sexta-feira, 30 de setembro de 2011

Júlio Dinis: A Tristeza de nascer em Portugal

Júlio Dinis (Porto: 1839-1871)
«O conselheiro partiu no dia seguinte para Lisboa, para tomar parte na pilotagem da nau do Estado. Estive tentado a dizer, para satisfação de ânimo dos meus leitores, que, sob a direcção dos talentos e aptidões do novo estadista, se locupletou a fazenda pública, prosperou a agricultura e a indústria, refulgiram as artes e as letras; e que Portugal, como a Grécia de Péricles, causou o assombro das nações do mundo.
«Mas receei que, fantasiando no nosso país um governo fecundo e próspero, a inverosimilhança do facto prejudicasse no espírito dos leitores a dos outros episódios narrados, e lhes entrasse com isto a desconfiança no cronista. Resolvi pois ser franco, declarando que, sob a direcção do conselheiro e dos seus colegas, Portugal regeu-se como se tem regido sob as dúzias de ministérios, que nós todos havemos já conhecido.» (Júlio Dinis)

Este comentário desiludido de Júlio Dinis sobre o conselheiro que vai para o ministério encontra-se na conclusão da sua obra A Morgadinha dos Canaviais (1868). Vitorino Magalhães Godinho foi o único historiador português que utilizou a obra literária de Júlio Dinis para compreender as três impossibilidades do século XIX português, a saber: a industrialização falhada, a irrealizada sociedade burguesa e a cultura sem eficácia social. Mas neste comentário desiludido Júlio Dinis aponta para uma causa permanente do atraso estrutural de Portugal: as classes dirigentes que bloqueiam a transformação para não perder o seu próprio domínio. Portugal tem sido governado ao longo dos tempos por bandidos sociais que, desde há muito tempo, vivem apoiados no contexto externo do capitalismo industrial e financeiro, sem estarem interessados em modernizar de lés a lés a economia, a sociedade e a cultura nacionais. Mas o que mais choca os intelectuais portugueses, sobretudo os do Porto, é a imbecilidade da plebe portuguesa que nunca tomou a iniciativa espontânea de se constituir como povo. Nascer num país imbecilizado é, para qualquer intelectual digno deste nome, uma fatalidade que, no caso português, é agravada pela concentração de bandidos sociais em Lisboa: os "conselheiros" reúnem-se todos em Lisboa para partilhar - entre si - o orçamento do Estado. E os seus ideólogos oficiais tratam de falsificar a História de Portugal, silenciando todas as vozes que denunciaram a corrupção nacional. Júlio Dinis foi mais um vencido da vida, cujo nome desaparece da História da Literatura Portuguesa por causa de ser portuense: a única cidade portuguesa que sonhou com a realização de uma civilização burguesa. Os malditos sulistas moçárabes e oportunistas do Norte que vivem das migalhas do orçamento do Estado especializaram-se na "arte de perseguir o mérito". A obra literária de Júlio Dinis é, toda ela, revolucionária, no sentido de se posicionar ao lado das forças sociais que desejavam modernizar Portugal. A sua preferência pela paisagem rural não deve eclipsar o ímpeto revolucionário dos seus romances: o Porto Burguês e as suas figuras típicas são magnificamente descritos na sua obra Uma Família Inglesa (1868). Tudo aquilo que os sulistas saloios escreveram sobre Júlio Dinis deve ser queimado. A ideologia sulista é o maior inimigo de Portugal - o seu inimigo interno nº. 1. 

J Francisco Saraiva de Sousa

quinta-feira, 29 de setembro de 2011

John Brockman: a Ciência como Terceira Cultura

John Brockman
«A ciência é uma actividade muito social; viajamos com muita frequência e passamos muito tempo a conversar com outros, tanto amigos com quem trabalhamos como pessoas da comunidade mais vasta. A física é muito oral. Alguns de nós lêem os artigos uns dos outros - eu leio -. mas o canal mais importante de comunicação é por certo a conversação. Na gravidade quântica há uma comunidade de talvez algumas centenas de pessoas, que trabalham activamente no problema e estão em comunicação constante. Para ser franco, há apenas uma coisa de que não gosto na comunidade dos meus colegas, que é o facto de haver ainda tão poucas mulheres. É claro que essa situação vai-se alterando lentamente, mas, nesta área, não se processa ao mesmo ritmo das restantes. Seria interessante saber porquê. /Há um outro aspecto fundamental do trabalho científico que não é, de modo algum, social: o confronto pessoal de cada um com a natureza. No fundo, estou a tentar compreender coisas como o significado do tempo, devido à minha necessidade de saber quem sou, o que é este mundo, o que faço aqui. O trabalho científico constitui, para mim, um tipo de resposta à alienação de ser uma pequena criatura num mundo vastíssimo. Parte da condição de cientista, para mim, reside no facto de saber que, em última instância, estou sozinho e sou responsável por aquilo em que acredito». (Lee Smolin)

Lee Smolin é um físico teórico que tem dedicado grande parte da sua actividade científica à gravitação quântica. A teoria das supercordas foi formulada nos anos 70 e 80 para fundir a relatividade geral com a teoria quântica, de modo a produzir uma descrição correcta do modo como a gravidade e o espaço se comportam, evitando o problema dos infinitos na gravidade: o seu ingrediente fundamental é uma corda microscópica, um objecto que possui uma espessura negligenciável e comprimento muito pequeno, do qual observamos apenas as manifestações de muito baixa energia. O falhanço dramático das teorias das cordas levou Smolin a formular outra teoria unificada da física que conserva o campo gravitacional como ingrediente fundamental da sua problemática teórica, com o objectivo de o tratar quanticamente: o que implica que Einstein não é colocado em segundo plano, sendo a sua teoria encarada como limite de baixa energia, como sucedia e sucede nas teorias das cordas. Smolin tem uma noção mais vasta de terceira cultura do que a de Brockman: a terceira cultura não é tanto o conjunto de académicos que comunicam com o público em geral, mas sobretudo o grupo de académicos que partilham algumas ideias filosóficas que possibilitam o renascimento da tradição da filosofia natural. Dessas ideias destacam-se três: a ideia de que nada é estático nem eterno, evoluindo no tempo (1); a ideia de que não é necessário pensar em termos de um criador inteligente, sendo disparatado considerar que a complexidade e a beleza que observamos à nossa volta partiram da intencionalidade de uma única inteligência (2); e, finalmente, a ideia de que o nosso mundo é essencialmente complexo, diverso e auto-organizado, sendo as propriedades das coisas relativas e não absolutas (3). A teoria unificada de Smolin articula de forma engenhosa e extremamente elegante estas três ideias-temáticas: a teoria da gravidade quântica combina a compreensão do espaço e do tempo que a relatividade nos legou com a teoria quântica, na esperança de obter uma única teoria unificada da física. Mas, além disso, a teoria da gravidade quântica é uma teoria da cosmologia que tem de descrever o universo inteiro do ponto de vista dos observadores que nele vivem. Ora, para construir uma teoria completa e objectiva de todo o universo, Smolin foi inspirado pela biologia da evolução e pela hipótese de Gaia, de modo a evitar o princípio antrópico, tanto na sua versão fraca como na sua versão forte: a fusão entre a relatividade e a cosmologia com a teoria quântica assume assim a forma final de uma teoria da auto-organização. Depois de ter concebido o universo inteiro como um sistema auto-organizado, Smolin procura elucidar o mecanismo de auto-organização capaz de actuar cedo na história do universo para seleccionar as propriedades das partículas elementares e das forças da natureza. O único princípio suficientemente potente para explicar o elevado grau de organização do nosso universo - comparado com um universo com as partículas e as forças escolhidas aleatoriamente - é, na perspectiva de Smolin, a própria selecção natural. E o mecanismo pelo qual a selecção natural actua à escala do próprio universo é enunciado nestes termos: «as propriedades das partículas e das forças são seleccionadas para maximizar o número de buracos negros que o universo produz». De acordo com esta perspectiva, os universos que permitem a complexidade e a evolução reproduzem-se mais eficientemente do que outros universos menos complexos: as suas estrelas formam-se, evoluem e morrem, formando buracos negros, no interior dos quais uma pequena região dá origem a um novo universo que retém as leis da física do universo progenitor. O conjunto de universos evolui assim não de forma aleatória mas por meio de uma espécie de selecção darwinista, em favor de universos potencialmente complexos que contenham relógios e observadores. Para formular a sua teoria, Smolin conjuga e articula ideias que não vamos elucidar, pelo menos neste texto: o que interessa destacar é o facto de Martin Rees - astrofísico teórico - ter demonstrado que o nosso universo não possui propriedades que maximizem a probabilidade de buracos negros, sendo possível imaginar um universo ligeiramente diferente do nosso que fosse capaz de produzir um maior número de buracos negros: quer dizer que a teoria unificada de Smolin é demasiado vulnerável para convidar a construir algo filosoficamente seguro e sedutor a partir dos seus pressupostos darwinistas. A física é hoje conflito de interpretações.


