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Lucien Lévy-Bruhl (1857-1939) |
«É por isso que a mentalidade dos primitivos tanto pode ser pré-lógica como mística. Temos aí antes dois aspectos de uma mesma propriedade fundamental do que dois aspectos distintos. Essa mentalidade será chamada mística se se considerar mais especialmente o conteúdo das representações; pré-lógica, se se olhar antes para as ligações. Pré-lógica não deve também fazer supor que esta mentalidade constitui uma espécie de estádio inferior, no tempo, ao aparecimento do pensamento lógico. Existiram alguma vez seres humanos ou pré-humanos cujas representações colectivas não tenham obedecido a leis lógicas? Ignoramo-lo. Em todo o caso, é muito pouco verossímil. Pelo menos, a mentalidade das sociedades de tipo inferior, a que chamo pré-lógica à falta de melhor nome, não apresenta de modo algum esse carácter. Não é antilógica; também não é alógica. Chamando-lhe pré-lógica, quero somente dizer que ela não se sujeita, antes de tudo o mais, a abster-se de contradição. Primeiro obedece à lei da participação. Assim orientada, não se compraz gratuitamente no contraditório (o que a tornaria constantemente absurda para nós), mas também não pensa em evitá-lo. Na maioria das vezes, é indiferente ao princípio de contradição. O que significa que é difícil de acompanhar». (Lucien Lévy-Brühl, 1910)
A globalização e a ideologia neoliberal que a molda voltam a colocar na ordem do dia os temas clássicos da Filosofia Primitiva, cuja tarefa é, como vimos noutro texto, estudar as formas de pensamento primitivo na sua relação com o contexto social. Gaston Bouthoul formulou o princípio de que existem estruturas mentais que correspondem estritamente às estruturas sociais, definindo assim a mentalidade do ponto de vista da sociedade: «uma sociedade é essencialmente um grupo de pessoas de mentalidade análoga», e cada uma das mentalidades é «uma condensação interiorizada da vida social». Este princípio pode ser lido tanto do ponto de vista da sociologia de Durkheim que destaca mais a integração do que o conflito, como do ponto de vista marxista, cujo conceito de ideologia implica uma sociedade de classes em conflito. Ora, de todas as mentalidades, a mais estudada foi aquela a que Lévy-Bruhl chamou mentalidade primitiva. Nas suas primeiras obras, Lévy-Bruhl atribuiu à mentalidade primitiva duas características básicas: mística, no que se refere ao conteúdo das suas representações, e pré-lógica, no que se refere às ligações entre essas representações. Por um lado, a mentalidade primitiva é mística, não no sentido do misticismo religioso, mas no sentido da crença em forças, influências ou acções imperceptíveis aos sentidos e, no entanto, reais: quer dizer que os povos primitivos se movem numa realidade mística, onde todas as coisas possuem poderes ocultos. E, por outro lado, a mentalidade primitiva é pré-lógica, não no sentido de ser anterior no tempo à aparição do pensamento lógico, ou no sentido de ser antilógica ou alógica, mas no sentido de não se sujeitar a abster-se da contradição: quer dizer que a mentalidade das sociedades inferiores obedece menos ao princípio de identidade do que a uma lei de participação, em virtude da qual - nas suas representações colectivas - os objectos, os seres, os fenómenos podem ser simultaneamente eles próprios e outra coisa diferente deles mesmos. Assim, por exemplo, os Bororos do Brasil afirmam que são araras. A lei da participação permite aos primitivos explicar as conexões que estabelecem entre o retrato e o seu modelo, a sombra e a pessoa, o nome e a coisa; o costume da couvade; a importância atribuída aos presságios, à adivinhação e aos símbolos; a representação que fazem de si próprios, com o sentimento da existência individual relegado a segundo plano pelo conjunto de pertinências que os ligam ao meio e, especialmente, ao grupo; a ligação entre o próprio grupo e uma porção de território, o seu centro totémico local; enfim, a natureza dos sistemas de classificação e das pré-ligações que estabelecem entre as suas representações. O duplo carácter da mentalidade primitiva ajuda Lévy-Bruhl a explicar a concepção de causalidade que a caracteriza: «A causalidade que ela concebe é de um tipo diferente daquele que nos é familiar». As sociedades primitivas ignoram as cadeias de causas intermediárias e concebem apenas uma «causalidade mística e imediata», que implica uma representação completamente distinta do tempo e do espaço. Para os primitivos, não há fenómenos naturais, no sentido que damos a este termo. Assim, por exemplo, a morte resulta sempre de práticas de magia, mesmo quando se trata da morte de um homem idoso e doente. Imaginemos a seguinte cena: um búfalo investe contra um homem e mata-o. Segundo Lévy-Bruhl, o homem primitivo prefere a