Faço parte de uma geração que foi privada da herança, em nome da cartilha neoliberal. Porém, o meu espírito rebelde fez de mim um autodidacta: o que sei - o conhecimento do movimento real total - aprendi sozinho, lendo os mestres que forjaram o Ocidente, longe da Universidade. Apropriei-me às escondidas da herança que o neoliberalismo procurou destruir e que a Universidade me negou. (Aliás, a Universidade portuguesa, cativa como está de forças obscuras, amigas da ignorância activa, é a negação absoluta do conhecimento!) Este quadro de George Tooker - Government Bureau, 1956 - faz parte dessa herança amaldiçoada pelo neoliberalismo e ignorada pela Universidade: a pintura americana foi muito sensível às transformações sociais desencadeadas pela crise financeira de 1929, e, de certo modo, o mundo que "retrata" pode ser articulado com o pensamento de Esquerda, não só europeu, mas também e sobretudo americano. As Universidades americanas não eram, pelo menos nessa altura, tão democráticas quanto a imagem difundida pelo poder dominante no exterior fazia crer: os casos de Paul Baran, que ganhava menos que os seus colegas do Departamento de Economia por ser um economista marxista, e de Paul Sweezy, que foi hostilizado e afastado da Universidade de Harvard pelo mesmo motivo, durante a época de McCarthy, apesar da protecção de Joseph Schumpeter, testemunham o lado negro e falso da democracia americana. O capitalismo que "coloca no lugar das coisas o preço das coisas" (Adriano Moreira), roubando a alma às pessoas, nunca tolerou a oposição e, na sua versão global neoliberal, quase conseguiu eliminar todo o pensamento que o confrontasse com o seu carácter histórico e falso. O neoliberalismo é pensamento identitário, isto é, totalitarismo consumado: os seus efeitos foram e continuam a ser mais maléficos do que os das experiências totalitárias do século XX. Nestas últimas décadas, instalou-se o mito do eterno presente (D. José Policarpo), tão glorificado por Manuel Castells, que iludiu as massas com a sociedade afluente (John Galbraith), como se a pobreza tivesse sido realmente abolida: a dependência em relação à burocracia estatal - ou mesmo das empresas privadas - e o consumo devorador do mundo como estilo de vida que os americanos querem generalizar a todo o mundo. Pelo menos, a universalização da democracia liberal como fim da história foi o desejo expresso por Francis Fukuyama, que Adriano Moreira traduziu nestes termos: sermos todos "democráticos" à imagem do modelo constitucional americano. O americanismo primário - denunciado por Heidegger - converteu-se depois da Queda do Muro de Berlim em sonho totalitário que alimentou a globalização tal como a conhecemos nos planos financeiro e comunicacional, fora dos quais nunca houve globalização, sobretudo no sentido kantiano do termo. Falta saber qual é a natureza da relação existente entre esta globalização dos capitais e o capitalismo monopolista estudado por Paul Baran e Paul Sweezy na altura em que Tooker pintou os seus quadros: a lógica do capitalismo monopolista encontra-se viva no neoliberalismo, ou seja, este último decorre do primeiro, aprofundando e acentuando a irracionalidade da economia capitalista e dos seus efeitos nefastos sobre a qualidade de vida. Porém, se olharmos atentamente para este quadro de Tooker, vemos não só a burocracia estatal em acção vigilante - o demiurgo administrativo e o seu carácter terrivelmente anónimo e impessoal - mas também pessoas desalmadas, solitárias e alienadas que desaprenderam o que é ser independente. Ora, esta mesma imagem de abandono absoluto encontra-se trabalhada teoricamente no pensamento independente americano, bastando citar os nomes de Wrigth Mills e de David Riesman para o confirmar. Max Weber no domínio da sociologia e Franz Kafka no domínio literário são duas das figuras intelectuais que ajudaram a tomar consciência da lógica burocrática e dos seus efeitos desumanos: o quadro de Tooker pode ser interpretado como a negação de um determinado modelo de Estado Social, precisamente aquele que o identifica com a empresa social (Adriano Moreira). Herbert Marcuse denunciou a consciência feliz dos cidadãos transformados em consumidores passivos, mas nos quadros de Tooker não vemos pessoas felizes; pelo contrário, vemos autênticos zombies que vão levantar os seus subsídios sociais a uma repartição do Estado, para depois irem deambular - quais fantasmas