John Brockman formulou muito mal a teoria da terceira cultura e, curiosamente, os cientistas e filósofos que reuniu para dar corpo a essa teoria não souberam distanciar-se da sua formulação demasiado ideológica. A ideia com que se fica é a de que se trata apenas de uma nova cultura pública que dispensa os intermediários: os produtores de conhecimentos dispensam os serviços dos intermediários na difusão da sua visão científica do mundo, assumindo eles próprios a tarefa de divulgar numa linguagem acessível ao grande público os seus resultados científicos. A cultura pública - enquanto nova face da cultura científica - é assim reduzida à divulgação científica. A formulação da teoria da terceira cultura realizada por Brockman parte de um equívoco: Em 1963, quando acrescentou um novo ensaio à sua obra The Two Cultures (1959), Snow apontou o surgimento de uma terceira cultura capaz de superar o fosso de comunicação entre os literatos e os cientistas, usando como exemplo toda a reflexão filosófica gerada em torno da biologia molecular. Brockman retoma o conceito de terceira cultura, mas rejeita veementemente a comunicação entre os agentes das duas culturas, a cultura literária e a cultura científica. Deste modo, a terceira cultura mais não é do que a cultura científica, cujos agentes recusam dialogar com os literatos, preferindo comunicar directamente com o grande público, sem recurso aos intermediários tradicionais. Brockman descreve não o aparecimento de uma terceira cultura, situada além das culturas literária e científica, mas a metamorfose ou a transformação pela qual a ciência, depois da emigração de Albert Einstein para os Estados Unidos, antes da guerra, se tornou cultura pública, eclipsando a cultura tradicional: «os cientistas são os novos intelectuais públicos», cuja missão é modelar «o pensamento da sua geração», - e «os Estados Unidos são agora - graças ao surto da ciência nas universidades americanas, subsequente ao lançamento do satélite soviético Sputnik - o alforge intelectual da Europa e da Ásia». Com este elogio do espírito científico americano, a terceira cultura revela o seu verdadeiro rosto: «O aparecimento da terceira cultura introduz novos modos de discurso e reafirma a supremacia dos Estados Unidos no domínio das ideias importantes. Através da história, a vida intelectual tem sido marcada pelo facto de apenas um número restrito de pessoas se ter dedicado a transmitir um pensamento sério aos seus semelhantes. Estamos a assistir à passagem de testemunho de um grupo de pensadores, os intelectuais tradicionais, para outro grupo, os novos intelectuais da terceira cultura emergente». Os novos intelectuais da terceira cultura emergente, todos eles clientes da agência literária de Brockman, utilizam um «novo conjunto de metáforas que fornecem uma descrição de nós próprios, da nossa mente, do universo e de tudo o que conhecemos»: a nova filosofia natural que protagonizam e que comanda o nosso tempo fundamenta-se na compreensão alargada da complexidade e da evolução. As ideias de Marx e de Freud foram desalojadas pelas ideias de Darwin: a nossa época, pelo menos desde a Queda do Muro de Berlim até à crise financeira de 2008, glorifica em todos os domínios do saber o triunfo de Darwin, o qual corresponde ao período da terrível onda neoliberal. O que é preciso realizar agora é a avaliação crítica deste novo conjunto de metáforas construído em torno de Darwin. Como é evidente, enquanto cientista, não posso duvidar da qualidade da ciência que se pratica nos Estados Unidos: o que está em questão não é a própria ciência, mas a sua organização social, por um lado, e a filosofia natural elaborada a partir dela, por outro lado. Muitos conhecimentos científicos dados como adquiridos estão a ser desmentidos pelas novas descobertas científicas realizadas com o auxílio de tecnologia avançada: os diversos mundos da ciência estão a sofrer alterações tão profundas que não permitem elaborar uma Nova Filosofia. A ciência aproxima-se da Filosofia, mas esta última não encontra solo seguro na ciência para ousar levar a cabo uma reforma radical do entendimento. Ou dito de uma forma provocante: o triunfo da ciência tal como foi protagonizado pelos novos intelectuais da terceira cultura coincide com a tomada de consciência dos limites da própria ciência. Assim, por exemplo, Paul Davies, mais outro físico teórico, retoma Santo Agostinho para concluir que a ciência não é boa para explicar os porquês: «Talvez não exista um porquê. Perguntar "por que" (há um universo e este universo em particular) é muito humano, mas talvez não haja resposta, em termos humanos, para perguntas tão profundas sobre a existência. Ou talvez haja, e estejamos a olhar para o problema da forma errada. Bem, não prometi respostas sobre a vida, o universo e tudo mais, mas pelo menos dei uma resposta plausível para a pergunta com a qual comecei: o que aconteceu antes do big bang? A resposta é: nada». Ao contrário do que defende o próprio Brockman, um número significativo dos seus clientes dialoga activamente com os pensamentos produzidos pela cultura literária, a maior parte das vezes em busca de novas metáforas para descrever o universo, a vida e a mente. A comunidade científica, pelo menos os seus membros mais destacados - cientistas e filósofos, está ciente das dificuldades da própria ciência para elaborar uma nova filosofia, e muitos deles começam a duvidar da autoridade de Darwin, bastando referir os nomes de R. C. Lewontin e de S. J. Gould, cuja filosofia se move nos territórios de Marx. Estará a ciência em crise? Conhecemos a resposta de Lenine: o discurso da crise da ciência é um discurso burguês, de cariz marcadamente idealista. As crises científicas não são crises da ciência, mas crises de crescimento científico que conduzem - por aproximações sucessivas - a uma visão mais verdadeira do mundo. Talvez Lenine tenha razão, mas ainda não conseguimos traçar os contornos gerais dessa nova visão do mundo. Ou talvez não tenha razão, estando hoje a ciência a ser substituída por algo estranho e inusitado cujo rosto desconhecemos. Steve Jones, um especialista em genética, escreveu um belo ensaio para explicar por que algumas pessoas são negras: após ter exposto as diversas teorias darwinistas, chega à conclusão que todas elas são incapazes de explicar a cor da pele. No entanto, Steve Jones continua a acreditar que a resposta correcta será dada brevemente: o seu optimismo científico deve ser confrontado com os resultados da sua própria crítica das teorias propostas, a qual revela a afinidade estrutural entre o darwinismo - convertido em dogma - e a exploração do homem pelo homem, ou seja, a sua natureza ideológica, de resto denunciada por Lewontin e, de modo brilhante, por Marshall Sahlins (1976). Entretanto, a Filosofia - salvo raras excepções - tem evitado fazer incursões pelo território das especulações cosmológicas da ciência, preocupando-se mais com a esfera pública dos assuntos humanos. Ora, é precisamente nesta esfera que a especulação científica tem fracassado: os novos intelectuais da terceira cultura são completamente avessos à História, território distinto da evolução biológica. Toda a obra de Anne Fausto-Sterling - professora de medicina - sobre o papel da raça e do género na construção das teorias científicas, bem como sobre o papel destas teorias na construção das ideias sobre raça e género, pressupõe um diálogo subterrâneo com a teoria de Marx, que ainda não foi explicitado e avaliado. Entre Marx e Darwin não existem tantas afinidades como as supostas, excepto a ideologia do progresso atribuída a ambos. Concordo com a crítica que Brockman dirige às capelinhas exclusivistas, onde habitam os intelectuais específicos de Foucault, mas não o acompanho quando rejeita a herança de Marx a favor da herança de Darwin, porque de uma coisa estou seguro: a nova filosofia que parece emergir no horizonte intelectual do nosso tempo indigente continuará a ser uma filosofia da história e da política, para a construção da qual Darwin não tem nada de importante a dizer.