explicação mística à explicação objectiva natural: a morte deste homem será assim explicada pela bruxaria. Haverá aqui uma contradição? Será o homem primitivo indiferente à contradição? Evans-Pritchard considera que não há aqui nenhuma contradição, alegando que os primitivos fazem uma análise mais aguda da situação: «Eles estão perfeitamente cientes de que foi um búfalo que matou o homem, mas sustentam que isto não teria acontecido se não tivesse havido bruxaria. Se não fosse a bruxaria, o homem não teria sido morto pelo búfalo, ou teria sido outro homem que não aquele ou teria sido outro búfalo e outro espaço e outro tempo e não aqueles: por que aconteceria como aconteceu se não fosse a bruxaria? Eles estão a perguntar por que - como nós diríamos - duas cadeias causais de eventos independentes se cruzam, levando um determinado homem e um determinado búfalo ao mesmo lugar e no mesmo tempo». Nesta perspectiva mais subtil, que Evans-Pritchard (1937) explanou na sua obra Witchcraft, Oracles and Magic among the Azande, as duas explicações - a natural e a mística - são complementares: os primitivos salientam mais a causa mística do que a causa natural, porque ela permite a vingança contra quem enfeitiçou o homem. A subtileza desta análise não deve iludir a incapacidade dos antropólogos para solucionar as questões relativas ao pensamento primitivo.
Lévy-Bruhl estudou - de 1910 a 1938 - o sistema de conhecimentos que correspondem à sociedade primitiva, sem pretender procurar a origem do conhecimento filosófico e do conhecimento científico das sociedades civilizadas. O conhecimento perceptivo do mundo exterior, bem como o conhecimento do Eu, do Outro e do Nós, é, entre os povos primitivos, completamente diferente dos nossos conhecimentos. Convém deixar bem evidenciado que Lévy-Bruhl era descontinuísta e anti-evolucionista: os povos primitivos vivem num mundo físico e num mundo social que não pode ser comparado ao mundo dos povos civilizados. As leis da lógica formal são substituídas - nas sociedades primitivas - pela lei da participação mística. Ora, esta última baseia-se, como demonstrou Lévy-Bruhl em 1931, na categoria afectiva do sobrenatural. As representações colectivas dos primitivos não são puramente intelectuais; são, antes de tudo, «estados complexos em que os elementos emocionais e motores constituem partes integrantes das representações». Um xamã esquimó disse a Knut Rasmussen que o seu grupo não tinha crenças, mas medo do que via em seu redor e das coisas invisíveis que o cercava. Lévy-Bruhl utiliza o termo categoria não no sentido aristotélico ou kantiano, mas como princípio de unidade afectiva no espírito que explica desde logo a participação, em virtude da qual o simbolismo - por exemplo - não é simples semelhança, mas consubstancialidade com o ser ou o objecto simbolizado. Mas esta consubstancialidade é, para os primitivos, de ordem afectiva ou emotiva, como se evidencia nas suas cerimónias e danças que realizam, através de uma espécie de comunhão ou de fusão mística com o antepassado mítico ou totémico, uma participação, isto é, uma união afectiva total. Em 1935, Lévy-Bruhl explica a mentalidade pré-lógica dos primitivos - a sua indiferença em relação à contradição - pelo facto desta atitude estar ligada à orientação mística do seu espírito e às suas fracas tendências conceptuais: os primitivos formam conceitos, mas estes conceitos, aliás menos numerosos e ricos do que os nossos, não são sistematizados por eles. Em 1938, Lévy-Bruhl destaca a importância da participação: «A mentalidade primitiva, misticamente orientada, vê participações em todo o lado. Ignorando o mecanismo das leis da natureza, ainda que, na prática, saiba regular suficientemente bem a sua actividade por este mecanismo, ela concebe, ou sente a maior parte das vezes, as relações mútuas dos seres vivos como participações. Com mais forte razão, as relações entre os seres do mundo exterior e os do mundo invisível, a interacção constante da natureza e do sobrenatural, também são "sentidas" como participações, mais ou menos claramente representadas. É, pois, razoável dizer que estes espíritos, mais ainda do que os nossos, se movem "através de uma floresta de símbolos", segundo a célebre expressão de Baudelaire. Símbolos que lhes são próprios. Não obra do entendimento, como os nossos, mas já existindo, de certo modo, antes de serem apreendidos, nas participações que se objectivam através deles». Os símbolos não são expressões, mas principalmente veículos da participação, sendo esta entendida como uma forma de agir e ser agido. Suponho que Victor Turner (1967) encontrou aqui inspiração quando deu o título The Forest of Symbols ao seu estudo sobre o ritual ndembu, um povo africano do noroeste da Zâmbia, antiga Rodésia setentrional, ao sul da África central.
