sábado, 7 de fevereiro de 2009

O Nascimento da Ciência Moderna (4)

«(Na mecânica ondulatória,) as leis da natureza não têm um carácter tão exacto como na física clássica; não há já um determinismo rigoroso dos fenómenos, mas somente leis de probabilidade (= leis estatísticas). É o que exprime de modo preciso o célebre "princípio de incerteza" enunciado por Werner Heisenberg. As próprias noções de causalidade e de individualidade tiveram que ser submetidas a um novo exame, e desta considerável crise de princípios directores das nossas concepções físicas sairão, sem dúvida, consequências filosóficas ainda hoje não bem compreendidas». (Werner Heisenberg)
Se lermos com muita atenção a obra de W. Heisenberg, ficamos com a impressão de que a revolução científica do século XX pode ser vista como uma espécie de revolução anti-copernicana, a qual exige uma nova filosofia. Quando formula em termos matemáticos as leis da natureza, a mecânica quântica "pressupõe sempre o homem e não devemos esquecer, como diz Niels Bohr, que, no espectáculo da vida, nunca somos apenas espectadores, mas também, constantemente, actores" (Heisenberg). O reconhecimento do homem como "actor" leva Heisenberg a apostar na cultura humanística que deriva inexoravelmente do pensamento grego e a identificar essa aposta com a "opção pelo Ocidente". Nesta perspectiva, não há "teorias mortas", como afirmam muitos burrecos nacionais que pretendem filosofar e criticar sem previamente terem adquirido conteúdos objectivos de conhecimento, como se a crítica fosse anterior ao conhecimento e à própria entrega ao objecto. A perspectiva destes luso-burrecos é a da tagarelice ou, como diz Heidegger, a da vida inautêntica e fácil de homens alienados do seu poder-ser. Darwin, Marx e Freud foram lidos como tendo levado a revolução copernicana até à intimidade do homem, embora Marx nunca tenha usado essa expressão para caracterizar a sua imensa revolução teórica. A mecânica quântica imprime outro rumo, recolocando o homem na natureza e atribuindo-lhe um papel activo no conhecimento da natureza. A imagem científica da natureza deixa de ser supostamente uma imagem da natureza "em si mesma" ou tal como Deus a concebeu na criação e passa a ser a imagem da relação do homem com a natureza. A noção de limite readquire um novo estatuto epistemológico e metafísico, questionando e comprometendo a própria noção de progresso. Deste modo, Heisenberg estabeleceu uma conexão essencial entre a "cosmologia" e a antropologia, conexão que foi pensada pelos físicos posteriores e, aparentemente, desprezada pelos filósofos absorvidos na tarefa de destronar ou destruir o homem. O positivismo teve este efeito perverso na cultura ocidental: "separar" as duas culturas (S.P. Snow), como se elas fossem irreconciliáveis, dando prioridade à cultura científica sobre a cultura filosófica. Contudo, tanto a revolução científica do século XVII como a revolução científica em andamento desmentem cabalmente o positivismo e a sua pobre visão do mundo. Nos seus últimos desenvolvimentos teóricos, a própria física "regressa" à filosofia ou, como diz Heisenberg, "é filosofia", e, curiosamente, quando Stephen Hawking fala do "fim da física", retoma um velho conceito hegeliano. Uma tal teoria unificada e, portanto, completa do cosmos, visa reconciliar os dois pilares da física contemporânea, a teoria da relatividade geral de Albert Einstein, que permite compreender o universo em grandes escalas (estrelas, galáxias e a imensidão do universo), e a mecânica quântica, que permite compreender o universo nas mais pequenas escalas (átomos, moléculas, electrões e quarks). A teoria das supercordas pretende casar as leis que regem o grande e o pequeno, superando os seus conflitos e mostrando que as duas teorias precisam uma da outra: toda a matéria e todas as forças (electromagnética, fraca, forte e gravítica) são unificadas sob o mesmo conceito de oscilações de cordas. (Regressemos ao nosso tema!)
3.3. A Física de Galileu. Durante o seu período de Pisa, o jovem-Galileu tenta, aliás na peugada de Benedetti, matematizar a física do impetus, mas, como não consegue superar o seu impasse, será levado a edificar uma nova física, cujo modelo lhe é fornecido por Arquimedes. O jovem-Galileu desenvolve a dinâmica do impetus, de modo a mostrar que o movimento do móvel é um efeito da força que o anima: a força motriz imprimida ao móvel explica o fenómeno do arremesso, sem ser necessário recorrer à reacção do meio, como fez Aristóteles. A noção de força motriz permitiria a formulação do princípio de inércia, desde que concebesse a continuação indefinida do movimento, mas, para Galileu e Benedetti, o movimento eterno era um absurdo, porque a força que produz um movimento não pode permanecer a mesma em dois momentos consecutivos e, por isso, o movimento