Observação: Este artigo deve ser lido em conexão com este outro artigo: C. P. Snow: Duas Culturas?. Os novos intelectuais da terceira cultura deviam estudar a sério a Filosofia, para compreender que a cosmologia tal como a concebem tem pouco a dizer sobre o lugar do homem no mundo. Assim, por exemplo, a afirmação de Martin Rees sobre o homem como poeira estelar desencadeia em nós um sorriso filosófico. Diz ele que «para entender a nós próprios, precisamos entender as estrelas», porque nós «somos poeira estelar - as cinzas das estrelas há muito tempo mortas». Uma tal definição da Humanidade do Homem de nada nos serve: a poeira estelar que somos construiu um mundo próprio, no qual se tornou questão para si própria. E é esta questão que concentra toda a atenção da Filosofia.


J Francisco Saraiva de Sousa

quarta-feira, 28 de setembro de 2011

City of Porto: Photo Memories (I)

Edifício da Rua de Sá da Bandeira, Porto

Ateneu Comercial, Porto

Edifício A Nacional, Avenida dos Aliados, Porto

Edifício Neo-Árabe, Rua de Santa Catarina, Porto

Edifício da FNAC, Porto

Centro Histórico: Largo da Pena Ventosa, Porto

Igreja dos Congregados, Porto

Montepio Geral, Avenida dos Aliados, Porto

Edifício da Praça D. João I, Porto

Edifício da Rua de Alexandre Herculano, Porto

Magnífico Edifício da Rua de Sá da Bandeira, Porto

terça-feira, 27 de setembro de 2011

Prós e Contras: O Desafio

Belo Edifício da Rua de Sá da Bandeira, Porto
Pela primeira vez, Álvaro Santos Pereira, Ministro da Economia deste governo de Passos Coelho, aparece em público para defender as suas políticas económicas. O debate Prós e Contras (26 de Setembro) discutiu o futuro da economia portuguesa, cujo problema essencial neste momento de crise é o seu financiamento. Além do ministro da economia e dos convidados da plateia, estiveram presentes mais três figuras do mundo empresarial: Luís Baptista Coelho (Ceo NDrive), Carlos Moreira da Silva (Cotec) e Cristina Siza Vieira (Associação Hoteleira do Sul). Pretendia fazer uma crítica radical à política de desenvolvimento económico deste governo de Direita, mas, quando escutei o ministro a falar de duas linhas de bitola europeia - Sines-Madrid e Aveiro-Salamanca -, constatei que toda a sua política económica continua a ser feita contra o Porto e o Grande Porto. Luís Baptista Coelho que é um empresário portuense de sistemas de navegação de tecnologia avançada, com sucesso no Brasil, Turquia e França, decidiu deslocar a sua empresa para Silicon Valley (San Francisco), provavelmente para escapar a esta perseguição invejosa movida pela mouraria contra o Porto. De facto, "a tecnologia não tem passaporte", como disse, e aqui no Porto o nosso passaporte é sermos portuenses - e não portugueses, de resto mal-vistos justamente em todo o mundo. Temos de tal modo vergonha da nacionalidade portuguesa que omitimos nos nossos contactos com estrangeiros essa fatalidade peçonhenta: a Marca Porto é a única que assumimos com orgulho. Não se percebe esta decisão irracional de preferir a linha Aveiro-Salamanca à linha mais lucrativa Porto-Vigo, a não ser pela má-fé que move este governo contra o Porto e o Norte. Não vemos como é que a linha Aveiro-Salamanca pode constituir um serviço de alta competitividade, para usar a expressão do ministro e da comissão europeia. (Curiosamente, a burguesia do Porto arruinou-se no passado para construir a ligação ferroviária Porto-Salamanca, para a qual o malvado poder central não contribuiu. O Sul foi sempre-já a causa fundamental do atraso nacional. Essa burguesia portuense de outros tempos deve ser lembrada por todos aqueles que lutam pela autonomia do Norte!) No entanto, o ministro até explanou um pacote de políticas económicas bastante consistente e, nalguns aspectos pontuais, de ruptura interessante com o passado. Quanto ao turismo, defendeu novos conceitos de turismo, em especial o turismo religioso e o turismo de património, que se afastam claramente do turismo do mar e do sol que descaracteriza o Algarve, fazendo dele um potencial buraco orçamental que alimenta empresários hoteleiros sem escrúpulos. Apostar em todas as valências, dando especial destaque às diversas regiões de Portugal e não apenas ao triste e feio Algarve, constitui efectivamente uma boa aposta do governo: Portugal é um país pequeno, como disse Álvaro Santos Pereira, mas possui grande diversidade geográfica susceptível de atrair novos turistas. Além disso, o turismo patrimonial implica uma nova política de reabilitação das grandes cidades, outra boa política. Porém, num momento de crise e de escassez de meios financeiros, essa política deve ser implementada nas cidades que já têm condições para promover esses dois tipos de novos turismos: uma é Lisboa, que já está bem servida, a outra é o Porto. Mas também aqui o ministro revelou o seu ódio pelo Porto que possui - se a memória não me falha - mais de 64 igrejas, para já não falar das capelas. Mas o património portuense não se reduz à arquitectura sacra: o Porto é Património Mundial da Humanidade (UNESCO). Uma vez que não quer ajudar o Porto e o Norte a promover a sua política de desenvolvimento regional, Lisboa deve - se ainda tiver alguma dignidade - negociar com o povo portuense - e tenho a certeza que todo o Norte se alia ao Porto - a sua independência. O Norte, ao contrário do que disse uma figura da plateia, tem o seu próprio turismo da natureza, não só o Douro mas também outras belas regiões, como por exemplo o Gerês. Para os habitantes do Norte que criaram a nação, é muito difícil compreender como a Madeira ultrapassa o Norte em termos de rendimentos: eles sabem que estão a ser sacrificados para sustentar o parasitismo do país improdutivo. Como lembrou um empresário do calçado, Lisboa fez tudo para destruir as indústrias do calçado e têxtil, duas industrias tradicionais do Norte. E hoje, graças ao espírito de iniciativa do Norte, sem a ajuda do Estado-ladrão, são duas indústrias de prestígio internacional que exportam para os melhores mercados do mundo, os mercados exigentes que preparam as empresas para o desafio da competitividade global, enquanto as regiões do sul pouco fazem para contribuir para as exportações nacionais, limitando-se a sacar o que não lhes pertence: o Norte está a ficar mais pobre para sustentar o luxo dos parasitas do sul. Não admira que o desejo pela independência comece a surgir no espírito das pessoas do Norte e a ser ventilado nas conversas privadas, difundindo-se pelas diversas redes sociais. O PSD enganou o Norte quando - durante a campanha eleitoral - se mostrou receptivo à regionalização. Mas nunca é demais repetir que Lisboa pode libertar-se desse ódio, dando a independência ao Norte e, em especial, ao Porto. Nós portuenses não desejamos mais ligações com Lisboa e com o sul: a nossa alma dirige-se para o norte na direcção da Galiza e dos países do Norte da Europa, com cujas populações temos mais laços genéticos do que com as populações do sul de Portugal. No fundo, a linguagem do sangue fala mais alto do que a linguagem de uma falsa unidade nacional que só nos empobrece e nos prejudica. Lisboa pode ter a certeza de que nenhum país se negará a formar uma aliança de sangue com o Porto. Hoje sabemos que o nosso bem-estar só será conquistado quando abandonarmos a nossa ligação a Portugal, cujo nome lhe foi dado pelo Porto (Portus Cale). A Associação Hoteleira de Portugal já usa o termo Portugal para designar exclusivamente o sector hoteleiro do sul. A palavra Portugal tornou-se-nos completamente estranha, tal como nos é estranha a chamada selecção nacional. Bem sei que o ministro pretende quebrar essa equação Turismo = Algarve, mas referiu apenas Guimarães esquecendo intencionalmente o Porto, talvez na tentativa de dividir o Norte para que Lisboa possa exercer a sua terrível dominação sobre a região à qual nega a designação portuguesa, falsificando perversamente a História de Portugal. Não há uma única teoria do desenvolvimento económico que aponte o turismo como uma espécie de motor da explosão económica de um país: o conceito de um país de turismo revela o seu nível de subdesenvolvimento. Ao apostar estupidamente na marca Algarve, o poder central português - além de ter sacrificado o desenvolvimento económico das regiões produtivas - mostrou ser incapaz de alavancar o desenvolvimento nacional equilibrado e diferenciado. Um país económica e culturalmente desenvolvido não tem como sector dominante o turismo: o facto do turismo ser o quarto sector da economia portuguesa revela fatalmente o seu atraso estrutural. Algarve é, pois, sinónimo de subdesenvolvimento e de atraso estrutural, e, qualquer turista culturalmente informado não escolhe o Algarve como destino turístico. Neste aspecto, a proposta do ministro da economia de diferenciar o turismo, privilegiando a valorização do património histórico e cultural, permite deslocar a economia portuguesa na direcção de outro modelo de desenvolvimento económico: cuidar do património atrai turistas culturais sem sacrificar a economia produtiva, aquela que liberta o país do atraso estrutural e da mediocridade cultural, desde que saiba defender-se da terrível noção de Portugal como um museu vivo. Tal como a Madeira de Alberto João Jardim, o Algarve é, virtualmente, um buraco orçamental. Os grandes grupos económicos do Norte deslocam as suas sedes para a Holanda e outros países do Norte da Europa por causa do espírito ladrão do poder central e do sul: eles não querem alimentar os parasitas do sul. E, sem querer, prejudicam o próprio bem-estar das populações do Norte produtivo. Assim, por exemplo, o Vinho do Porto é uma marca do Norte, mas os canais de televisão do sul, em particular a TVI, apropriaram-se da nossa marca e usam-na nas suas hilariantes telenovelas para promover um falso estilo de vida sulista - o parasitismo improdutivo. As telenovelas da TVI são simplesmente saloias, irracionais e patológicas - meras falsificações da realidade nacional que prejudicam fatalmente a formação cultural dos portugueses, sobretudo dos mais jovens. Todo o imaginário sulista é parasita, delirante e chulo: os saloios limitam-se a copiar aquilo que não lhes pertence e a consumir aquilo que não produzem, como já sabia Fernando Pessoa.