Em 1920, Lévy-Bruhl já tinha renegado expressamente a tese do pré-logismo: «Vi ser-me atribuída uma doutrina, chamada "pré-logismo", segundo a qual haveria duas espécies de espíritos humanos, uns lógicos, como os nossos, e outros, os dos primitivos, pré-lógicos, isto é, destituídos dos princípios directores do pensamento lógico e obedecendo a leis diferentes; e essas duas mentalidades seriam exclusivas uma da outra... Não julguei necessário defender-me contra uma refutação que afirmava um absurdo palpável e não dizia realmente respeito aos meus trabalhos». Mas é nos Carnets Posthumes (1949) que Lévy-Bruhl abandona de vez a tese do pré-logismo e a própria noção de pensamento pré-lógico: «O que há de mais positivo na minha ideia do carácter pré-lógico provém do carácter místico». Lévy-Bruhl é assim levado a dar especial destaque ao carácter místico do pensamento primitivo: «O essencial de qualquer experiência mística é o sentimento (acompanhado por uma emoção sui generis) da presença e, muitas vezes, da acção de um poder invisível, o sentimento de um contacto, em geral imprevisto, com uma realidade outra que a dada pelo meio ambiente». Ora, segundo Lévy-Bruhl, esta mentalidade mística é «mais acentuada e mais facilmente observável entre os primitivos do que nas nossas sociedades», embora esteja «presente em todo o espírito humano». O anti-evolucionismo de Lévy-Bruhl leva-o a afirmar sem rodeios e sem hesitações que «a estrutura lógica do espírito é a mesma em todas as sociedades humanas», o que implica a ideia da unidade do género humano. De certo modo, a oposição entre a experiência - construída ou imediata - dos primitivos e a dos civilizados é aqui substancialmente mitigada: Lévy-Bruhl mostra-se assim sensível à competição de várias formas de conhecimento no mesmo quadro social e à variação das acentuações das formas no seio da mesma estrutura de conhecimento. Os critérios da experiência imediata ou construída são diferentes nestes dois tipos gerais de sociedades, as primitivas e as civilizadas. A experiência dos primitivos admite diferentes graus de misticidade e de racionalidade, o que permite graduar o carácter da sua lógica, de modo a fazer frente à crítica que é dirigida à teoria de Lévy-Bruhl: a de não ter levado em conta as diferenças internas, tanto as nossas como as dos primitivos. Além disso, a sua experiência imediata é mais rica do que a nossa: a nossa experiência imediata está muito mais sujeita às coacções das conceptualizações racionais do que a dos primitivos. Até mesmo a personalidade - a individualidade - dos primitivos é, graças às dependências místicas, muito mais forte, mas muito menos diferenciada do que a nossa: o que significa que a pessoa humana não permanece idêntica nas diferentes estruturas sociais, como confirmaram mais tarde Ralph Linton e Abram Kardiner. Ao opor a mentalidade primitiva à mentalidade moderna, Lévy-Bruhl procurou mostrar que a primeira é explicada pelo estado de espírito místico: os homens primitivos forjam conceitos, tal como nós, mas - ao contrário de nós - não os usam como instrumentos de um pensamento discursivo: «A discussão de Lévy-Bruhl acerca da lei da participação mística é talvez a mais valiosa e original das partes da sua obra. Ele foi um dos primeiros, se não o primeiro, a salientar que as ideias primitivas, que nos parecem tão estranhas, às vezes chegando mesmo a parecer idiotas, quando consideradas como factos isolados, são plenas de significação, desde que vistas como segmentos de padrões de ideias e de comportamento, tendo cada parte uma relação coerente com as demais partes. Ele reconheceu que os valores formam sistemas tão coerentes como as construções lógicas do intelecto e que existe uma lógica de sentimentos assim como existe uma da razão, embora aquela esteja baseada num princípio diferente. A sua análise nada tem a ver com as historietas fantasiosas que comentamos anteriormente, porque ele não tenta explicar a magia e a religião primitivas por uma teoria que procura mostrar como teriam elas surgido, ou qual a sua causa e a sua origem. Ele aceita-as como consumadas, e procura apenas mostrar a sua estrutura e o modo pelo qual elas constituem uma prova da existência de uma mentalidade distinta, comum a todas as sociedades de um determinado tipo» (Evans-Pritchard). O que hoje podemos dizer é que existem diferentes lógicas correspondendo aos diferentes tipos de sociedades - ou mesmo coexistindo no seio de uma única sociedade.
