da existência do espírito e o espírito depende da existência prévia da realidade física, nenhum deles pode existir a não ser que ambos surjam em simultâneo. O reconhecimento da continuidade entre matéria e espírito num mundo unificado inviabiliza a visão copernicana do papel da mente humana na construção do conhecimento do mundo: a vida inteligente está necessariamente implicada no universo desde os primórdios da realidade física e todo o processo de evolução natural alcança a consciência de si próprio no espírito humano. Retomando a linguagem usada por Guerra Junqueiro, Teixeira de Pascoaes capta o verdadeiro significado do princípio de organização universal revelado pela nova concepção do cosmos: «A finalidade da vida é a definição da existência. E digo finalidade, porque todo o esforço da Natureza se dirigiu e dirige num sentido humano ou consciente. /O destino do homem é ser a consciência do Universo em ascensão perpétua para Deus. /O homem é ele e o seu habitat. É céu e terra contidos numa definição espiritual ou consciente. /O homem, sonhando, transborda de si mesmo, amplia o mundo, porque ilumina as suas dimensões desconhecidas. O sonho é alta temperatura, um estado térmico da alma, a sua incandescência. /Que seria do mundo sem o homem? Permaneceria como abismado numa absoluta inexistência». O cosmos material de que fala Leonardo Coimbra implica necessariamente a formação da sua própria observação por seres inteligentes, porque é nos seus espíritos que o todo cósmico alcança a consciência. Ora, assim definido, o princípio antrópico mais não é do que a versão moderna da tese aristotélica de que as formas naturais existem por mor da humanidade. Cosmologia e antropologia implicam-se mutuamente e, nesse laço de convergência universal, abrem-se à teologia: a Escola do Porto restitui ao homem o papel central que lhe tinha sido retirado pela revolução copernicana, na medida em que o todo cósmico só se efectiva e se realiza plenamente quando é conhecido, observado e interpretado pela mente humana. O reconhecimento da centralidade da mente humana levou a Escola do Porto a esboçar uma antropologia fundamental, isto é, uma interpretação da existência humana, que ainda não foi devidamente compreendida e analisada como uma crítica da modernidade. Um texto de Leonardo Coimbra ajuda a clarificar as linhas gerais dessa antropologia que Sampaio Bruno pensou sob a figura do Encoberto: «A vida moderna é duma dispersão assustadora. A alma não se recolhe, vive em permanente exteriorização. Não há vida interior. Um vento de tempestade espalhou as almas e lançou a vida em vertiginosa corrida de ambição e loucura. O presente é um importuno a afastar-se dum ambicionado futuro, fugindo sempre, como as miragens, diante dos nossos precipitados passos. O lar, o abrigo das ternuras reconfortantes, perdeu-se na vertigem da vida moderna, toda de ruído, ambição e desesperado movimento. A pátria, esse outro reduto de fecundas tradições e elos de solidariedade, é uma ficção palavrosa, ou uma terrível voracidade de fauces arreganhadas para ambicionadas presas. A humanidade - uma vaga aspiração de alguns vagos filósofos. O Universo - uma terrível mole, sob o peso da qual o homem soçobra e definha. /É preciso levantar os corações abatidos. Que as almas perdidas em caminhos negros, tortuosos e sem fim, sejam conduzidas ao peito humano, ao recolhimento verídico. /Apreendido no Espírito, que se garante pelos seus sucessivos movimentos de vitória, o homem entenderá e realizará o sonhado porvir. /Que os homens voltem a casa e, então, de dentro do seu lar, no fumo do seu fogo e no calor da sua intimidade, a alma humana de novo subirá até Deus. Este humilde planeta levará, em si, uma alta e acordada consciência. É o homem, que, pensativo e ansioso, de pé no seu planeta, sustenta, religiosa, heróica e comovidamente, os ideais da beleza, da verdade, da justiça e do amor. Caminha, e aos estremecimentos do seu religioso espírito, respondem os fecundos estremecimentos do espaço, sulcado de sonho, riscado de ideal». J Francisco Saraiva de Sousa
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sábado, 12 de dezembro de 2009
Guerra Junqueiro e Fernando Pessoa
«Um povo imbecilizado e resignado, humilde e macambúzio, fatalista e sonâmbulo, burro de carga, besta de nora, aguentando pauladas, sacos de vergonha, feixes de miséria, sem uma rebelião, um mostrar de dentes, a energia dum coice, pois que nem já com as orelhas é capaz de sacudir as moscas; um povo em catalépsia ambulante, não se lembrando nem donde vem, nem onde está, nem para onde vai; um povo, enfim, que eu adoro, porque sofre e é bom, e guarda ainda na noite da sua inconsciência como que um lampejo misterioso da alma nacional, - reflexo de astro em silêncio escuro de lagoa morta.» (Balanço Patriótico, Guerra Junqueiro)
Guerra Junqueiro (1850-1923) e Fernando Pessoa (1888-1935) são dois poetas portugueses de valor desigual, não tanto a nível da qualidade poética, mas sobretudo a nível da dimensão do pensamento. Ambos escreveram duas obras em torno da missão de Portugal no mundo global: a Pátria de Junqueiro (1896) e a Mensagem (1934) de Pessoa. A História da Literatura Portuguesa, escrita e ensinada sob o signo da falsificação e das mentiras lavradas pelo provincianismo centralista, asteca, colonialista, imperialista e racista de Lisboa, procura silenciar as vozes do Norte, sobretudo as vozes da Escola do Porto, de modo a atribuir uma falsa centralidade aos seus escritores, como se Portugal fosse Lisboa. Perante esta falsificação da História de Portugal, pensada e difundida por António Sérgio, entre outras figuras pardacentas, a missão do pensador honesto é repor a verdade no seu devido lugar, recuperando e actualizando as forças vivas do passado que trouxeram mérito e glória à nação de todos os portugueses e não apenas a meia dúzia de saloios que atribuem a si próprios o estatuto de cidadãos de primeira classe. Fernando Pessoa pensou dar o nome de Portugal à única obra que publicou em vida, mas, como uma tal designação era demasiado ambiciosa, optou modestamente pelo título de Mensagem, embora Lisboa fosse outra possibilidade mais apropriada à imagem mitológica que apresenta de Portugal. A única obra de poesia portuguesa que merece o nome de Portugal é, de facto, a Pátria de Guerra Junqueiro, a obra seminal que revela a verdadeira imagem de Portugal sem a auréola do mito sebastianista que, sob influência de Sampaio Bruno, Pessoa lhe acrescentou muito mais tarde. O próprio Fernando Pessoa fez tudo para eclipsar a renovação da cultura portuguesa levada a cabo pelos ilustres pensadores do Porto (Sampaio Bruno), usando diversos expedientes pouco honestos e malucos para se a-propriar dela e sitiá-la em Lisboa: «Como é individual, e o meio social não está organizado, a cultura portuguesa está anarquizada, cada homem de génio vivendo consigo próprio, e, o que é pior, cada um escrevendo um pouco sem disciplina. Cabe afastar alguns deste juízo - Junqueiro supremamente. E cabe advertir que essa organização da cultura nacional começou, no Porto, com a "Renascença Portuguesa". /Onde está o erro da "Renascença Portuguesa"? O primeiro é estar no Porto. De resto, não poderia ter nascido senão no Porto, de modo que, como em tudo, se repararmos bem, na própria única cousa possível está o defeito inevitável. Sem esse defeito, não teria havido a causa, nem o efeito portanto» (F. Pessoa). Para todos os efeitos, Fernando Pessoa reconhece que o Porto - a Cidade Invicta - é a vanguarda de Portugal: a ascensão social e cultural de Portugal realiza-se rumando cada vez mais para o Norte e não para o Sul, porque é no Norte da Europa que o Ocidente mostra o seu azul-anímico mais profundo, puro e democrático.