Em termos de conceitos, com exclusão da animosidade deste governo contra o Norte, não tenho nada de muito dramático a opor às propostas apresentadas por Álvaro Santos Pereira. Nos debates promovidos por Fátima Campos Ferreira, o excesso de convidados não ajuda a clarificar os temas discutidos. Neste debate, apesar da subserviência oportunista de quase todos os outros intervenientes, o ministro da economia e do emprego pouco falou. Porém, a sua noção de uma economia dual, uma economia a duas velocidades, presta-se a mostrar a existência de uma grande assimetria regional: um Norte dotado de iniciativa e um Sul absolutamente dependente do Estado e parasitário, no meio dos quais se encontra o Estado que tem preferido empobrecer o Norte para alimentar o parasitismo do Sul. O Norte contribui com mais de 40% para as exportações nacionais e, no entanto, encontra-se atrás de Lisboa e da Madeira no que se refere à riqueza: o que quer dizer que, sem a intervenção irracional do Estado, o Norte estaria preparado para diminuir as importações e aumentar as exportações, promovendo a produção nacional e o emprego. Os governantes portugueses nunca souberam promover o desenvolvimento económico nacional: o seu impulso natural e espontâneo é sacar as regiões mais ricas do país para promover um falso estilo de vida na capital, usando a bandeira da solidariedade nacional em benefício próprio. O ministro da economia e do emprego pretende promover os produtos nacionais, ou seja, a marca Portugal, mas onde estão os produtos nacionais, no Norte ou no Sul? O PSD - se quiser fazer um ajuste de contas sincero com o seu terrível passado - não pode continuar a empobrecer o Norte, como sucedeu nos governos chefiados por Cavaco Silva que nos privaram da nosso próprio sector bancário. O centralismo é, de facto, a causa principal do atraso estrutural de Portugal. A história está aí para demonstrar que os países centralistas nunca conseguiram seguir a via do desenvolvimento económico e cultural. Não adianta falar de reformas estruturais, como fez o ministro, quando nelas não se inclui a descentralização ou mesmo a regionalização: os países desenvolvidos são federações de Estados autónomos. O desenvolvimento económico traz a marca de sangue do desenvolvimento desigual, e não vejo como no seio de um mundo capitalista se possa contornar este índice de desigualdade: a corrupção, a inveja e o espírito de imitação tal como as conhecemos em Portugal bloqueiam a via do desenvolvimento. É provável que a "solução" esteja na diferenciação competitiva defendida pelo ministro para o turismo, desde que alargada a todos os sectores da economia nacional. A maior parte das empresas portuguesas não estão preparadas para responder àquilo a que o ministro chamou o desígnio nacional: a internacionalização, a abertura aos mercados mundiais. Não sei se o programa da via rápida para o investimento proposto pelo ministro será capaz de levar as empresas a reinventarem-se através do espírito de iniciativa e da inovação. Em Portugal, não há propriamente uma cultura empresarial: a agilização dos investimentos e a lei da concorrência são palavras que não fazem parte do vocabulário da maior parte dos empresários portugueses, de resto destituídos de cultura. Curiosamente, o ministro e o partido que tanto criticaram no passado o optimismo de José Sócrates são hoje adeptos inveterados do optimismo. Em Portugal, o optimismo anda associado ao poder: aqueles que estão no poder são optimistas - a vida corre-lhes bem!, enquanto que aqueles que estão fora do poder e da sua esfera de influência são pessimistas: eis aqui mais um retrato da corrupção nacional. Álvaro Santos Pereira garantiu que os sacrifícios exigidos aos portugueses não serão em vão: o governo pretende cumprir na integra o memorando da troika, indo para além das medidas de austeridade previstas, consolidar o orçamento e levar a cabo as velhas reformas estruturais para fomentar uma economia mais inovadora e mais competitiva. E, no que se refere às políticas de obras públicas, o governo, além do projecto de construção das duas linhas de bitola europeia, pretende apostar no Mar e nos portos, com exclusão do Porto de Leixões, tal é o seu ódio visceral pelo Porto, e no equilíbrio das energias, abandonando de certo modo o programa das energias renováveis, e abrindo-se à possibilidade da energia nuclear. Por fim, o ministro falou do investimento que será realizado em Portugal, algures numa região do sul, por uma empresa multinacional, sem no entanto a nomear. Afinal, qual é o instrumento estratégico deste governo de Direita? A reforma semântica não é suficiente para quebrar o feitiço chamado Portugal. Até Miguel Gonçalves foi de tal modo enfeitiçado pelo optimismo semântico que se limitou a aplaudir a necessidade de produzir urgentemente heróis descarados. De facto, é preciso ter muito descaramento para mendigar o capital que não se reproduz no solo nacional. Triste fado o nosso!