prisioneiros da sua própria solidão! - para os grandes centros comerciais ou fazer uma incursão pelas ruas e pelos estabelecimentos de diversões padronizadas - sexuais, claro! - da noite urbana. As duas visões não são incompatíveis: o acesso facilitado superiormente ao consumo e a indústria cultural geram a consciência feliz, como se vivêssemos no melhor mundo possível, mas esta felicidade - mais aparente do que real - é conquistada à custa da perda da individualidade e do auto-governo, numa palavra, da perda da autonomia. Tooker despe as suas figuras humanas das mentiras oficiais e apresenta-as tal como são quando lhes arranca a aparência de felicidade: indivíduos que perderam o controle sobre os seus próprios destinos e o destino do mundo e que se resignaram, sem perturbar a reprodução da ordem social dominante. A consciência feliz significa precisamente conformismo e apatia perante o sistema vigente. O capitalismo conseguiu domesticar ou mesmo liquidar o único elemento que lhe pode fazer frente: o pensamento independente, a subjectividade rebelde e o uso público da sua própria razão sem a orientação de outrem. Quando definiu a sociedade unidimensional como sociedade sem oposição, Marcuse ainda podia confiar na oposição externa, mas a Queda do Muro de Berlim livrou o capitalismo dos seus inimigos externos, abrindo o espaço mundial ao triunfo do neoliberalismo. Ora, o capitalismo entregue a si mesmo e à sua lógica imanente comporta-se tal como Marx «previu»: como um sistema social desregulado que acentua de tal modo as clivagens sociais e as contradições sociais que acaba por gerar a sua própria crise. A lógica imanente do capitalismo é absolutamente necrófila: o capitalismo mata tudo e todos, tal como o demonstra a actual crise financeira e económica, deixando atrás de si um lastro de violência e de morte. O espírito capitalista, tão elogiado por Werner Sombart, enriquece poucos à custa do empobrecimento de muitos: o neoliberalismo global protagonizado pelos USA e pela União Europeia dos eurocratas alterou efectivamente a fronteira da pobreza, fazendo-a subir até ao interior do continente europeu, como observou Adriano Moreira. A subida da fronteira da pobreza para o Norte significa o fim do mundo afluente: Adriano Moreira reconhece assim que o capitalismo entregue à sua própria lógica imanente gera pobreza e miséria, ao mesmo tempo que debilita a Europa e o Ocidente. Goethe, Máximo Gorki e Georg Lukács, bem como Hegel com a sua noção profunda da tragédia no ético, já tinham denunciado a inumanidade e a falta de cultura do capitalismo: a chamada cultura do capitalismo rebaixa a humanidade, animalizando-a, sem exibir nenhuma tendência para a criação cultural; a valorização do homem e da cultura não pode ser levada a cabo no âmbito de um sistema social que valoriza apenas a actividade económica, reduzindo as coisas ao seu preço (Adriano Moreira). O capitalismo está a destruir o Ocidente: a economia com referências éticas - noção avançada por Adriano Moreira - está a desaparecer a passo acelerado, e a globalização que se operou nas últimas décadas, sob a hegemonia dos USA e da feia China e da prepotência da Alemanha no seio de uma União Europeia enfraquecida, acelerou a decadência do Ocidente: os americanos só sabem conversar sobre os preços dos bens que adquirem. Os convidados deste debate aplaudiram a globalização, sem se aperceberem que ela mina o domínio do Ocidente. Apesar de ser "bonito", o discurso da humanidade unificada é um discurso perigoso: qualquer tentativa para o realizar lançará a humanidade na miséria generalizada, ao mesmo tempo que promoverá a revolta incontrolada da natureza. O preço da globalização leviana está acima das possibilidades da natureza biológica humana e da conservação dos ecossistemas naturais: a afirmação das identidades locais como reacção à globalização em curso revela a incompatibilidade da natureza humana com o processo de globalização, cuja lógica imanente é a do princípio de identidade que subsume o particular - anulando-o - sob o geral abstracto capitalista. A globalização é totalitária e, se for consumada, nem sequer a noção de "humanidade toda igual com pequenas diferenças" (D. José Policarpo) estará a salvo: a globalização enquanto pensamento identitário não suporta a diferença. Capitalismo e totalitarismo são sinónimos. D. José Policarpo tem razão quando diz que precisamos mudar de sistema.