A Mensagem de Fernando Pessoa é inegavelmente uma obra de grande qualidade poética e até mesmo filosófica, mas a sua "mensagem" - a imagem de Portugal - não é original. Como José van den Besselaar e Lúcio de Azevedo demonstraram, a concepção sebastianista da história de Portugal e da sua missão no mundo global deriva, em última análise, do messianismo, tendo sido explicitada pelas trovas de Gonçalo Anes Bandarra e retomada por António Vieira: o sebastianismo é, segundo Pessoa, a crença religiosa de que Portugal «perdeu a sua grandeza com D. Sebastião e que só voltará a tê-la com o regresso dele (numa manhã de névoa, no seu cavalo branco, vindo da ilha longínqua onde esteve esperando a hora da volta), regresso simbólico mas em que não é absurdo confiar». O Evangelho do sebastianismo são as Trovas do Bandarra que Fernando Pessoa estudou minuciosamente: a Mensagem apresenta uma filosofia integral da História de Portugal escrita em verso e essa filosofia da história é precisamente uma versão especificamente portuguesa do messianismo. «Nascido na dor, nutrindo-se da esperança, (o sebastianismo) é, segundo Lúcio de Azevedo, na história o que é na poesia a saudade, uma feição inseparável da alma portuguesa». Da articulação teórica variável entre o sebastianismo - uma visão messiânica da história que insinua que o povo português é o povo eleito dos tempos modernos - e a saudade - esse estado de alma típico dos portugueses (Pascoaes, Carolina Michaëlis de Vasconcelos, Dalila L. Pereira da Costa, Pinharanda Gomes) - resulta, segundo uma linha dominante do pensamento português (Teófilo Braga, Oliveira Martins), uma filosofia especificamente portuguesa, a que Teixeira de Pascoaes chamou Filosofia da Saudade. Na sua polémica com Teixeira de Pascoaes e os "saudosistas", António Sérgio quis ver nesta filosofia uma ânsia de regresso a um passado dourado, mas o poeta portuense reage com imensa ironia, lembrando ao seu ilustre adversário galhofeiro que a saudade tem uma face voltada para o Passado - a lembrança - e outra voltada para o Futuro - o desejo, a esperança: «a Saudade é a grande criadora do Futuro, mas não tira o Futuro do Nada, não consegue um Futuro de geração espontânea ou caído miraculosamente das estrelas», porque o Futuro - o Desejado - só pode ser construído com «a matéria do Passado» (Pascoaes). A esperança messiânica é sempre esperança histórica - distinta da esperança escatológica - e, como tal, é protesto político contra as condições internas e externas que oprimem um povo inteiro: a força do sebastianismo em Portugal é directamente proporcional ao grau de frustração e de humilhação a que os poderes estabelecidos submetem o povo português. O sebastianismo não é necessariamente uma filosofia retrógrada da história de Portugal, como pensa precipitadamente António Sérgio: a ânsia que o move é a preparação do solo terrestre - o solo pátrio - para a irrupção do messiânico (Walter Benjamin) - simbolicamente D. Sebastião - na história, isto é, a inauguração do Reino de Cristo - o Quinto Império - na Terra num futuro muito próximo. A esperança sebastianista num futuro glorioso para Portugal nutre-se da recordação de um passado glorioso, mas o que realmente a move é a atracção do futuro: a construção de uma nova sociedade liberta do medo, da corrupção e da opressão. A filosofia da saudade é a filosofia da esperança histórica do povo português. O último poema intitulado Nevoeiro que encerra a Mensagem de Fernando Pessoa fala assim:
«Nem rei nem lei, nem paz nem guerra,
Define com perfil e ser
Este fulgor baço da terra
Que é Portugal a entristecer -
Brilho sem luz e sem arder,
Como o que o fogo-fátuo encerra.
«Ninguém sabe que coisa quer.
Ninguém conhece que alma tem,
Nem o que é mal nem o que é bem.
(Que ânsia distante perto chora?)
Tudo é incerto e derradeiro.
Tudo é disperso, nada é inteiro.