J Francisco Saraiva de Sousa

domingo, 25 de setembro de 2011

City of Porto: Ribeira e Rio Douro

City of Porto: Ribeira

City of Porto: Ribeira

City of Porto: Ribeira

City of Porto: Flash Mob FCPorto

City of Porto: Teleférico de Gaia

C. P. Snow: Duas Culturas?

C. P. Snow
«Creio que a vida intelectual de toda a sociedade ocidental tende cada vez mais a dividir-se em dois grupos, em dois pólos. Quando digo a vida intelectual, entendo-a como incluindo também uma boa parte da nossa existência prática... Dois grupos, dois pólos: num deles, temos os intelectuais literários, que por vezes, quando ninguém os observa, costumam referir-se a si próprios como "os intelectuais", quer dizer, como se não houvesse outros que o fossem também, além deles. Os intelectuais literários, num dos pólos, portanto - e no outro, os cientistas, dos quais os mais representativos são os físicos. Entre uns e outros, um abismo de incompreensão mútua - que se torna por vezes (sobretudo entre os jovens) hostilidade e repulsa, mas que acima de tudo continua a ser incompreensão. Cada um dos grupo tem uma imagem estranhamente distorcida do pólo a que não pertence. As suas atitudes são tão diferentes que, nem sequer ao nível das emoções, conseguem grande coisa em comum». (C. P. Snow)

Com este texto introdutório liberto um novo tópico - a Filosofia da Cultura, que, assumindo a forma crítica de uma impugnação da teoria das duas culturas de C. P. Snow ou da teoria das três culturas de John Brockman, retoma a questão da cultura e da formação cultural - que tanto preocupou Theodor W. Adorno - para evidenciar que só a Filosofia pode redimir este conflito entre culturas. Esboçar uma teoria filosófica da cultura será, portanto, o nosso objectivo derradeiro. Existem muitas perspectivas sobre a cultura, tanto no seio da Filosofia como fora dela, e, no entanto, não temos ao nosso dispor uma teoria filosófica da cultura. Mas o que sabemos sobre a cultura é suficiente para denunciar a simplificação grosseira operada por C. P. Snow, quando reduz a vida intelectual do Ocidente a um conflito-cisão entre cultura literária e cultura científica. Uma teoria filosófica da cultura é, ao mesmo tempo, uma crítica da cultura: o conceito de cultura que predomina nas obras de C. P. Snow e de John Brockman é o conceito antropológico que foi elaborado pela Antropologia no final do século XIX. Ora, um tal conceito antropológico de cultura - em qualquer uma das suas concepções: descritiva, simbólica e estrutural, quando aplicado para delimitar culturas particulares ou regionais no seio da própria cultura ocidental, corre o risco de se converter em noção ideológica: a cultura literária, a cultura científica e a terceira cultura são noções ideológicas, no sentido de cada uma delas reflectir os interesses de determinados grupos sócio-profissionais e as suas respectivas visões do mundo. Quando introduzi o conceito de formação cultural, fi-lo na intenção de conservar o conceito clássico de cultura que resultou das discussões entre filósofos e historiadores alemães nos séculos XVIII e XIX. O conceito clássico de cultura pode ser definido deste modo: a cultura é o processo de desenvolvimento e de enobrecimento das faculdades humanas, um processo facilitado pela assimilação dos trabalhos académicos e artísticos e ligado ao carácter progressista da sociedade moderna. É certo que este conceito clássico precisa ser reformulado, mas ele tem o mérito inegável de chamar a atenção para o problema da formação cultural do indivíduo e da sociedade no mundo contemporâneo. Levá-lo em conta obriga-nos a deslocar a atenção da questão da cultura para a questão da formação cultural nas nossas sociedades modernas. À luz desta última questão o que se verifica nas nossas sociedades é a regressão cognitiva, acompanhada pela atrofia dos órgãos mentais. Este fenómeno de regressão cultural era mais evidente em 1991, quando Brockman alinhavou a ideia de terceira cultura - e, depois de forma mais sistemática, em 1995, do que em 1959, quando Snow apresentou a sua célebre conferência sobre as duas culturas na Casa do Senado de Cambridge. A terceira cultura de Brockman mais não é do que a cultura científica de Snow, mas já liberta dos intermediários - professores e jornalistas: os seus "pensadores" esforçam-se por exprimir os seus "pensamentos mais profundos" (sic) de uma forma acessível ao público inteligente. Mas quais são os pensamentos profundos norte-americanos a que se refere Brockman? Serão milagrosamente Richard Dawkins, Marvin Minsky ou Daniel Dennett pensadores profundos, capazes de nos oferecer o esclarecimento do sentido mais profundo da vida, redefinindo quem somos e o que somos? A obra organizada por Brockman é decepcionante: os seus colaboradores limitaram-se a substituir Marx e Freud por Darwin, como se o pensamento de que descendemos de "macacos" fosse suficiente para nos dar uma orientação na vida. Quando denunciou o clericalismo da ciência, Teixeira de Pascoaes viu bem que a lição de Darwin tinha o efeito contrário: animalizar o homem e privá-lo da sua humanidade, mais precisamente da cultura superior. O que está em questão neste debate sobre a cultura é, no fundo, o monopólio da cultura por parte de um dos seus "grupos clericais" ou sectores: Brockman defende a monopolização científica da cultura, tal como no outono da Idade Média a Igreja tinha usado a Inquisição para não perder o seu monopólio da cultura. Mas há uma diferença significativa entre a cultura científica e a cultura religiosa: em pouco tempo a ciência-ideologia tem feito mais estragos do que a religião no decorrer dos milénios. Felizmente, há uma terceira cultura, aquela que plasmou a civilização ocidental: a cultura filosófica, a única capaz de redimir o conflito entre cultura literária, cultura religiosa e cultura científica. Os cientistas norte-americanos já deviam saber que nunca foram grandes pensadores e, muito menos, pensadores profundos: o seu universo mental está mais próximo das fantasias de Hollywood do que do espírito da Filosofia Ocidental. Fazer de Darwin um pensador profundo é simplesmente ridículo: Darwin não tem espessura teórica para poder ser encarado como um intelectual orgânico (Gramsci) ou, como diria Sartre, um intelectual universal. As capelinhas exclusivistas denunciadas justamente por Brockman, onde habitam os intelectuais específicos de Foucault, guardam um lugar discreto para Darwin, mas não o lugar com aspiração ao universal, aquele que só pertence a Marx.