produzido desacelera até se extinguir. Deste modo, a física do impetus não só é incompatível com o princípio de inércia, como também nega a aceleração do movimento de queda. Para o jovem-Galileu, a velocidade ou a lentidão do movimento de queda depende do maior ou menor peso do corpo que cai. A velocidade não é função da resistência do meio, como em Aristóteles, mas é algo inerente e intrínseco ao próprio movimento: a velocidade da queda de um corpo é proporcional ao seu peso e o seu valor é constante para cada corpo dado. É certo que um corpo que cai, cai cada vez mais depressa, mas esta aceleração só se dá no início do movimento da queda até ao momento em que o corpo em queda atinge a sua velocidade própria, proporcional ao seu peso. Nesse momento, a velocidade permanece constante e o movimento acelerado transforma-se em movimento uniforme. A velocidade própria de um corpo em queda é função do seu peso, não do seu peso absoluto, mas do seu peso específico ou relativo. Com a introdução da noção de peso relativo, Galileu faz rebentar a física do impetus. O caso de um corpo pesado lançado ao ar verticalmente permite-lhe compreender que a leveza e o peso são definidos a partir dos efeitos que produzem: a leveza faz com que o corpo suba e o peso faz com que o corpo desça. Leveza e peso não são qualidades absolutas, mas sim propriedades relativas ou meras relações. Um corpo leve eleva-se e um corpo pesado desce em função do meio em que está colocado: a força com que sobe ou desce é medida pela diferença entre o seu peso específico e o peso de um volume igual do meio em que se encontra. O facto de um corpo possuir um peso absoluto leva Galileu a reconhecer que o único movimento natural é o movimento dos corpos pesados para baixo, ou seja, para o centro do mundo. A distinção entre peso absoluto e peso relativo, conjugada com a ideia de que a velocidade da queda de um corpo é função do seu peso relativo no meio dado, conduzem Galileu a reconhecer que é no vazio e apenas no vazio que os corpos pesam os seus pesos absolutos e caem com uma velocidade que é a sua velocidade própria. Com esta última noção, Galileu é levado a definir o movimento como estado. A ruptura com Aristóteles e a física do impetus consuma-se: Galileu já pode elevar-se ao nível de uma física matemática, embora tenha retido a noção de centro do mundo onde se situam os corpos pesados e ao seu redor, em camadas concêntricas, os corpos mais leves.
O que é o movimento para Galileu? O movimento é algo estranho que não afecta o corpo que dele é dotado, como pensavam os aristotélicos ou mesmo Leibniz: estar em movimento ou estar em repouso não afecta, isto é, não altera o corpo em movimento ou em repouso. O corpo é totalmente indiferente ao movimento e ao repouso. Assim, não podemos atribuir o movimento a um determinado corpo em si mesmo, porque um corpo só está em movimento em relação a outro corpo que supomos estar em repouso. Todo o movimento é relativo e, por isso, pode ser atribuído ad libitum a um ou a outro dos dois corpos. Porém, embora seja relação, o movimento é um estado, tal como o repouso. Ambos são estados persistentes. De acordo com a famosa lei da inércia, a primeira lei do movimento de Newton, que não foi formulada por Galileu, como lhe foi atribuído pelos seus seguidores, Cavalieri, Torricelli e Gassendi, mas por Descartes, um corpo abandonado a si mesmo persiste eternamente no seu estado de movimento ou de repouso, a não ser que sofra a acção de uma força externa que transforme um estado de movimento em estado de repouso e vice-versa. A eternidade não é inerente a todo o tipo de movimento, mas apenas ao movimento uniforme em linha recta. Uma vez posto em movimento, um corpo conserva eternamente a sua direcção e a sua velocidade, desde que não sofra a acção de uma força externa. Embora conhecesse o movimento circular e eterno das esferas celestes, o aristotélico Simplício, no caso do diálogo galilaico, retorquía que nunca tinha encontrado um movimento rectilíneo permanente e com razão, porque um tal movimento, conforme mostrou Salviati, só pode ser produzido no vácuo. Isto significa que os corpos que se movem num espaço vazio e infinito não são corpos reais que se deslocam num espaço real, mas corpos matemáticos que se deslocam num espaço matemático homogéneo e infinito. A conclusão de Salviati de que todos os corpos caem com a mesma velocidade, independentemente do peso (massa), exige, evidentemente, o auxílio da segunda lei do movimento e da lei da gravitação de Newton. A lei da aceleração afirma que, se um corpo sofrer uma acção de uma força externa, ele acelerá no sentido dessa força, e a aceleração será proporcional à força e inversamente proporcional à massa do corpo (F= ma). A lei da gravitação universal de Newton afirma que todo o corpo, partícula ou quantidade de massa no universo atrai todos os demais corpos do universo, com uma força proporcional ao produto das suas massas e inversamente proporcional ao quadrado da distância entre eles. Estas leis do movimento, incluindo a lei da acção e reacção, e a lei da gravitação universal foram formuladas por Newton no seu livro "Os Princípios Matemáticos da Filosofia Natural" (1687).