Acho que as críticas feitas à teoria da mentalidade primitiva de Lévy-Bruhl - incluindo a de Marcel Mauss e a de Henri Bergson - foram extremamente injustas. Lévy-Bruhl recusou fazer parte da Escola Sociológica de Durkheim, apesar de partilhar com ela a ideia de que a mentalidade do indivíduo deriva das representações colectivas da sua sociedade: ele permaneceu um filósofo, puro e simples, mais interessado pelos sistemas primitivos de pensamento do que pelas instituições sociais primitivas. Para Lévy-Bruhl, podemos começar o estudo da vida social tanto pela análise das maneiras de pensar como pela análise das formas reais de comportamento: a questão da lógica - ou das duas lógicas, a do conceito e a do sentimento - atravessa todos os seus livros, o que despertou a animosidade dos antropólogos ingleses e americanos que, sob influência do fetiche positivista dos estudos empíricos, recusaram precipitadamente a sua teoria da mentalidade primitiva, pré-lógica e mística. (Robert H. Lowie ignora-o na sua opus magnum - Primitive Religion, 1952, destacando apenas a teoria do animismo de E. B. Tylor, a teoria da magia de J. G. Frazer e a teoria colectivista de E. Durkheim.) Mas, como vimos, Lévy-Bruhl nunca afirmou que os homens primitivos eram incapazes de pensar coerentemente: eles são inteligentes e pensam de maneira coerente e lógica, mas fazem-no usando categorias diferentes das nossas. O que está em questão na obra de Lévy-Bruhl não é a diferença biológica ou psicológica entre primitivos e civilizados, mas sim a diferença social. O único antropólogo que se atreveu a defender Lévy-Bruhl foi Evans-Pritchard, que, traduzindo-o numa linguagem acessível ao espírito pragmatista anglófono, o confrontou com a teoria dos resíduos e das derivações de Vilfredo Pareto. Com isto não pretendo poupar a teoria de Lévy-Bruhl a uma reformulação aprofundada, mas simplesmente reconhecer o seu mérito lá onde os seus críticos apontaram as armas: a definição da polaridade. Uma forma diplomática de dizer que a abolição por decreto da mentalidade primitiva resulta do seu regresso a todos os quadros sociais das sociedades modernas: recusa-se a mentalidade primitiva para ocultar o primitivismo do homem moderno, como se todos os homens fossem iguais nas suas capacidades intelectuais. Hoje quem queira estudar a mentalidade primitiva não precisa sair da sua própria sociedade e deslocar-se até aos trópicos, porque os primitivos habitam a sua própria sociedade. Uma das tarefas prioritárias da Filosofia Primitiva é precisamente pensar este regresso do primitivo que se verifica nas sociedades supostamente mais desenvolvidas do mundo. O regresso do primitivo tal como o concebo não se identifica com a redescoberta do sobrenatural exposta por Peter I. Berger: a redescoberta do sobrenatural constitui uma das peças do regresso do primitivo, cujo movimento global reintroduz nos espaços centrais da sociedade civilizada a figura do pensamento mágico. Contudo, esta reintrodução do pensamento mágico nos quadros sociais das sociedades modernas implica um fenómeno regressivo, a própria animalização do homem, o que não sucedia nas sociedades primitivas colonizadas pelos europeus - muito mais humanas do que as nossas sociedades. Quando isto acontece, a civilização e, sobretudo, a cultura superior, começam a entrar numa fase de colapso. Hoje, no Ocidente, a forma cultural dominante é a mentalidade primitiva que cresce e invade todos os seus tecidos, como se fosse um cancro. Uma sociedade metabolicamente reduzida é necessariamente uma sociedade cancerosa.
Obras de Lucien Lévy-Bruhl, nenhuma das quais está traduzida em português, tanto quanto sei - as minhas edições são todas da PUF:
1910: As Funções Mentais das Sociedades Inferiores.
1922: A Mentalidade Primitiva.
1927: A Alma Primitiva.
1931: O Sobrenatural e a Natureza na Mentalidade Primitiva.
1935: A Mitologia Primitiva.
1938: A Experiência Mística e os Símbolos para os Primitivos.
1949: Os Cadernos de L. Lévy-Bruhl.
J Francisco Saraiva de Sousa