Ó Portugal, hoje és nevoeiro... «É a hora!» A depressão e a preocupação pelo lado sombrio da vida que se instalam nalguns mundos pessoanos - as suas capelas imperfeitas (Joel Serrão) - auto-superam-se nestes dois versos derradeiros: «Ó Portugal, hoje és nevoeiro... /É a hora!». O sebastianismo é claramente visto nestes versos como o sonho diurno (Ernst Bloch) de Portugal. Sentindo a circular pelo seu corpo a angústia da influência, Fernando Pessoa revela a sua dívida à Escola do Porto: o sonho diurno - o sonhar para a frente, a saudade do futuro (Pascoaes), a ânsia do distante que perto chora (Pessoa) - exige activismo político no momento presente, isto é, luta política pela transformação qualitativa de Portugal alimentada por um optimismo militante (Ernst Bloch). O Encoberto é a promessa não-cumprida que urge realizar na conjuntura política presente: o futuro não pode ser eternamente adiado ao sabor da gula das classes dirigentes nacionais, o futuro começa hoje. Teixeira de Pascoaes - e não o Leonardo Coimbra do criacionismo - edificou a única filosofia portuguesa séria a partir da alma das palavras sagradas da Língua Portuguesa, tais como saudade, solidão, ermo, abandono, remoto, ausência, luar, sombra, silêncio, nevoeiro, enfim medo, mas, para sermos justos com a sua concepção do além homem, devemos considerá-la nalgumas das suas concretizações cristalizadas - as de Agostinho da Silva e de António Quadros - como uma filosofia passageira e transitória, seguindo esta sua indicação: «O silêncio fala, a sombra alumia, a ausência tem presença...» (Pascoaes). A expressão mensagem na garrafa foi cunhada por Theodor W. Adorno para referir a necessidade de produzir textos para as futuras gerações. Fechada na sua imensa solidão, Florbela Espanca anotou mensagens no seu Diário do Último Ano, na esperança de que Alguém no futuro ousasse compreender «o que eu fui ou o que julguei ser», realizando «o que eu não pude: conhecer-me». De certo modo, todo o pensamento transformador e crítico deixa mensagens numa garrafa que lança ao mar do tempo histórico, na esperança de que alguém de uma geração futura as descubra acidental e fortuitamente, lendo-as e realizando-as. Porém, as mensagens na garrafa escritas para as gerações futuras correm o risco de não ser descobertas: o legado está sempre em risco e pode ser irremediavelmente perdido. Na actual conjuntura portuguesa, o legado está coberto de nevoeiro: a actual crise de Portugal não é simplesmente económica, política e financeira, mas fundamentalmente uma crise nacional resultante da corrupção generalizada que se instalou em todas as esferas da vida nacional. «O inimigo mora-nos em casa» (Guerra Junqueiro): Portugal dura, mas já não existe. A realização dos grandes projectos políticos não pode ser adiada: as mensagens também devem ser escritas no presente para um público mais contemporâneo. "É a hora!" significa: a mudança qualitativa de Portugal é tarefa política urgente a ser levada a cabo pelos homens de hoje na actual conjuntura política, porque futuro adiado é futuro mítico. Este impulso para a acção revolucionária que move a Filosofia da Esperança Histórica é sempre dado por Guerra Junqueiro, cujo génio António Sérgio quis assassinar. A ironia de Junqueiro ilumina e orienta o sentido da acção política: «A história pátria resume-se quási numa série de biografias, num desfilar de personalidades, dominando épocas. Sobretudo depois de Alcácer. Povo messiânico, mas que não gera o Messias. Não o pariu ainda. Em vez de traduzir o ideal em carne, vai-se dissolvendo em lágrimas. Sonha a quimera, não a realiza» (Guerra Junqueiro). Para que a pátria ressurja, é necessário substituir a figura quimérica de D. Sebastião pela espada de Nun' Álvares. Fala o Doido, o símbolo da Pátria adormecida que atormenta os poderes estabelecidos: «Ah, do sono da morte enregelado
Porque havias de, ó alma, despertar?!...
Que é da grandeza heróica do passado,
Que é das torres d'outrora olhando o mar?!...
Blocos no chão, vestidos d´heras,
Ameias, gárgulas, esferas,
Poeiras de sonhos, de quimeras,
Luto, nudez, desolação,
Eis os restos de tantos extermínios,
De tanta dor e tanta maldição!...
Já nem cabe sequer em meus domínios
À magra sombra vã do meu bordão!
Régios palácios, fortalezas,
Mosteiros, campas, catedrais,
Orgulhosos padrões de mil empresas,
Conspurcados de lama e de impurezas,
Entre montes de entulho e silveirais!
Meus impérios distantes divididos,
Minha terra natal inculta e só!...
Loucos de dor, em torvos alaridos,
Correm bandos de aldeões espavoridos,
Miseráveis tropeis de luto e dó...
Por mim passam atónitos, julgando
Ver um monstro maldito,
Um espectro soturno e formidando...
Da escuridão do nada ressuscito...
Abro os olhos na treva... estendo as mãos...
E de mim fogem com horror, clamando,
Meus parentes, meus filhos, meus irmãos... «Deus, onde estás?!...
Deus! a mentira eterna!...
Algum lobo voraz,
Mais piedoso que o céu que nos governa,
Pode emprestar-me um antro, uma caverna,
Onde se durma e se agonize em paz?!...»
A dialéctica abre-se ao sebastianismo pessoano, dando-lhe caução filosófica, porque a filosofia elaborada pela Escola do Porto permite interpretar as suas figuras do Encoberto e do Desejado como conceitos nucleares de uma filosofia da esperança histórica de Portugal no seu contexto europeu, livrando-o da presença do elemento mitológico - o adiamento permanente da realização histórica do Desejado e a sua projecção para um futuro escatológico, fora do tempo histórico - ou mesmo do elemento autoritário - a paralisia da acção política do povo que aguarda passivamente o regresso do grande líder - o salvador nacional -, numa manhã de névoa, no seu cavalo branco, vindo da ilha longínqua onde esteve esperando a hora da volta. Graças ao trabalho conceptual da Renascença Portuguesa, sediada no Porto, Fernando Pessoa pode ser resgatado para o pensamento futuro: o Futurismo de Pessoa mais não é do que o retomar insípido dessa filosofia portuense, simulando uma ruptura impossível, porque a Escola do Porto nunca apregoou a «saudade da infância», como se olhasse somente para trás. Quando escreve que a «individualidade significa egocentrismo e certa impermeabilidade à obra de outrem» para exorcizar a sua angústia da influência (Harold Bloom), Fernando Pessoa contradiz os seus melhores vislumbres de pensamento filosófico: «A base da pátria é o idioma, porque o idioma é o pensamento em acção, e o homem é um animal pensante, e a acção é a essência da vida. O idioma, por isso mesmo que é uma tradição verdadeiramente viva, a única verdadeiramente viva, concentra em si, indistintiva e naturalmente, um conjunto de tradições, de maneiras de ser e de pensar, uma história e uma lembrança, um passado morto que só nele pode reviver. /Ora a vida - social ou outra - é essencialmente acção, e o pensamento em acção é a palavra, falada ou escrita. A base das relações sociais é portanto o idioma: não somos irmãos, socialmente falando, senão daqueles que falam a nossa língua - e tanto mais quanto mais falem a nossa língua, isto é, quanto mais nela ponham, como nós, por ela ser a língua-mãe deles, como nossa, toda a sentimentalidade instintiva, toda a tradição acumulada, que a estrutura, o som, o jogo sintáctico e idiomático trazem em si. /A base da sociabilidade, e portanto da relação permanente entre os indivíduos, é a língua, e é a língua com tudo quanto traz em si e consigo que define e forma a Nação. Estamos, neste mundo, divididos por natureza em sociedades secretas diferentes, em que somos iniciados à nascença; e cada uma tem, no idioma que é seu, a sua própria palavra de passe» (F. Pessoa). Ora, se a língua portuguesa nos une numa só nação e num só povo, o poder político estabelecido e as classes dirigentes nacionais dividem-nos, negando-nos a pátria da identidade: a corrupção e a decadência nacionais condenam os portugueses - irmanados na e pela língua materna - a ser apátridas - ou a viver como tal - na sua própria terra natal. O português vive no seu próprio solo pátrio como se fosse um estrangeiro, um imigrante e, o que é pior, um pedinte sem nada de seu (Georg Trakl): a gula dos corruptos usa e abusa do poder para privatizar em benefício próprio os bens públicos e o solo pátrio, entregando os portugueses ao abandono, à solidão e à privação totais. Portugal decadente e corrupto tornou-se estranho aos portugueses. Portugal decadente e corrupto é a alienação histórica, no sentido em que Portugal já não se lembra «nem donde vem, nem onde está, nem para onde vai» (Guerra Junqueiro). Portugal decadente e corrupto nega a pátria aos portugueses. Despido do seu elemento mitológico-inercial, o sebastianismo - que se identifica assim com a filosofia portuense da esperança histórica - é pensamento insatisfeito com a situação de decadência vigente em Portugal: o seu derradeiro objectivo político é devolver e restituir integralmente a pátria aos portugueses. Figura da consciência da queda nacional, o sebastianismo convoca todos os portugueses para a revolução, o salto qualitativo, - «Hora grande, momento único» (Guerra Junqueiro) - a ser levado a cabo ao som do grito de Nun' Álvares que os desperta e os livra desse polícia ingénito que é o medo (Guerra Junqueiro). Apesar de saber que «o português, apático e fatalista, se ajusta pela maleabilidade da indolência a qualquer estado ou condição» (Guerra Junqueiro), a filosofia da esperança nacional aposta no despertar de Portugal para o Novo Dia: o sebastianismo é o despertar da alma portuguesa, isto é, a docta spes que incita à tradução política do ideal nacional - o Desejado - em carne. Portugal ainda é uma promessa não cumprida: acorda do teu sono metabolicamente reduzido e ajuda a cumprir Portugal, escutando Uma Voz na Treva de Guerra Junqueiro.