Prós e Contras debateu hoje (13 de Dezembro) a questão: Como devemos interpretar a crise? Conforme lembrou Fátima Campos Ferreira, esta questão já tinha sido discutida no debate anterior pela sociedade anónima; hoje foi a vez de quatro figuras públicas debaterem a mesma questão: o Cardeal Patriarca de Lisboa D. José Policarpo, Adriano Moreira, António Barreto e José Barata-Moura. Aquilo que queria meta-criticar neste debate - a apologia ingénua da globalização em curso que beneficia a curto, médio e longo prazo os interesses da China em detrimento dos interesses do Ocidente - já o fiz, recolocando em primeiro plano a questão do futuro do Ocidente num mundo hipercapitalista que caminha para o seu ocaso global. De resto, D. José Policarpo disse tudo logo no início da sua primeira participação: Já foi tudo dito sobre a crise; só falta resolvê-la. Neste mundo neoliberal global, a competição com a China e outras potências emergentes implica retrocessos sociais, alguns mais toleráveis e razoáveis do que outros, precisamente aqueles que implicam a perda do domínio ocidental e o retrocesso civilizacional. O capitalismo que, no passado, ajudou a fortalecer o domínio ocidental, é hoje o seu maior inimigo: as participações de D. José Policarpo, de Adriano Moreira e de Barata-Moura, com a excepção da de António Barreto, um defensor acérrimo da mestiçagem indiferenciada, revelam algumas contradições no seio do discurso ingénuo da globalização, visto serem críticas em relação ao pensamento único que se instalou depois do triunfo do neoliberalismo. Recusar a redução de Portugal ao factor financeiro-económico, em nome da alma, da história e da cultura (D. José Policarpo), ou recusar reduzir as coisas aos seus preços no mercado (Adriano Moreira), cada uma destas rejeições implica não só um desconforto em relação à lógica irracional e auto-destrutiva do hipercapitalismo que tudo devora, incluindo os valores, como também uma crítica velada da globalização. Não se pode ser contra o neoliberalismo sem ser ao mesmo tempo contra a globalização que ele operou e protagonizou nas últimas décadas. Assim, por exemplo, na questão do Estado Social, Adriano Moreira aconselhou recuar sem abandonar o objectivo, ao mesmo tempo que propunha, para a saída da crise, a refundação do Estado, através do discurso que diz a verdade à população para a preparar para o período de austeridade que a aguarda nos próximos anos. Ora, este discurso de refundação do Estado não é inteiramente compatível com o sentido da globalização que ameaça a soberania dos Estados-Nacionais, especulando as suas dívidas. Após ter feito a apologia dos últimos 30 anos e do bem-estar no mundo inteiro, António Barreto foi mais longe quando afirmou a fragilidade da democracia: o seu discurso foi uma reacção aos discursos de D. José Policarpo e de Barata-Moura. Corrigindo a palavra do Cardeal Patriarca de Lisboa, António Barreto afirmou que temos alma e cultura mas sem economia e sem política. E contra a perspectiva de Barata-Moura, segundo a qual quem jogou na bolsa com o dinheiro público quer recuperá-lo agora, especulando com as dívidas soberanas dos Estados periféricos, como se os especuladores americanos fossem os únicos responsáveis pela crise, António Barreto acusou os governantes portugueses e as classes dirigentes de seguirem o ensinamento de Álvaro Pais, o filósofo escolástico português que, no século XIV, estabeleceu a distinção entre guerras justas e guerras injustas para legitimar o combate contra os mouros e a sua expulsão de Portugal: prometer o que não podem cumprir. Porém, esta responsabilização política pela crise é uma co-responsabilização que envolve conjuntamente governantes e governados, o que implica uma crítica implícita da democracia vigente no mundo ocidental. Não sei se estarei a ser