J Francisco Saraiva de Sousa 

City of Porto: Sé-Catedral do Porto

sábado, 24 de setembro de 2011

City of Porto: Clérigos Church and Tower

City of Porto: Porto Cathedral

City of Porto: Church of St. Clara

City of Porto: Church of São Francisco

Portugal: a country of thieves

Torre de Belém, Lisboa
«Nesta mesma época há apenas duas grandes e nobres figuras: Mouzinho e o filho de D. João VI. O resto não vale a pena da menção. São financeiros e barões, viscondes, condes, marqueses, de fresca e mesmo velha data, comendadores, grã-cruzes, conselheiros: uma turba que grunhe, burburinha, fura, atropelando-se e acotevelando-se na obra de roer um magro osso chamado orçamento, e que grita aqui-d'el-rei! quando não pode tomar parte no regabofe». (Alexandre Herculano)

Todos nós, os poucos portugueses que ousaram e ousam pensar contra o sistema estabelecido, sabemos definir a raiz do mal-existente em Portugal: a turba de ladrões e de corruptos que, no Terreiro do Paço, se atropelam e se acotovelam na obra de roer o orçamento do Estado Português (Alexandre Herculano), entregando e condenando o povo à sua própria imbecilidade (Guerra Junqueiro). O retrato histórico de Portugal que tenho defendido neste blogue pode ser reformulado de um modo intemporal: a História de Portugal é a eterna repetição de um mesmo quadro de rapina e de imbecilidade. Desta vez, vou servir-me do quadro da Revolução Liberal de 1820, magnificamente analisado por Fernando Piteira Santos (1962) na sua obra Geografia e Economia da Revolução de 1820. O que nos interessa destacar não é propriamente a problemática da revolução de 1820, mas a seu fracasso revolucionário. Portugal é um país que tem sofrido algumas revoluções, mas nenhuma delas - incluindo a revolução de 25 de Abril de 1974 - conseguiu mudar o seu rumo, libertando-o do atraso estrutural e devolvendo-o à via do desenvolvimento económico e cultural. Um dado muito significativo deste período é o seguinte: Depois da emancipação do Brasil, os alicerces do comércio português ruíram: seguiu-se um longo período de estagnação económica que se reflectiu nas contas públicas. Em 1828, a receita do Estado foi de cerca de 10 000 contos e a despesa de 13 900, e, três décadas depois, num período em que a Europa conhecia um crescimento económico galopante, a situação económica e financeira portuguesa ainda não tinha sido alterada: 11 489 de receita e 12 944 de despesa. O défice é uma constante na História de Portugal. E não adianta responsabilizar as invasões francesas, a exploração inglesa ou a guerra civil de 1828-34 pela estagnação económica, porque, em 1840, o economista Franzini - futuro ministro da Fazenda - era contrário à instalação de teares modernos em Portugal, alegando que ninguém os saberia manejar. Portugal nunca teve uma elite de homens sábios: o poder foi sempre-já refém de uma turba de ladrões que sacrificam o interesse nacional para garantir o seu próprio bem-estar. Eis como Oliveira Martins retrata este período da História de Portugal, em tudo idêntico ao período que se seguiu à revolução de 25 de Abril, sobretudo depois da adesão de Portugal à União Europeia e da sua entrada na zona Euro, a substituta infiel do Ouro do Brasil e do Império Colonial:


«A consequência mais profunda da revolução liberal foi a ruptura da tradição, o acabamento definitivo do sebastianismo: exprimindo por esta palavra simbólica todo o corpo de ideias, ambições e costumes históricos. Substituiu-se-lhe, porém, a consciência de uma nova pátria moral? Acordou-se o sentimento de um verdadeiro individualismo, fundado na religião (consinta-se-nos dizer assim) democrática? A personalidade tornou-se forte e consciente dos seus direitos? A inteligência apurou-se? Cresceu o saber? Pôde, com estes elementos, constituir-se o corpo homogéneo de uma nova nação real e viva?
«Afigura-se-nos que não; e oxalá isto seja apenas a ilusão de um espírito triste.
«A vazia agitação política, resultado necessário dos regimes parlamentares, parece condenar os pequenos países a uma esterilidade intelectual, porque absorve todas as capacidades desde que desabrocham. A direcção moral que só a ciência pode dar desaparece, e os institutos e as academias vazam-se para encher os parlamentos e alimentar o jornalismo. Vê-se, pois, uma educação aparentemente mais extensa, mas de facto sem intensidade, nem vigor, condenada a uma decadência fatal. Não se sabe mais do que o praticamente indispensável, e por isso mesmo a craveira do saber necessário se fecha diariamente, chegando-se afinal a uma vulgaridade banal.
«Essa mesma agitação política, por natureza inimiga do carácter que amesquinha e deprime, vicia o temperamento das nações condenadas a sacrificarem à profissão todos os seus melhores homens. A corrupção, mais ou menos positiva, a sedução da vaidade, das prebendas, dos empregos, da influência, lança nos caracteres uma semente de perversão que germina no corpo de uma sociedade desprovida de um escol de homens sábios, de caracteres fortes, alheios às misérias comuns: fibra íntima, mola resistente, que ponha em cheque a influência deletéria da intriga.
«A limitada área das operações administrativas, a exiguidade relativa de recursos do tesouro impedem, por seu turno, que se dote o país com a instrumentação necessária a um amplo desenvolvimento da riqueza e do saber, porque esses gastos-gerais das nações não são proporcionais ao seu tamanho, mas quase idênticos em todas elas. Assim, causas de ordem exterior vêm concorrer para agravar as causas de ordem íntima.
«Desde que o saber falta, os erros acumulam-se precipitando a ruína; desde que falta o carácter, a venalidade concorre para encarecer o custeio dos serviços; e ao mesmo tempo o reconhecimento da necessidade de progredir materialmente - e para esse não é mister carácter, nem saber - arrasta a empresas que, entregues a órgãos incapazes, podem ser cataclismos.
«Para além dessa já numerosa classe que governa e intriga, de um modo em que não é lícito ver nobreza nem elevação, burburinha um enxame de trabalhadores obscuros, lavrando pacientemente a terra e transformando os seus produtos, indiferentes a ideias que desconhecem, esquecidos de uma religião anacrónica, desconfiados ou descrentes dos homens, inspirados e movidos pelo propósito único de semear e colher os frutos do seu trabalho. São eles a matéria-prima da sociedade, mas ninguém descobre nessa turba a fisionomia própria das nações. São uma população provincial que enriquece. Até hoje - não é ousadia afirmá-lo - nem eles por si próprios, nem, por eles, os que os mandam, souberam tomar essa matéria-prima, animá-la, dar-lhe a homogeneidade de forma e a vida própria dos organismos colectivos.
«Daí vem o caso, talvez único na Europa, de um povo que não só desconhece o patriotismo, que não só ignora o sentimento espontâneo de respeito e amor pelas suas tradições, pelas suas instituições, pelos seus homens superiores; que não só vive de copiar, literária e politicamente, a França, de um modo servil e indiscreto; que não só não possui uma alma social, mas se compraz em escarnecer de si próprio, com os nomes mais ridículos e o desdém mais burlesco. Quando uma nação se condena pela boca de seus próprios filhos, é difícil, senão impossível, descortinar o futuro de quem perdeu por tal forma a consciência da dignidade colectiva.
«Continua ainda a decomposição nacional, apenas interrompida de um modo aparente pelas ideias revolucionárias e pela restauração das forças económicas fomentadas pelo utilitarismo universal? Ou presenciamos um fenómeno de obscura reconstituição, e sob a nossa indecisa fisionomia nacional, sob a nossa mudez patriótica, sob a desesperança que por toda a parte ri e geme, crepitará latente e ignota a chama de um pensamento indefinido ainda?» (Oliveira Martins) Que mais podemos acrescentar a estas sábias palavras de Oliveira Martins?