«Já Deus, coveiro de colossos,
Ó Portugal, ó maldição!,
Dia e noite martela a tumba onde os teus ossos
Na cripta do silêncio eterno dormirão! «Com fúria doida, ó vento, escarvas
Na poeira triste... Em vão, em vão!
Tudo é morto! Na terra há unicamente larvas,
E a luz que fosforeja ainda é podridão! «Mas que castelo sobranceiro
Ao mar profundo erguendo estão?...
É reduto d'heróis, que em transe derradeiro
Querem bater-se com as feras bravas? «O Castelo
« - Não! «Uma Voz na Treva
Mas que trombeta, ó noite funda,
Clangora rouca ao seu portão?
É a alma da Pátria a bradar moribunda,
Num arquejo de dor e de vingança? «O Castelo « - Não! «Uma Voz na Treva «Mas que clamor de gargalhadas
Rasga, vermelho, a escuridão?
Lá dentro estão matando acaso a punhaladas
Algum pirata vil, filho de Judas? «O Castelo « - Não! «Uma voz na Treva «Quem és pois, quem és pois, sinistra fortaleza,
Que te ergues a cantar nesta desolação! «O Castelo «Noite! deixa cantar quem 'stá bebendo à mesa...
Silêncio! Viva el-rei!... Sou a torre do Outão! «Calou-se tudo. A terra é torva... o céu vulcânico...
E a alma, pálida, à luz verde-negra do luar,
Pressente, na mudez cavernosa do pânico,
Que a boca dos trovões profundos vai falar». (Finis Patriae)
E o que diz a voz dos trovões profundos aos jovens portugueses?
«Por terra, a túnica em pedaços,
Agonizando a Pátria está.
Ó Mocidade, oiço os teus passos!...
Beija-a na fronte, ergue-a nos braços,
Não morrerá! «Com sete lanças os traidores
A trespassaram, vede lá!...
Ó Mocidade!... unge-lhe as dores,
Beija-a nas mãos, cobre-a de flores,
Não morrerá! «Turba de escravos libertina
Nem ouve os gritos que ela dá...
Ó Mocidade, ó louca heroína,
Pega na espada, arma a clavina,
Não morrerá! «Já desfalece, já descora,
Já balbucia... é morta já...
Não! Mocidade, sem demora!
Dá-lhe o teu sangue ébrio d'aurora,
Não morrerá!
«Rasga o teu peito sem cautela,
Dá-lhe o teu sangue todo, vá!
Ó Mocidade heróica e bela,
Morre a cantar!... morre... porque ela
Reviverá!» (Finis Patriae) J Francisco Saraiva de Sousa
domingo, 6 de dezembro de 2009
L.S. Vygotsky: Psicologia e Pedagogia
«Estudar alguma coisa historicamente significa estudá-la no processo de mudança: esse é o requisito básico do método dialéctico. Numa pesquisa, abranger o processo de desenvolvimento de uma determinada coisa, em todas as suas fases e mudanças - do nascimento até à morte - significa fundamentalmente descobrir a sua natureza, a sua essência, uma vez que "é somente em movimento que um corpo mostra o que é". Assim, o estudo histórico do comportamento não é um aspecto auxiliar do estudo teórico, mas sim a sua verdadeira base. Como afirmou P.P. Blonsky, "o comportamento só pode ser entendido como a história do comportamento".» (L.S. Vygotsky) «A maior mudança na capacidade das crianças para usar a linguagem como um instrumento para a solução de problemas acontece um pouco mais tarde no seu desenvolvimento, no momento em que a fala socializada - que foi previamente utilizada para se dirigir a um adulto - é internalizada. Em vez de apelar para o adulto, as crianças passam a apelar a si mesmas; a linguagem passa assim a adquirir uma função intrapessoal além do seu uso interpessoal. No momento em que as crianças desenvolvem um método de comportamento para guiarem a si mesmas, o qual tinha sido usado previamente em relação a outra pessoa, e quando organizam a sua própria actividade de acordo com uma forma social de comportamento, conseguem com sucesso impor a si mesmas uma atitude social. A história do processo de internalização da fala social é também a história da socialização do intelecto prático das crianças. /A linguagem surge inicialmente como um meio de comunicação entre a criança e as pessoas no seu ambiente. Somente depois, quando da conversão em fala interior, ela vem a organizar o pensamento da criança, ou seja, torna-se uma função mental interna.» (L.S. Vygotsky) No período pós-revolucionário russo, o marxismo produziu uma extraordinária psicologia do desenvolvimento, cujo alcance teórico ainda não foi suficientemente analisado e integrado. L.S. Vygotsky destaca-se dos seus colegas do Instituto de Psicologia de Moscovo pelo facto de ter estabelecido as bases firmes de uma teoria unificada dos processos psicológicos humanos. A sua teoria sócio-cultural dos processos psicológicos superiores revela os mecanismos pelos quais a cultura se torna parte integrante da natureza de cada ser humano, dando especial ênfase às origens sociais da linguagem e do pensamento, sem no entanto desprezar a actividade cerebral, de resto estudada magnificamente por A.R. Luria. A teoria do desenvolvimento é compreendida à luz da teoria marxista da história da sociedade humana. Com esta afirmação, afasto-me nalguns aspectos substanciais da interpretação que a psicologia cognitiva americana (H. Gardner, J. Bruner) fez da obra de Vygotsky, submetendo-a à herança de Darwin: «O uso e a "invenção" de ferramentas pelos macacos antropóides é o fim da etapa orgânica de desenvolvimento comportamental na sequência evolutiva e prepara o caminho para uma transição de todo o desenvolvimento para um novo caminho, criando assim o principal pré-requisito psicológico do desenvolvimento histórico do comportamento. O trabalho e, ligado a ele, o desenvolvimento da fala humana e outros signos psicológicos utilizados pelo homem primitivo para obter o controle sobre o comportamento significam o começo do comportamento cultural ou histórico no sentido próprio da palavra. Finalmente, no desenvolvimento da criança, vemos claramente uma segunda linha de desenvolvimento, que acompanha os processos de crescimento e maturação orgânicos, ou seja, vemos o desenvolvimento cultural do comportamento baseado na aquisição de habilidades e em modos de comportamento e pensamento culturais» (Vygotsky). Evolução, história e ontogénese constituem as três linhas principais no desenvolvimento do comportamento. O estudo da psicologia do homem cultural adulto exige o estudo da evolução biológica, da evolução histórico-cultural e do desenvolvimento individual, mas estes três caminhos fazem parte de um mesmo processo de longa evolução ou de um mesmo trajecto evolutivo, no decurso do qual cada um deles constitui um salto qualitativo (Hegel): a passagem do animal ao homem, do homem primitivo ao homem moderno, e da criança ao respectivo homem adulto. A emergência da era cultural do homem impõe uma outra orientação ao desenvolvimento