fiel à perspectiva de António Barreto se disser que ele vê a crise nacional como uma crise económica - a destruição do tecido produtivo, e uma crise política - a debilidade da cidadania e da democracia e a falta de lideranças políticas competentes, mas, para todos os efeitos, já ninguém duvida seriamente do carácter estrutural - e não somente externo - da crise nacional. Porém, António Barreto vai ainda mais longe quando afirma que já não temos pescadores ou agricultores para investirmos no sector primário da economia. Com esta radicalização do pessimismo - legítima, é certo! -, António Barreto acabou por denunciar a artificialidade do bem-estar - os portugueses viveram nestes últimos 30 anos acima das suas possibilidades - que tinha elogiado na sua primeira intervenção, como se o regime democrático fosse o regime da mentira organizada que nos afunda no abismo da anarquia da miséria. Para evitar a condenação literal da democracia, será melhor lembrar o seu actual carácter formal, como fez D. José Policarpo. Com efeito, numa sociedade capitalista, o poder económico detém o poder jurídico-político e o poder ideológico: o exercício da democracia num tal quadro social só é tolerado formalmente enquanto não põe em cheque o próprio sistema económico e a sua reprodução. O espectro de Marx esteve presente neste debate, quer na defesa do discurso da produção e do desenvolvimento económico, quer no discurso do carácter formal da democracia liberal. Para terminar, vou lembrar que, segundo Marx, a história tende a desenvolver-se pelo seu lado mau: colocados perante a escolha entre a verdade e a mentira, o esforço e a facilidade, a liberdade e a escravatura, os homens, sejam ricos ou pobres, escolhem a mentira, a facilidade e a escravatura. Perante esta opção catastrófica da humanidade mutilada, prefiro concluir reconduzindo para a teoria da circulação das elites de Vilfredo Pareto, lida à luz do bem-comum: precisamos de novas elites para protagonizar a mudança social qualitativa em Portugal, na Europa e no Mundo. Como disseram D. José Policarpo e António Barreto, já não temos tempo a perder!
J Francisco Saraiva de Sousa
6 comentários:
Neste debate falou-se tb em refundar o Estado e a economia. De acordo. Mas há um detalhe que apenas B Moura aflorou: o neoliberalismo capitalista não é obrigatório; o espaço para a economia social e solidária nunca foi fechado, pelo contrario, mas os movimentos cooperativos e associativos são residuais e sobrevivem apenas graças às respectivas cupulas. Temos de facto sérios problemas de cidadania e de cultura democrática. MB sublinhou isso e pessoalmente concordo completamente. Explicar a crise ou pretender resolve-la pelas lideranças é demasiado curto.
Manuel Rocha
Este debate não acrescentou nada que já não soubéssemos, mas ainda não cheguei ao debate propriamente dito.
Quanto à economia social, sinto o mesmo arrepio que Hannah Arendt! Não acredito nesse modelo - mais do mesmo.
Ah, já vi que editou um post sobre economia social que terei muito gosto em ler mais tarde, porque hoje acordei asfixiado numa lufada de oxigénio: limito-me a deixar a vida fluir depois da guerra de ontem. Cansaço... :)
Ai, ando um pouco incomodado com a invasão da minha privacidade. Agora, descobri que há um dicionário online que exemplifica conceitos e palavras usando os meus textos. A coisa é gira mas stressa muito porque acrescenta mais responsabilidade à minha actividade virtual.
Mas gosto dessa actividade de rigor no uso dos conceitos e de recuperação de palavras esquecidas. Sou contra o esquecimento!
Ah, não gostei de um site que tem uma referência à minha eventual morte! :(
Ainda não pretendo morrer. Quando decidir morrer, deixo uma mensagem que será editada depois de ter morrido.
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