J Francisco Saraiva de Sousa

City of Porto: Luta pela Autonomia da Cidade Invicta

Porto: A Melhor Cidade de Portugal

quinta-feira, 22 de setembro de 2011

USS Enterprise & Navio Escola Sagres

USS Enterprise (CVN-65), Marinha dos USA

NRP Tridente, Submarino da Marinha Portuguesa

NRP Sagres, Navio Escola da Marinha Portuguesa
Adoro navios de guerra e, sobretudo, porta-aviões. Infelizmente, não temos um porta-aviões!

quarta-feira, 21 de setembro de 2011

Portugal refém da Madeira?

Fragata Classe Vasco da Gama NRP Álvares Cabral (F-331) 

Portugal refém da Madeira e das dívidas ocultas de Alberto João Jardim? A democracia é um regime político; não é um sistema social. Em Portugal, o poder político corrompeu o espírito da democracia e, em vez de democracia de qualidade, temos como resultado chulismo e oportunismo. Ou seja: os madeirenses querem ser chulos e votam no Alberto João Jardim e nós financiamos as suas despesas faraónicas. Quereis ser reféns da Madeira? Não se trata de uma questão de ilhas, mas de transparência: quem não contribui solidariamente para o orçamento nacional não pode exigir dinheiro ao Continente. O caso do buraco financeiro da Madeira - governada há mais de 30 anos pelo PSD - está a ajudar os portugueses a tomar consciência da corrupção instalada nas esferas do poder. Neste momento, pelo menos no continente, os portugueses uniram-se para insultar em todos os lugares públicos Alberto João Jardim: a agressividade contra a Madeira começa a libertar-se e, quando for confrontada com os efeitos nefastos das medidas de austeridade, promete sair para as ruas... O momento é explosivo. E, se os madeirenses continuarem a votar no Alberto João Jardim, devem preparar-se para prestar contas à troika: os portugueses não querem saber dos buracos da Madeira. O falso desenvolvimento da Madeira está a sair caro aos portugueses que não querem sustentar o parasitismo madeirenseO PSD começa a cavar a sua própria sepultura! Por enquanto, o governo português está a tentar gerir os buracos produzidos pelo seu próprio partido e pelos seus membros: Madeira e BPN.

Memórias de Moçambique

Missão Franciscana das Amatongas, Moçambique Colonial, 1942
Resolvi criar este novo tópico - Memórias de Moçambique, porque constatei que existem muitos grupos de portugueses oriundos de Moçambique que continuam a sentir saudades da sua terra de coração ou mesmo de nascimento. Dado o meu interesse pelo Império Colonial Português, sou receptivo à ideia de publicar neste blog fotografias das paisagens coloniais de Moçambique. Quem tenha fotografias pode enviá-las para o endereço electrónico deste blog: elas serão publicadas com as devidas referências. Hoje Moçambique é uma terra devastada e degradada: a única coisa que os portugueses podem fazer é zelar pela memória de Moçambique Colonial. As obras que os portugueses construíram ao longo de séculos de colonização - sobretudo nas sete primeiras décadas do século XX - foram praticamente destruídas em poucos anos. Como dizia André Malraux: «São precisos nove meses para fazer um homem, e um só dia para o matar». O mesmo se passou com a obra civilizacional dos portugueses nos territórios de Moçambique, Angola, Guiné-Bissau, Cabo Verde e São Tomé e Príncipe.
Moulin Rouge, Cidade da Beira, Moçambique
Mesquita de Lourenço Marques, Moçambique

J Francisco Saraiva de Sousa

Lucien Lévy-Bruhl: A Mentalidade Primitiva

Lucien Lévy-Bruhl (1857-1939)
«É por isso que a mentalidade dos primitivos tanto pode ser pré-lógica como mística. Temos aí antes dois aspectos de uma mesma propriedade fundamental do que dois aspectos distintos. Essa mentalidade será chamada mística se se considerar mais especialmente o conteúdo das representações; pré-lógica, se se olhar antes para as ligações. Pré-lógica não deve também fazer supor que esta mentalidade constitui uma espécie de estádio inferior, no tempo, ao aparecimento do pensamento lógico. Existiram alguma vez seres humanos ou pré-humanos cujas representações colectivas não tenham obedecido a leis lógicas? Ignoramo-lo. Em todo o caso, é muito pouco verossímil. Pelo menos, a mentalidade das sociedades de tipo inferior, a que chamo pré-lógica à falta de melhor nome, não apresenta de modo algum esse carácter. Não é antilógica; também não é alógica. Chamando-lhe pré-lógica, quero somente dizer que ela não se sujeita, antes de tudo o mais, a abster-se de contradição. Primeiro obedece à lei da participação. Assim orientada, não se compraz gratuitamente no contraditório (o que a tornaria constantemente absurda para nós), mas também não pensa em evitá-lo. Na maioria das vezes, é indiferente ao princípio de contradição. O que significa que é difícil de acompanhar». (Lucien Lévy-Brühl, 1910)


A globalização e a ideologia neoliberal que a molda voltam a colocar na ordem do dia os temas clássicos da Filosofia Primitiva, cuja tarefa é, como vimos noutro texto, estudar as formas de pensamento primitivo na sua relação com o contexto social. Gaston Bouthoul formulou o princípio de que existem estruturas mentais que correspondem estritamente às estruturas sociais, definindo assim a mentalidade do ponto de vista da sociedade: «uma sociedade é essencialmente um grupo de pessoas de mentalidade análoga», e cada uma das mentalidades é «uma condensação interiorizada da vida social». Este princípio pode ser lido tanto do ponto de vista da sociologia de Durkheim que destaca mais a integração do que o conflito, como do ponto de vista marxista, cujo conceito de ideologia implica uma sociedade de classes em conflito. Ora, de todas as mentalidades, a mais estudada foi aquela a que Lévy-Bruhl chamou mentalidade primitiva. Nas suas primeiras obras, Lévy-Bruhl atribuiu à mentalidade primitiva duas características básicas: mística, no que se refere ao conteúdo das suas representações, e pré-lógica, no que se refere às ligações entre essas representações. Por um lado, a mentalidade primitiva é mística, não no sentido do misticismo religioso, mas no sentido da crença em forças, influências ou acções imperceptíveis aos sentidos e, no entanto, reais: quer dizer que os povos primitivos se movem numa realidade mística, onde todas as coisas possuem poderes ocultos. E, por outro lado, a mentalidade primitiva é pré-lógica, não no sentido de ser anterior no tempo à aparição do pensamento lógico, ou no sentido de ser antilógica ou alógica, mas no sentido de não se sujeitar a abster-se da contradição: quer dizer que a mentalidade das sociedades inferiores obedece menos ao princípio de identidade do que a uma lei de participação, em virtude da qual - nas suas representações colectivas - os objectos, os seres, os fenómenos podem ser simultaneamente eles próprios e outra coisa diferente deles mesmos. Assim, por exemplo, os Bororos do Brasil afirmam que são araras. A lei da participação permite aos primitivos explicar as conexões que estabelecem entre o retrato e o seu modelo, a sombra e a pessoa, o nome e a coisa; o costume da couvade; a importância atribuída aos presságios, à adivinhação e aos símbolos; a representação que fazem de si próprios, com o sentimento da existência individual relegado a segundo plano pelo conjunto de pertinências que os ligam ao meio e, especialmente, ao grupo; a ligação entre o próprio grupo e uma porção de território, o seu centro totémico local; enfim, a natureza dos sistemas de classificação e das pré-ligações que estabelecem entre as suas representações. O duplo carácter da mentalidade primitiva ajuda Lévy-Bruhl a explicar a concepção de causalidade que a caracteriza: «A causalidade que ela concebe é de um tipo diferente daquele que nos é familiar». As sociedades primitivas ignoram as cadeias de causas intermediárias e concebem apenas uma «causalidade mística e imediata», que implica uma representação completamente distinta do tempo e do espaço. Para os primitivos, não há fenómenos naturais, no sentido que damos a este termo. Assim, por exemplo, a morte resulta sempre de práticas de magia, mesmo quando se trata da morte de um homem idoso e doente. Imaginemos a seguinte cena: um búfalo investe contra um homem e mata-o. Segundo Lévy-Bruhl, o homem primitivo prefere a explicação mística à explicação objectiva natural: a morte deste homem será assim explicada pela bruxaria. Haverá aqui uma contradição? Será o homem primitivo indiferente à contradição? Evans-Pritchard considera que não há aqui nenhuma contradição, alegando que os primitivos fazem uma análise mais aguda da situação: «Eles estão perfeitamente cientes de que foi um búfalo que matou o homem, mas sustentam que isto não teria acontecido se não tivesse havido bruxaria. Se não fosse a bruxaria, o homem não teria sido morto pelo búfalo, ou teria sido outro homem que não aquele ou teria sido outro búfalo e outro espaço e outro tempo e não aqueles: por que aconteceria como aconteceu se não fosse a bruxaria? Eles estão a perguntar por que - como nós diríamos - duas cadeias causais de eventos independentes se cruzam, levando um determinado homem e um determinado búfalo ao mesmo lugar e no mesmo tempo». Nesta perspectiva mais subtil, que Evans-Pritchard (1937) explanou na sua obra Witchcraft, Oracles and Magic among the Azande, as duas explicações - a natural e a mística - são complementares: os primitivos salientam mais a causa mística do que a causa natural, porque ela permite a vingança contra quem enfeitiçou o homem. A subtileza desta análise não deve iludir a incapacidade dos antropólogos para solucionar as questões relativas ao pensamento primitivo.