individual: a ontogénese deixa de ser vista como recapitulação da filogénese, ou seja, a criança não repete no processo do seu desenvolvimento ontogenético os traços essenciais da evolução da espécie, cobrindo, nos poucos anos da sua vida individual, o caminho percorrido pela humanidade em dezenas de milhares de anos. O desenvolvimento do homem é fundamentalmente desenvolvimento social e cultural condicionado pelo ambiente: «É impossível compreender a história da memória humana sem a história da escrita, do mesmo modo que não se pode compreender a história do pensamento sem a história da fala». A natureza e a origem sociais dos signos culturais mostram claramente que «o desenvolvimento psicológico está solidamente inserido no contexto de todo o desenvolvimento social». (Vygotsky) Em termos de elaboração conceptual, Vygotsky trabalha em duas frentes de integração psicológica - a social e a cerebral -, de modo a explicar o desenvolvimento dos processos psicológicos superiores, sem ficar prisioneiro da psicologia social e cultural ou da neuropsicologia. O mental situa-se, estrutura-se e organiza-se entre o cerebral e o social. A redução do mental - e a sua explicação - a um destes pólos conduz a abordagens distintas da vida mental: a psicologia social tende a explicar o mental em termos de processos sociais, enquanto a neuropsicologia procura identificá-lo com o cérebro em acção (Luria). Na sua obra Fundamentos da Defectologia, onde estuda as crianças deficientes, Vygotsky traça claramente uma linha de demarcação entre o natural, fisiológico ou biológico, por um lado, e o histórico-cultural, por outro. Vygotsky reconhece a autonomia relativa de cada uma destas duas linhas de desenvolvimento - a biológica e a social, mas recusa reduzir o desenvolvimento da criança a um mero crescimento e maturação orgânicos, porque, como veremos, a partir do momento evolutivo em que surge o homem cultural - primitivo ou moderno, o histórico-cultural é interiorizado mediante o uso de instrumentos psicológicos, em especial da linguagem. O comportamento histórico-cultural sobrepõe-se ao comportamento natural e transforma-o radicalmente, sem no entanto o substituir. O histórico-cultural impregna-se na estrutura da personalidade como um todo. Arnold Gehlen define mais tarde a personalidade como uma instituição social e Vygotsky acentua na sua Psicologia da Arte o sentido social da arte: «A arte é o social em nós, e, embora o seu efeito se processe num indivíduo isolado, isso não significa, de modo algum, que as suas raízes e a sua essência sejam individuais. É muito ingénuo interpretar o social apenas como colectivo, como existência de uma multiplicidade de pessoas. O social existe até onde há apenas um homem e as suas emoções pessoais». A Escola de Sociologia de Durkheim, em especial os estudos sobre o pensamento primitivo de Lucien Lévy-Bruhl, exerceu uma influência poderosa sobre a teoria do desenvolvimento de Vygotsky: o estudo integrado das funções mentais superiores deve levar em consideração o desenvolvimento dos diversos tipos de sociedades humanas. Sem negar as reacções inatas dos organismos aos estímulos, Vygotsky concentra toda a sua atenção na interacção social entre as crianças e os adultos instruídos, de modo a mostrar o carácter social da vida mental do homem. E é a partir do social e do tipo específico de organização social que Vygotsky e Luria abordam o cérebro nas suas relações com a mente. O estudo da relação entre a aprendizagem e as mudanças nas estruturas cerebrais permite-lhes antecipar uma espécie de neurodarwinismo: a eliminação de neurónios e a selectividade de determinados circuitos neurais ocorrem com base na experiência social. O princípio de Vygotsky segundo o qual não há progressão sem regressão ajuda a compreender como a experiência social pode fortalecer determinados circuitos e redes neurais e atrofiar outros, a partir de uma abundância inicial de neurónios: mais importante do que a densidade neuronal ou do que o tamanho do cérebro é o uso selectivo a que o sistema nervoso é submetido pela natureza - rica ou pobre, favorável ou desfavorável - das interacções sociais, o qual impulsiona todo o desenvolvimento. (Veja este estudo sobre o cérebro social.) No seu último curso de Filosofia, Theodor W. Adorno desafiou os seus alunos graduados a dedicar mais tempo a resolver o problema alma/corpo, esquecendo que a dialéctica vista como luta entre conceitos e mediação entre opostos abre uma via para a clarificação das relações entre alma e corpo, resistindo à imobilização e à dominação instrumental da natureza e do homem: a "solução" dialéctica deste problema clássico da filosofia exige uma teoria da sociedade e, mais especificamente, uma teoria da formação social e cultural da mente. No tempo autoritário do Culto da Personalidade, os intelectuais russos acentuavam a importância fundamental do diálogo com os outros e da interiorização desse diálogo como estrutura da própria fala interior. Mikhail Bakhtin defendia que todos os nossos pensamentos são formas de diálogos interiorizados com os outros, cujas vozes são interiorizadas, retrabalhadas e incorporadas à nossa própria voz. Embora a voz de uma pessoa possa dar a ilusão de unidade ao que diz, ela está constantemente a expressar uma plenitude de significados, uns intencionais e outros não intencionais, como se duas ou mais mentes estivessem entrelaçadas numa só cabeça e numa só consciência dialógica alargada ou expandida: as vozes duplas ou múltiplas funcionam como centros de uma só consciência. Bakhtin define a natureza social do indivíduo e do psiquismo nestes termos: «A consciência individual é um facto sócio-ideológico». Ora, dado ser de ordem sociológica e não derivada directamente da natureza, a consciência individual não pode explicar nada, devendo - ela própria - ser explicada a partir do meio ideológico e social: «O indivíduo enquanto detentor dos conteúdos da sua consciência, enquanto autor dos seus pensamentos, enquanto personalidade responsável pelos seus pensamentos e pelos seus desejos, apresenta-se como um fenómeno puramente sócio-ideológico. Esta é a razão porque o conteúdo do psiquismo "individual" é, por natureza, tão social quanto a ideologia e, por sua vez, a própria etapa em que o indivíduo se consciencializa da sua individualidade e dos direitos que lhe pertencem é ideológica, histórica, e internamente condicionada por factores sociológicos. Todo o