terça-feira, 24 de fevereiro de 2009

Homofobia ou Preconceito Sexual? (2)

Nos últimos 30 anos, a hostilidade antigay mudou consideravelmente, graças à eficácia política do conceito de homofobia que, ao ser incorporado e usado como slogan político pelo movimento de libertação gay, obrigou a sociedade e os governos a tomar consciência da opressão das minorias sexuais. Diversos movimentos reformistas da sociedade civil, entre os quais o movimento de libertação gay em parceria com organizações políticas liberais, manifestam-se para conseguir alargar as liberdades civis básicas aos homens gay e às lésbicas e, em face destas pressões, os governos foram obrigados a abolir muitas leis discriminatórias, em especial as leis da sodomia, e a elaborar novas leis que garantam as liberdades reivindicadas. Em Portugal, por iniciativa de um governo socialista, foi aprovada, em Março de 2001, a lei que garante alguns direitos a duas pessoas do mesmo sexo (ou de sexo oposto) que vivam juntas há mais de dois anos. A este reconhecimento legal das uniões de facto segue-se, na próxima legislatura socialista, o reconhecimento legal dos casamentos homossexuais e provavelmente da adopção de crianças por parte de pessoas e casais homossexuais. Apesar das vitórias já alcançadas, muitas pessoas inumanas e intolerantes continuam a condenar moralmente a homossexualidade e a bissexualidade e a rejeitar os membros destas minorias eróticas, ao abrigo de velhas máscaras ideológicas de cunho cristão.
Nos USA, os movimentos cristãos antigay aperceberam-se da forte carga negativa e crítica do conceito de homofobia e, para levar a cabo a sua tarefa de bloquear os direitos cívicos dos homens e das mulheres homossexuais, entre os quais a não discriminação no trabalho, os direitos parentais e o reconhecimento legal dos casais do mesmo sexo, mudaram de estratégia: os activistas cristãos e conservadores antigay começaram a afirmar que não eram homófobos, mas que tinham direito a expressar as suas crenças religiosas e a lutar pelo respeito dos seus direitos. A mudança de estratégia reside no facto da condenação cristã da homossexualidade ser justificada, não pelo medo individual, mas pelos valores religiosos e pela identificação com as organizações antigay conservadoras e reaccionárias: a hostilidade cristã antigay pretende fundamentar-se em convicções religiosas e políticas que não aplica à pedofilia verificada nos circuitos intra-eclesiais. Embora esta justificação ideológica de cariz religioso não seja suficiente ou mesmo relevante para invalidar o conceito de homofobia, ela tem o mérito não pretendido de reconhecer que os indivíduos homossexuais de ambos os sexos constituem uma minoria quase-étnica que luta pelo reconhecimento dos seus direitos cívicos, tal como o fizeram os movimentos negros contra o racismo e os movimentos feministas contra a discriminação das mulheres. A luta travada pelos heterossexuais homófobos contra as pessoas homossexuais procura atribuir-lhes um status de grupo à margem da sociedade, esquecendo que os homossexuais já se libertaram, em grande medida, da invisibilidade da vida clandestina e que os argumentos fundados numa suposta "legitimidade religiosa" são pouco convincentes numa sociedade secular, na qual os grupos religiosos são tão "minoritários" em termos de legitimidade quanto as minorias eróticas. Na esfera pública, os conflitos intrapsíquicos cedem lugar aos conflitos intragrupais, colocando na ordem do dia o paradigma reformista e liberal dos direitos cívicos. Doravante, os indivíduos homossexuais não querem mais regressar ao armário. O futuro pertence às forças que lutam pela sua descolonização, isto é, pela sua libertação das trevas obscurantistas e inquisitoriais dos grupos religiosos.
Para fazer face a esta reacção conservadora, tanto o movimento de libertação gay como o feminismo lésbico tiveram de mudar de perspectiva teórica e política: a fronteira entre heterossexualidade e homossexualidade começou a ser vista como uma construção cultural, portanto, como uma fronteira arbitrária e artificial, e o objectivo político almejado é destrui-la. O confronto com a homofobia ou com o heterosexismo exige, portanto, uma mudança operada ao nível da consciência individual e colectiva acerca da sexualidade e do género. Para as feministas lésbicas, "ser lésbica" não é apenas uma matéria de atracção erótica e sexual, mas algo mais profundo que envolve a rejeição da heterossexualidade compulsória inscrita na sociedade reinante, a qual faz parte integrante do sistema patriarcal que subjuga e oprime as mulheres. Todas as mulheres podem ser lésbicas, independentemente