Antecipada filosoficamente por Giordano Bruno, a noção de universo infinito é consumada pela física de Newton. Embora acredite no éter que enche o espaço do nosso sistema solar, Newton concebe esse éter como uma substância de tal modo ténue e elástica que não chega a encher completamente o espaço físico. O movimento dos cometas mostra que existe espaço vazio, porque, caso contrário, não se moveriam com liberdade em todas as direcções, conservando o seu movimento, mesmo quando se movem na rota contrária à dos planetas. E, dado a matéria sem vis inertia (resistência) ser impensável, os espaços celestes são destituídos de matéria: a estrutura do éter é descontínua, isto é, compõe-se de partículas extremamente pequenas, entre as quais existe vácuo. Esta estrutura elástica do éter implica necessariamente o vácuo, ideia que Newton opõe à concepção cartesiana de um mundo constituído por matéria uniforme e que, portanto, se estende de modo contínuo, impedindo a elasticidade e o próprio movimento. Portanto, Newton considera inadmissível a existência de um espaço completamente ocupado ou de um plenum que oporia uma resistência extraordinária ao movimento, tornando-o impossível e obrigando-o a cessar, ao mesmo tempo que advoga que os espaços celestes são constituídos por um éter extremamente rarefeito, fino e ténue, dotado de uma estrutura granular, que possibilita a existência do vácuo e a recusa de um meio contínuo. Além disso, ao estipular a existência de um espaço absoluto e de um tempo absoluto, distintos do espaço e do tempo relativos, Newton pode conceber um tempo matemático que flui uniformemente, sem relação com nada exterior, e um espaço que permanece sempre semelhante e imóvel, de modo a garantir um movimento absoluto, uniforme, rectilíneo e inercial, distinções que serão abandonadas pela teoria geral da relatividade de Einstein. A libertação do espaço de tudo o que o enche identifica-o com o espaço euclidiano, aquele que toma a forma de um continente.
A revolução galilaica consiste em explicar o ser real pelo ser matemático ou, como declara o próprio Galileu, o livro da natureza está escrito em caracteres matemáticos ou geométricos. O verdadeiro assunto do "Diálogo dos Grandes Sistemas" não é tanto a oposição entre dois sistemas astronómicos, mas fundamentalmente a defesa da explicação matemática da natureza em oposição à explicação não-matemática do senso comum e da física aristotélica. Dirigido ao "grande público", o livro de Galileu visa a destruição da concepção aristotélica do mundo e da ciência e a sua substituição pela concepção copernicana do mundo, embora sem o fazer directa e explicitamente. Trata-se, portanto, de uma obra de filosofia da natureza escrita na forma de diálogo, cujos intervenientes são Salviati, o próprio Galileu, Sagredo, o leigo inteligente, e Simplício, o sage aristotélico. Em vez de "imaginar" o movimento em termos de esforço (impetus) e de deslocamento, como fazia a ciência medieval, Galileu "pensa"-o em termos de velocidade e de direcção. Contra a ciência aristotélica, baseada na experiência e na percepção dos sentidos, Galileu reclama o poder do pensamento e, por conseguinte, a herança do matematismo platónico: o pensamento puro e sem mistura, e não a experiência sensorial, é que está na base da "nova ciência matemática da natureza". Isto é dito claramente aquando da discussão do famoso exemplo da bala que cai do alto do mastro de um navio em movimento. Galileu explica longamente o princípio da relatividade física do movimento, a diferença entre o movimento do corpo em relação à Terra e o seu movimento em relação ao navio, e, a seguir, sem fazer qualquer referência à experiência, conclui que o movimento da bala em relação ao navio não muda com o movimento deste último. Quando Simplício lhe faz a pergunta, "Fizeste uma experiência?", Galileu responde: "Não, e não preciso fazê-la, e posso afirmar, sem qualquer experiência, que é assim, porque não pode ser de outra forma". A física galilaica desenvolvida em Pádua é uma ciência feita a priori. A teoria precede a experiência: eis o sentido do vector epistemológico estabelecido por Galileu. A experiência é inútil, porque, antes de toda a experiência, já possuímos o conhecimento que procuramos. Ao contrário da teoria do conhecimento elaborada mais tarde por Newton, fundada sobre o lema hypotheses non fingo (não imagino hipóteses), os conceitos galilaicos não são arrancados da experiência: eles são pressupostos e, como tal, são conceitos "fictícios". É certo que a realidade da experiência pode não estar completamente de acordo com a dedução, mas são estes conceitos prévios que nos permitem compreender e explicar a natureza e fazer "experiências", isto é, fazer perguntas e interpretar as respostas. As leis fundamentais do movimento, leis que determinam o comportamento espacial e temporal dos corpos materiais, são leis de natureza matemática, portanto, leis dotadas da mesma natureza que as leis que governam as relações das figuras e dos números. Estas leis não se encontram na natureza, mas no nosso espírito e na nossa memória, como ensinou Platão: conhecer é recordar. É por isso que somos capazes de dar provas puramente matemáticas das proposições que descrevem os sinais do movimento e de desenvolver a linguagem da ciência natural, de questionar a natureza através de experiências construídas de maneira matemática e de ler o grande livro da natureza que está escrito em linguagem matemática. A física galilaica é, pois, uma geometria do movimento, do mesmo modo que a física do divus Archimedes era uma física do repouso (hidroestática).
A passagem de um mundo fechado para um universo aberto, para utilizar a bela expressão de Koyré, é determinada, em última instância, pelo abandono de um estado natural predominante na Idade Média em que cada coisa estava no seu lugar próprio e a Terra em repouso permanecia no centro do universo (geocentrismo) e pela adopção de um estado natural no qual o trabalho é muitíssimo valorizado e o mundo, tal como a Terra girando em torno do Sol (heliocentrismo), se põe em movimento. Desta perspectiva, a dinâmica afigura-se como uma correspondência da economia de mercado aberta em vias de nascimento acelerado. O primado do movimento sobre o repouso significa que emergia, no novo mundo social, dominado pela burguesia mercantil, um mercado cada vez mais aberto e extenso, completamente em rota de colisão interna com o anterior mercado fechado, onde o trabalho e a actividade mercantil eram subestimadas pelos estratos sociais superiores da sociedade feudal.
No Renascimento, a linha divisória entre os seguidores de Aristóteles e os de Platão era clara: os platónicos eram aqueles que reivindicavam para as matemáticas uma posição superior, atribuindo-lhes um real valor e uma posição decisiva na física, enquanto os aristotélicos eram aqueles que viam a matemática como uma ciência abstracta e de menor valor do que a física e a metafísica, embora não duvidassem da certeza das proposições ou demonstrações geométricas e não negassem o direito de medir o que é mensurável e de contar o que é numerável. O que os distinguia realmente era a concepção que tinham da estrutura do ser e da estrutura da ciência. Neste campo de luta teórica, Galileu colocava-se na posição dos platónicos e era como platónico que os seus contemporâneos o viam: a sua filosofia matemática da natureza constituía um retorno a Platão e a sua ciência, uma vitória empírica de Platão sobre Aristóteles. Galileu mostrou que a ciência matemática da natureza era possível, sem no entanto ter refutado as objecções aristotélicas à matematização da natureza. Aristóteles alegava contra Platão que as qualidades sensíveis e as essências não podem ser matematizadas. Galileu (e a sua física dos graves), Descartes (e a sua física dos choques) e Newton (e a sua física das forças) conseguiram matematizar a física à custa de rejeitar as propriedades qualitativas e de renunciar ao mundo da percepção sensível e da experiência comum, substituindo-o pelo mundo abstracto e incolor de Arquimedes. O movimento é o movimento dos corpos arquimedianos no espaço homogéneo e infinito da nova ciência: o único movimento que é governado pelos números, isto é, pelas leges et rationes numerorum. (FIM da série dedicada ao nascimento da ciência moderna.)
J Francisco Saraiva de Sousa

3 comentários:

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Bem, estive a ouvir Alberto João Jardim e talvez ele tenha razão. Para convencer os madeirenses a votar nas eleições europeias, Jardim diz que a Medeira deve mais à Europa do que à República Portuguesa. Sim, também o Norte, em especial o Porto, estaria melhor se gozasse do estatuto de autonomia. Como estamos, o dinheiro vai todo para fomentar o desenvolvimento corrupto da capital.

Ah, dado o jogo de amanhã, lanço uma maldição para o Benfica: que o diabo o leve para o Inferno. Maldito seja! :)

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Quando o sol regressar e abolir a chuva, combatendo o frio húmido do Porto, escrevo um post sobre "Deus e a Física" ou o Deus dos físicos e dos filósofos.

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Bem, agora está concluído! Novos desenvolvimentos serão apresentados noutros posts. :)