signo é, por natureza, social, tanto o exterior quanto o interior» (Bakhtin). Esta ideia dos signos e do seu valor constitui o princípio fundamental da teoria do desenvolvimento de Vygotsky sobre o uso de instrumentos psicológicos pelo macaco (W. Köhler), pelo homem primitivo (Lévy-Bruhl, A. Luria) e pela criança: as formas de comportamento são encaradas como actividades semióticas que organizam e transformam os objectos em signos culturais, ampliados, desenvolvidos e usados pelos macacos e pelos seres humanos para manipular ou mediar o ambiente e para comunicar com os outros a respeito do mundo. A consciência humana abriga-se nas imagens, nas palavras, nos gestos significativos, enfim nos signos sociais: a sua lógica é a lógica da interacção semiótica de um grupo social. Fora desse elemento material, não há propriamente consciência humana, mas simples actos fisiológicos não iluminados pela consciência. As afinidades com a teoria da génese social do eu de George Herbert Mead ou mesmo com a teoria do eu do espellho de Charles Horton Cooley tornam-se evidentes, mas a análise genética que Vygotsky realiza da relação entre o pensamento e a palavra falada é autónoma e original: «O pensamento e a linguagem, que reflectem a realidade de um modo diferente do da percepção, são a chave da natureza da consciência humana. As palavras desempenham um papel central não só no desenvolvimento do pensamento, mas também no crescimento histórico da consciência como um todo. Uma palavra é um microcosmos da consciência humana» (Vygotsky). O estudo da fala é fundamental para a resolução de questões práticas a respeito da escola, da criação e da educação da criança, porque, segundo uma teoria psicológica dominante, a fala desempenha um papel decisivo no pensamento entendido como a fala menos o som. Quando reflecte, o homem adulto cultural fala inaudivelmente para si mesmo aquilo que está a pensar. Vygotsky submete esta teoria a uma revisão crítica: a fala e o pensamento possuem raízes diversas, podendo ocorrer separadamente não somente nos estágios iniciais do desenvolvimento, mas também na vida adulta, como mostrou a pesquisa da Escola de Würzburg. Porém, a partir de determinado período do desenvolvimento infantil, o pensamento e a fala convergem e influenciam-se reciprocamente, colocando o pensamento humano numa altura sem precedentes e possibilitando a formação de novos conceitos. Vygotsky acompanha de perto a teoria da linguagem de Karl Bühler: a função primordial da fala, tanto nas crianças como nos adultos, é a comunicação e o contacto social. A fala mais primitiva da criança é essencialmente social, global e multifuncional, mas a partir de certa idade as suas funções começam a diferenciar-se, dividindo-se nitidamente em fala egocêntrica e fala comunicativa. A fala egocêntrica emerge quando a criança transfere formas sociais e cooperativas de comportamento para a esfera das funções psíquicas interiores e pessoais. Jean Piaget estudou esta tendência da criança a transferir os padrões sociais de comportamento para os seus processos interiores, dando origem às primeiras manifestações da reflexão lógica. Segundo Vygotsky, algo semelhante ocorre quando a criança começa a conversar consigo mesma da mesma forma que conversa com os outros, sendo levada pela força das circunstâncias a pensar em voz alta. Dissociada da fala social, a fala egocêntrica leva, com o decorrer do tempo, à fala interior que alimenta tanto o pensamento autístico como o pensamento lógico. A fala egocêntrica constitui o elo genético primordial na transição da fala oral para a fala interior: o esquema de desenvolvimento esboçado por Vygotsky - primeiro a fala social, depois a fala egocêntrica e, por fim, a fala interior, diverge tanto do esquema behaviorista (fala oral, sussurro, fala interior) como da sequência de Piaget que, a partir do pensamento autístico não-verbal, passa à fala socializada e ao pensamento lógico, através do pensamento e da fala egocêntricos. Assim, para Vygotsky, o verdadeiro vector do desenvolvimento do pensamento não vai do individual para o socializado, como sucede em Piaget ou mesmo em Freud, mas sim do social para o individual: «O desenvolvimento do pensamento é, como escreve Vygotsky, determinado pela linguagem, isto é, pelos instrumentos linguísticos do pensamento e pela experiência sócio-cultural da criança. Basicamente, o desenvolvimento da fala interior depende de factores externos: o desenvolvimento da lógica na criança, como os estudos de Piaget demonstraram, é uma função directa da sua fala socializada. O crescimento intelectual da criança depende do seu domínio dos meios sociais do pensamento, isto é, da linguagem. /A natureza do próprio desenvolvimento transforma-se do biológico para o sócio-histórico. O pensamento verbal não é uma forma de comportamento natural e inata, mas é determinado por um processo histórico-cultural e tem propriedades e leis específicas que não podem ser encontradas nas formas naturais do pensamento e da fala» (Vygotsky). O desenvolvimento da criança não pode ser reduzido ao mero crescimento e maturação de qualidades inatas: a superioridade do intelecto do arquitecto em relação ao instinto da abelha (Marx) deve-se precisamento ao mecanismo da fala interior, do qual depende a reestruturação total da mente da criança e das suas funções psicológicas e cognitivas superiores, incluíndo o desenvolvimento da consciência e a organização do futuro comportamento da personalidade. J Francisco Saraiva de Sousa
quarta-feira, 2 de dezembro de 2009
Victor Frankl: Análise Existencial e Logoterapia