dos seus sentimentos sexuais (Rich, 1980; Epstein, 1999; Seidman, 1993). Kitzinger (1987, 1996) rejeita explicitamente a noção de homofobia, alegando que ela reduz a opressão social a uma construção psicológica. Neste aspecto, bem como noutros, o feminismo lésbico distingue-se do movimento de libertação gay. Para os activistas gay, a heterossexualidade exclusiva significa medo das pessoas do mesmo sexo. Este medo é anti-homossexual e conduz necessariamente a frustrações que se exteriorizam em actos de hostilidade individual e institucional dirigida contra os indivíduos homossexuais. Assim, a homofobia dos heterossexuais mais não é do que a rejeição dos seus próprios desejos homo-eróticos, embora possa "ser curada" pela aceitação dos aspectos reprimidos da sua própria sexualidade e da identidade de género (Altman, 1971). A libertação gay combina estruturas de trabalho psicológicas e políticas, enquanto o feminismo lésbico adopta uma abordagem fundamentalmente política. Contra o construtivismo social que lhes é subjacente, levado ao extremo pela Queer Theory que nega a diferença biológica, os dois discursos de género, o gay masculino e o lésbico feminino, reflectem diferenças sexuais e de género essenciais, em especial a maior plasticidade das sexualidades de género feminino e, por contraste, a maior rigidez das sexualidades de género masculino (Diamond, 2004, 2000; Baumeister, 2000; Lippa, 2006). Estas são diferenças biológicas incontornáveis, determinadas geneticamente e submetidas a controle neuro-hormonal (Gooren, 2006; De Sousa, 2006; Wilson & Davies, 2007; Morris, Jordan & Breedlove, 2004; Hines, 2006; Goodfellow & Darling, 1988).
O facto das lésbicas serem menos hostilizadas pelos homens heterossexuais possibilita-lhes abdicar sem grande prejuízo da noção de homofobia, mas o mesmo já não pode ser dito dos homens gay, o alvo por excelência da hostilidade heterosexista: a associação entre homofobia e androcentrismo é demasiado evidente e, por isso, os activistas gay têm pouco espaço de manobra para abdicar dessa construção psicológica. O feminismo lésbico enveredou pela via do sociologismo, sendo muito influenciado pelo preconceito anti-psicologista da esquerda europeia. A atitude da libertação gay é mais prudente e, de certo modo, filia-se na tradição da filosofia política de H. Marcuse: "Hoje, a luta pela vida, a luta por Eros, é a luta política". A teoria psicológica de Freud, incluindo o seu biologismo, é, na sua essência, "teoria social numa dimensão profunda": a subjugação das minorias eróticas é, portanto, um fenómeno histórico que não pode ser cabalmente compreendido sem o recurso a construções psicológicas, porque a subjugação efectiva dos instintos aos controles repressivos não é imposta pela natureza, mas pelo próprio homem, mais precisamente pela sociedade homófoba. A dialéctica da sociedade e do indivíduo nunca pode ser satisfatoriamente resolvida pelo desenvolvimento de um dos elementos em detrimento do outro: os conceitos psicológicos estão saturados de conteúdo sociológico e os conceitos sociológicos são mediados por conceitos psicológicos. Esta combinação dos conceitos psicológicos e sociológicos é fundamental para o sucesso da libertação sexual: "A tradição clássica associa Orfeu à introdução da homossexualidade. Tal como Narciso, ele rejeita o Eros normal, não por um ideal ascético, mas por um Eros mais pleno. Tal como Narciso, ele protesta contra a ordem repressiva da sexualidade procriadora. O Eros órfico e narcisista é, fundamentalmente, a negação desta ordem: a Grande Recusa. No mundo simbolizado pelo héroi cultural Prometeu, eles são a negação de toda a ordem; mas, nesta negação, Orfeu e Narciso revelam uma nova realidade, com uma ordem própria, governada por princípios diferentes. O Eros órfico transforma o ser: domina a crueldade e a morte através da libertação. A sua linguagem é a canção e o seu trabalho é o jogo. A vida de Narciso é a da beleza e a sua existência é a contemplação. Estas imagens referem-se à dimensão estética, assinalando-a como aquela dimensão em que o princípio de realidade das imagens de liberdade deve ser procurado e validado" (Marcuse).