«A pessoa espiritual é perturbável mas não destrutível por via de uma doença psicofísica. O que uma doença pode destruir, o que ela pode desorganizar, é só o organismo psicofísico. Este organismo representa, todavia, tanto o espaço de acção da pessoa como o seu campo de expressão. A desorganização do organismo não significa menos, mas também não significa mais do que a obstrução do acesso à pessoa - nada mais! E isto devia ser o nosso credo psiquiátrico: esta crença absoluta no espírito pessoal, - esta crença "cega" na pessoa espiritual "invisível" mas indestrutível! Minhas senhoras e meus senhores, se eu não tivesse esta crença então preferia não ser médico». (Victor E. Frankl) «O espírito é, como tal, naturalmente invisível; a pseudo-metafísica espirita quer, todavia, torná-lo de algum modo visível. O espírito, como invisível, não se pode ver; em certo sentido, tem-se, portanto, de crer no "espírito". Todavia, a metafísica espiritista - na medida em que ela torna o espírito em alguma coisa visível, portanto, o quer ver -, numa palavra, a crença no espírito do "que vê o espírito", torna-se, exactamente, por isso, também uma superstição». (Victor E. Frankl) Tal como Bruno Bettelheim, Victor Frankl sofreu a experiência dos campos de concentração nazis, da qual resultou a obra Um Psiquiatra Deportado Testemunha. Frankl formulou a análise existencial em psiquiatria - cuja prática terapêutica é a logoterapia - antes dessa experiência terrível, mais precisamente em 1934. A análise existencial opõe-se à psicanálise. Para Frankl, a vontade de sentido é mais dominante na economia mental do homem que o princípio de prazer de Freud e a vontade de poder de Adler: os doentes de Frankl não sofrem somente de frustrações sexuais ou de complexos de inferioridade, mas são, a maioria das vezes, confrontados com um vazio existencial que lhes provoca vertigens. A neurose - vista como um tipo de existência ou de ser-no-mundo - revela um ser frustrado do sentido da vida. Frankl defende que a necessidade fundamental do homem não é nem a satisfação sexual nem a valorização de si, mas a plenitude de sentido. Ao automatismo freudiano de um aparelho mental, opõe a autonomia espiritual do homem que, no seu íntimo, é um ser responsável. A existência humana tem, ao mesmo tempo, o carácter de um problema, tal como a vida, e o carácter de uma resposta: não é o homem quem deve pôr a questão do sentido da vida, porque o interrogado é o próprio homem. Lançado no jogo do mundo, o homem é desafiado a dar uma resposta às questões que a sua vida lhe coloca. A resposta dada pelo homem é sempre uma resposta em acto. A análise existencial de Frankl encara o neurose como um tipo de existência: o objectivo do seu método terapêutico é conduzir o homem à consciência da sua responsabilidade. Aquilo que na logoterapia se torna consciente não é o instinto, como sucede na psicanálise, mas o espiritual: o homem é um ser responsável, porque não é somente ser de pulsão, mas também e fundamentalmente ser espiritual. Toda a acção terapêutica está centrada não nas pulsões, mas no inconsciente espiritual: a tarefa do psiquiatra é libertar a pessoa espiritual do handicap psicofísico. Sören Kierkegaard definiu o homem como «uma síntese de alma e corpo» e, ao mesmo tempo, como «uma síntese do temporal e do eterno». A noção de homem incondicionado de Frankl está muito próxima da noção de existência humana de Kierkegaard, o que lhe permite criticar a problemática da terapêutica psicocirúrgica na sua relação controversa com a psicoterapia. Para facilitar a compreensão desta controvérsia médica, penso poder afirmar que Frankl censura basicamente o materialismo subjacente à utilização da psicocirurgia, até porque ele próprio recomendou algumas vezes esse procedimento cirúrgico para aliviar os seus doentes do sofrimento desnecessário e sem sentido: «Deixar sofrer um homem desnecessariamente é um erro médico». A cirurgia cerebral é indicada não para privar o homem do sofrimento da esfera do eu - sofrimento necessário e com sentido, o que equivaleria à auto-alienação, mas para o aliviar do sofrimento sem sentido, pondo o eu em descanso. Egas Moniz (1874-1955) recebeu o Prémio Nobel da Fisiologia e Medicina em 1949, prémio partilhado com Walter Rudolf Hess (1881-1973), por ter desenvolvido a angiografia cerebral e a técnica de lobotomia frontal ou de leucotomia pré-frontal concebida como uma terapêutica para determinadas perturbações emocionais. Os mass media e muitos neurocientistas não perdoaram a Egas Moniz o facto de conceber a destruição de uma grande porção do encéfalo como uma forma de tratamento e, por isso, contam que este médico português acabou estranhamente paralisado por um tiro disparado na espinha por um dos seus pacientes lobotomizados. Portanto, foi feita justiça poética contra o médico português que, sem suporte teórico substancial, acreditava que podia corrigir o excesso de emoção através deste procedimento cirúrgico. De facto, nesse tempo sombrio, Klüver & Bucy mostraram que lesões no encéfalo podiam alterar o comportamento emocional e, na década de 30, John Fulton e Carlyle Jacobsen relataram que lesões do lobo frontal tinham efeitos calmantes nos chimpanzés. Confiante no princípio segundo o qual se o sistema límbico controla a emoção, conforme estipulado pelo circuito de James Papez (hipocampo, hipotálamo e giro do cíngulo), então as pessoas com problemas emocionais - pacientes melancólicos, obsessivo-compulsivos e esquizofrénicos - podem ser clinicamente ajudadas, Egas Moniz não se inibiu e desenvolveu o procedimento cirúrgico da psicocirurgia, aplicando-o aos seres humanos. Milhares de cirurgias foram realizadas em todo o mundo nos anos 40 e 50 do século XX, usando diversos procedimentos: os pacientes submetidos a estes procedimentos cirúrgicos, em especial os esquizofrénicos, tornaram-se meras sombras dos seus eus anteriores. Egas Moniz queria «golpear literalmente as associações delirantes» (Frankl) dos seus pacientes, como se o seu procedimento fosse uma intervenção cirúrgica na psique e como se o bisturi pudesse atingir a realidade da alma. A sua explicação redutora lembra o chamado delírio interpretativo racionalizante secundário. Segundo Frankl, a leucotomia não toca a pessoa espiritual - o seu eu inalterado, a sua existencialidade, mas apenas o organismo psicofísico - a sua facticidade: «O corpóreo é condição, mas não causa do psico-espiritual. A doença física limita as possibilidades de desenvolvimento da pessoa espiritual, e o tratamento somático restitui-lhas, dá-lhe, de novo, oportunidade para se desdobrar e isto ensina-nos a clínica. O que nós podemos explicar através da clínica é somente a diminuição das possibilidades do espiritual; mas podemos compreender a realidade do espiritual unicamente a partir de uma metaclínica» (Frankl). A lobotomia deixou de ser utilizada, excepto nos casos de perturbação obsessiva intratável, onde a operação moderna se limita a uma cingulotomia, em vez de uma lobotomia frontal completa. A maioria dos neurocientistas tende a ser materialista na sua actividade experimental, embora o fisicalismo enquanto filosofia seja impensável: o materialismo radical auto-anula-se enquanto figura do pensamento. No entanto, no seio da própria ciência, surgiram críticas