2. Teoria do Preconceito Sexual. Com este brevíssimo interlúdio, pretendo clarificar duas limitações históricas do conceito de homofobia que a teoria do preconceito recupera para justificar a mudança de problemáticas teóricas: a primeira limitação reside no facto da caracterização da opressão dos indivíduos homossexuais como produto do medo individual ser de pouca utilidade para a luta gay e lésbica pelo reconhecimento legal dos seus direitos, e a segunda limitação liga-se ao facto da comunidade gay e lésbica ter começado a perceber-se a si mesma como uma minoria semelhante às minorias étnicas. Quaisquer uma destas limitações extrateóricas exige uma mudança de paradigmas. A partir do momento em que os movimentos gay e lésbico se unem para lutar pelos seus direitos cívicos, o slogan da homofobia deixa de ter relevância: a emergência de um grupo minoritário homossexual corresponde a par e passo à emergência do paradigma liberal dos direitos cívicos. E este último paradigma implica necessariamente a revisão do conceito de homofobia. Na sua versão clássica, a homofobia foi compreendida como uma rejeição dos seus próprios desejos homo-eróticos, isto é, como um conflito do "mim contra si mesmo". Doravante, a homofobia pode ser compreendida como uma rejeição dos membros de um grupo exógeno ou minoritário: já não se trata de um conflito intrapsíquico, mas de um conflito de "nós contra eles", isto é, dos homossexuais assumidos contra as pessoas homófobas que os hostilizam. Deste modo, o conceito de identidade tornou-se fundamental para a compreensão da comunidade gay: coming out, o processo de aceitação, revelação e afirmação da sua própria identidade como um homem gay ou uma mulher lésbica, adquiriu uma importância política (Grierson & Smith, 2005). Segundo De Cecco (1984), "coming out não é apenas um acto pessoal, mas também e fundamentalmente um acto ideológico e político".
A teoria do preconceito sexual sempre andou no ar, tanto fora como dentro dos meios académicos, e, como vimos, Weinberg vacilou entre dois conceitos de homofobia, a homofobia como fobia e a homofobia como preconceito, mas coube a Gregory M. Herek (1999, 2004) juntar todas as peças e elaborar a teoria do preconceito sexual para explicar a hostilidade exibida pelos heterossexuais em relação às pessoas homossexuais e bissexuais. No entanto, ao realizar essa tarefa, Herek abandona o conceito de homofobia e coloca no seu lugar o conceito de preconceito sexual, alegando que o primeiro, embora possa ter alguma relevância para os activistas gay, se tornou improdutivo para os cientistas que, em face das novas mudanças sociais, devem mudar de vocabulário para compreender os processos psicológicos, sociais e culturais subjacentes à opressão das pessoas homossexuais. Herek destaca três áreas gerais em que a hostilidade ligada à orientação sexual pode ser estudada. Em primeiro lugar, a hostilidade existe na forma de conhecimento partilhado que está incorporado nas ideologias culturais que definem a sexualidade, demarcam os agrupamentos sociais em função das suas sexualidades e atribuem valor a estes grupos e aos seus membros em função de uma escala hierárquica pré-estabelecida. Chama estigma a este primeiro aspecto da hostilidade antigay. Em segundo lugar, estas ideologias culturais são expressas através das estruturas, instituições e relações de poder assimétricas da sociedade global. Chama heterosexismo a este segundo aspecto da hostilidade antigay. Finalmente, em terceiro lugar, os indivíduos interiorizam estas ideologias e, através das suas atitudes e das suas acções, expressam-nas, reforçam-nas e alteram-nas. Chama preconceito sexual a este terceiro aspecto da hostilidade antigay. O preconceito sexual é utilizado para referir as atitudes negativas heterossexuais dirigidas contra (a) o comportamento homossexual, (b) as pessoas com uma orientação homossexual ou bissexual, e (c) as comunidades formadas por pessoas homossexuais e bissexuais de ambos os sexos. Tal como outros tipos de preconceito, o preconceito sexual é dotado de três características principais: é uma atitude (1), dirigida contra um grupo social e os seus membros (2) e, dado envolver hostilidade e aversão, é negativa (3). Por outras palavras, o estigma sexual é usado para referir o conhecimento partilhado negativo da sociedade heterosexista a respeito de todos os comportamentos não-heterossexuais. O heterosexismo é usado para designar a ideologia cultural que perpetua o estigma sexual. E o preconceito sexual é usado para referir as atitudes negativas ligadas à orientação sexual. Estes são os três conceitos fundamentais da teoria do preconceito sexual, a qual rompe com a perspectiva individualista e psicodinâmica da teoria da homofobia, bem como com o seu conceito de homofobia interiorizada, substituindo-a por uma perspectiva oriunda da psicologia social sem cair nas armadilhas relativistas do construtivismo social. (CONTINUA: A análise da teoria do preconceito sexual será realizada no próximo post com o título "Homofobia ou Preconceito Sexual 3?)
J Francisco Saraiva de Sousa

9 comentários:

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Duas observações:

1) Quando falo do liberalismo, refiro-me ao liberalismo americano de esquerda: a defesa de reformas substanciais e a garantia dos direitos das minorias.

2) Quando falo da religião, é para lamentar a postura das igrejas cristãs, nomeadamente das protestantes, bem como da igreja católica, que perdem mais uma vez a oportunidade histórica de avançar para a frente. Em vez disso, optam pelo fundamentalismo obscurantista. Uma atitude lamentável até porque Cristo tem mais perfil de revolucionário do que de conservador fora de prazo!

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Este segundo post da série está concluido. :)

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Else

O movimento christian antigay/pro-family, de que falou noutro dia, publicou anúncios onde usava a tal retórica ex-gay e promovia a técnica de conversão, mas era pura retórica que não teve impacto político. Além disso, tentou vender a imagem da homossexualidade como escolha: um movimento ordinário e odioso.

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Tina Fetner fez um excelente estudo sociológico desse movimento e denúnciou as suas "mentiras". :)

Fräulein Else disse...

Oi F.,

Bem o Sporting levou 5..., estava no gym e ainda vi o 3º. Enfim.

Pois, mas no tal documentário, essa frente ex-gay aparecia com algum impacto, e havia um outro movimento contrário ex-ex-gay... e gays que casaram com mulheres para não irem para o Inferno e gays cristãos que estudam a bíblia e... e...
muito delírio. A América é um país delirante. Um país sideral, a la Baudrillard.

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Ya, estou cada vez mais convencido de que vamos ter um futuro triste: as pessoas não andam nada bem. Sinto isso: é como se estivesse a circular entre gado drogado, dotado de um cérebro convertido em neuromúsculo. A regressão mental e cognitiva já é muito evidente.

Ya, o Sporting não fez grande figura, não percebo os nossos jogadores, mas penso que no futebol falta inteligência humana. Mais outro eco da regressão: maturidade, experiência de vida, responsabilidade, tudo isso falta a esta gente. Isto vai ser cada vez pior!

Penso que já podemos estudar os humanos usando as metodologias usadas para estudar os animais: a diferença desapareceu, até porque já defendem declarações dos direitos animais. Aprová-la é invalidar a dos direitos humanos. Agora são todos meros animais. :(

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Else

E outra preocupação é a subavaliação da crise. Ninguém fala realisticamente dela: o nosso estilo de vida chegou ao fim. Não adianta mentir! O governo está a ser teimoso e vai cometer erros, um dos quais é a terceira travessia do Tejo, é a inércia no combate à corrupção, é o aumento delirante dos vencimentos da função pública, é o irrealismo das oposições que querem sempre mais, é a obsessão pela classe média... e o PM devia estar mais atento ao que as pessoas pensam dele. Marcelo Rebelo de Sousa chamou-lhe Chico-Esperto e Portugal nunca teve sorte com tais figuras: o facilitismo e a vontade de ascender sem esforço. Perante isso, a educação é reduzida a nada! O pior é que a oposição não é alternativa credível! O PS corre o risco de ficar como o PSD, um partido degradado e responsável pela corrupção crónica de Portugal. Enfim, não temos futuro...

E. A. disse...

Pois F., eu estou a tratar de me ir embora daqui (Portugal), pelo menos durante uns tempos, vamos ver se consigo.
Mas, penso que o mal seja generalizado... aqui, todavia, é crónico e insolúvel.

Aquele caso caricato de terem apreendido o livro com a capa do Courbet, A Origem do Mundo, é sintomático desse carácter bovino de que fala. Nem somos um país com a cultura e educação estética mínimas. É claro que não é isto que cura, mas alivia. Comparemo-nos com os países de Leste, tão pobres quanto nós, mas muito mais cultos e instruídos. :(

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Oi Else

Se acha que deve sair de Portugal, faz bem, mas não devemos entregar o país aos incompetentes. Mas sair de Portugal é sempre bom, embora a regressão seja ubíqua. :(