antimaterialistas que merecem atenção. Pioneiros geniais das neurociências tais como Charles Sherrington e W. Penfield abandonaram o materialismo, adoptando a defesa da autonomia da alma, e John C. Eccles e Karl Popper defenderam sempre um dualismo interaccionista. Alistar Hardy acusa as concepções monistas que predominam na comunidade científica de serem excessivamente perigosas para o futuro da civilização, porque estas ideias convertem a dimensão espiritual do homem simplesmente num produto superficial de um processo material. O dogma fisicalista é tão injustificável quanto os dogmas mais absurdos da Igreja Medieval. Diversos psiquiatras mostraram que a crença no reducionismo tem um efeito desastroso e nefasto sobre a saúde mental, especialmente sobre a prudência e o juízo do homem. Viktor Frankl acredita que uma das maiores ameaças à saúde mental é o vazio existencial. Com efeito, o número de pacientes (20%) afligidos pelo sentimento de vacuidade interior - o sentimento de total e absoluta falta de sentido da vida, especialmente em face da morte, que recorrem à ajuda clínica, aumenta assustadoramente em todo o mundo, sobretudo nos países ocidentais. Frankl pensa que esta perturbação é o resultado directo e desastroso da negação do valor e de uma vida com valor - atitude característica da moderna sociedade cientificamente orientada, ou seja, da crença de que, como a ciência é, em grande medida, reducionista quanto à sua técnica, o reducionismo é a única filosofia em que devemos crer. Para Frankl, existe no homem uma tendência intrínseca para procurar significados que possa compreender e valores que possa actualizar. O reducionismo predominante mais não é do que um disfarce do niilismo que, na sua versão actual, deixou de anunciar o "nada" para afirmar simplesmente "nada mais do que": a psiquiatria, a psicoterapia e a psicanálise apresentam o homem como um ser reflexo ou um feixe de instintos, como ser condicionado, accionado e determinado, ora pelo complexo de Édipo, ora por sentimentos de inferioridade. Ora, afirmar que o homem nada mais é do que feixe de reflexos ou feixe de pulsões é apresentá-lo como «uma marionete - ou, como se diz hoje em dia, um zombie - que esperneia por meio de fios, ora ridiculamente visíveis, ora escondidos» (Frankl). O homem é algo mais do que aquilo que pode ser explicado completamente pelo biológico, psicológico e sociológico: o biologismo, o psicologismo e o sociologismo pecam contra o espiritual, construindo imagens do homem que ameaçam o próprio homem e que o impedem de alcançar um humanismo: «Enquanto virmos no homem somente isto ou aquilo condicionado, enquanto não virmos no homem também o incondicionado, não descobrimos o verdadeiro homem, o Homo Humanus, mas sim uma espécie de homúnculus. A partir do biologismo, psicologismo e sociologismo não há qualquer caminho para o humanismo, mas para um simples homunculismo!» (Frankl). Nesta perspectiva que aponta para um pensamento metaclínico, o verdadeiro niilismo não é o existencialismo, que afirma a irredutibilidade do ser humano, recusando tratá-lo como coisa entre coisas, mas o reducionismo que, nas escolas e nas universidades, socializa as pessoas, levando-as a crer na concepção reducionista do homem e na visão reducionista da vida - o clericalismo científico, segundo a expressão feliz de Teixeira de Pascoaes. O vazio existencial é, portanto, a frustração da força motivacional fundamental do homem: a vontade de sentido, completamente distinta da vontade de poder dos adlerianos e do desejo de prazer dos freudianos. Hyman confirmou esta perspectiva existencial nos seus pacientes submetidos a cirurgia cerebral: a procura de sentido é uma força motivacional básica do animal symbolicum (Ernst Cassirer). Esta descoberta da necessidade de sentido no ser humano levou Frankl a tomar uma posição oposta à de Freud a respeito da religião. A teoria freudiana da religião é sobejamente conhecida: Deus mais não é do que uma imagem interiorizada do pai todo-poderoso e a religião, uma neurose obsessiva. Frankl rompe claramente com esta noção de Deus, defendendo a solidez da ideia de Deus na sua obra O Deus Inconsciente. Além disso, certas neuroses são produzidas pelo recalcamento da religiosidade. Frankl não proclama uma determinada religião universal: o que ele pensa é que o homem caminha para uma religião pessoal, na qual cada um descobrirá a sua própria linguagem. De certo modo, a religião pessoal decorre do próprio processo de secularização da sociedade e da consciência e do seu corolário - a privatização da religião. A afirmação de Marx segundo a qual «a religião dos trabalhadores não conhece Deus dado que procura restaurar a divindade do homem», que chocou Henri de Lubac e que foi completamente explicitada por Ernst Bloch, vai ao encontro da noção de que os homens diferentes têm valor diferente, mas dignidade igual: a dignidade incondicional de todos os seres humanos, incluindo os psicóticos, os doentes e os que sofrem. O homem é condicionalmente um ser (espiritual) incondicionado: «O homem é mais do que organismo psicofísico; ele é pessoa espiritual. Como tal, ele é livre e responsável - livre do psicofísico e livre para a realização de valores e a satisfação mental da sua existência (Dasein)» (Frankl). O homem luta não só pela existência, mas também e sobretudo por um conteúdo da existência: a tarefa mais notável da acção psiquiátrica é ajudá-lo nesta luta por um sentido da existência e pelo auxílio recíproco na descoberta do sentido. A imagem do homem esboçada por Frankl não oferece soluções definitivas para os problemas metaclínicos - as perguntas eternas da humanidade pensante: o seu objectivo é estimular as pessoas e convidá-las para o pensamento metaclínico, convocando-as para a necessidade de uma decisão. Num sentido amplo, a concepção frankliana da religião e do seu papel essencial na vida e na promoção da saúde das pessoas foi recentemente suportada empiricamente pela pesquisa no domínio da neurociência espiritual (D'Aquili & Newberg, 2000, Lee & Newberg, 2005, Newberg & Lee, 2005): a religião não só desempenha um papel crucial na vida de milhares de pessoas, como também exerce um efeito positivo sobre a sua saúde. (Este post desenvolve ideias tratadas num post anterior - Rollo May: Psiquiatria Existencial, e retomadas em Defesa de uma Psiquiatria Dialéctica.) J Francisco Saraiva de Sousa
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