Lévy-Bruhl estudou - de 1910 a 1938 - o sistema de conhecimentos que correspondem à sociedade primitiva, sem pretender procurar a origem do conhecimento filosófico e do conhecimento científico das sociedades civilizadas. O conhecimento perceptivo do mundo exterior, bem como o conhecimento do Eu, do Outro e do Nós, é, entre os povos primitivos, completamente diferente dos nossos conhecimentos. Convém deixar bem evidenciado que Lévy-Bruhl era descontinuísta e anti-evolucionista: os povos primitivos vivem num mundo físico e num mundo social que não pode ser comparado ao mundo dos povos civilizados. As leis da lógica formal são substituídas - nas sociedades primitivas - pela lei da participação mística. Ora, esta última baseia-se, como demonstrou Lévy-Bruhl em 1931, na categoria afectiva do sobrenatural. As representações colectivas dos primitivos não são puramente intelectuais; são, antes de tudo, «estados complexos em que os elementos emocionais e motores constituem partes integrantes das representações». Um xamã esquimó disse a Knut Rasmussen que o seu grupo não tinha crenças, mas medo do que via em seu redor e das coisas invisíveis que o cercava. Lévy-Bruhl utiliza o termo categoria não no sentido aristotélico ou kantiano, mas como princípio de unidade afectiva no espírito que explica desde logo a participação, em virtude da qual o simbolismo - por exemplo - não é simples semelhança, mas consubstancialidade com o ser ou o objecto simbolizado. Mas esta consubstancialidade é, para os primitivos, de ordem afectiva ou emotiva, como se evidencia nas suas cerimónias e danças que realizam, através de uma espécie de comunhão ou de fusão mística com o antepassado mítico ou totémico, uma participação, isto é, uma união afectiva total. Em 1935, Lévy-Bruhl explica a mentalidade pré-lógica dos primitivos - a sua indiferença em relação à contradição - pelo facto desta atitude estar ligada à orientação mística do seu espírito e às suas fracas tendências conceptuais: os primitivos formam conceitos, mas estes conceitos, aliás menos numerosos e ricos do que os nossos, não são sistematizados por eles. Em 1938, Lévy-Bruhl destaca a importância da participação: «A mentalidade primitiva, misticamente orientada, vê participações em todo o lado. Ignorando o mecanismo das leis da natureza, ainda que, na prática, saiba regular suficientemente bem a sua actividade por este mecanismo, ela concebe, ou sente a maior parte das vezes, as relações mútuas dos seres vivos como participações. Com mais forte razão, as relações entre os seres do mundo exterior e os do mundo invisível, a interacção constante da natureza e do sobrenatural, também são "sentidas" como participações, mais ou menos claramente representadas. É, pois, razoável dizer que estes espíritos, mais ainda do que os nossos, se movem "através de uma floresta de símbolos", segundo a célebre expressão de Baudelaire. Símbolos que lhes são próprios. Não obra do entendimento, como os nossos, mas já existindo, de certo modo, antes de serem apreendidos, nas participações que se objectivam através deles». Os símbolos não são expressões, mas principalmente veículos da participação, sendo esta entendida como uma forma de agir e ser agido. Suponho que Victor Turner (1967) encontrou aqui inspiração quando deu o título The Forest of Symbols ao seu estudo sobre o ritual ndembu, um povo africano do noroeste da Zâmbia, antiga Rodésia setentrional, ao sul da África central.


Em 1920, Lévy-Bruhl já tinha renegado expressamente a tese do pré-logismo: «Vi ser-me atribuída uma doutrina, chamada "pré-logismo", segundo a qual haveria duas espécies de espíritos humanos, uns lógicos, como os nossos, e outros, os dos primitivos, pré-lógicos, isto é, destituídos dos princípios directores do pensamento lógico e obedecendo a leis diferentes; e essas duas mentalidades seriam exclusivas uma da outra... Não julguei necessário defender-me contra uma refutação que afirmava um absurdo palpável e não dizia realmente respeito aos meus trabalhos». Mas é nos Carnets Posthumes (1949) que Lévy-Bruhl abandona de vez a tese do pré-logismo e a própria noção de pensamento pré-lógico: «O que há de mais positivo na minha ideia do carácter pré-lógico provém do carácter místico». Lévy-Bruhl é assim levado a dar especial destaque ao carácter místico do pensamento primitivo: «O essencial de qualquer experiência mística é o sentimento (acompanhado por uma emoção sui generis) da presença e, muitas vezes, da acção de um poder invisível, o sentimento de um contacto, em geral imprevisto, com uma realidade outra que a dada pelo meio ambiente». Ora, segundo Lévy-Bruhl, esta mentalidade mística é «mais acentuada e mais facilmente observável entre os primitivos do que nas nossas sociedades», embora esteja «presente em todo o espírito humano». O anti-evolucionismo de Lévy-Bruhl leva-o a afirmar sem rodeios e sem hesitações que «a estrutura lógica do espírito é a mesma em todas as sociedades humanas», o que implica a ideia da unidade do género humano. De certo modo, a oposição entre a experiência - construída ou imediata - dos primitivos e a dos civilizados é aqui substancialmente mitigada: Lévy-Bruhl mostra-se assim sensível à competição de várias formas de conhecimento no mesmo quadro social e à variação das acentuações das formas no seio da mesma estrutura de conhecimento. Os critérios da experiência imediata ou construída são diferentes nestes dois tipos gerais de sociedades, as primitivas e as civilizadas. A experiência dos primitivos admite diferentes graus de misticidade e de racionalidade, o que permite graduar o carácter da sua lógica, de modo a fazer frente à crítica que é dirigida à teoria de Lévy-Bruhl: a de não ter levado em conta as diferenças internas, tanto as nossas como as dos primitivos. Além disso, a sua experiência imediata é mais rica do que a nossa: a nossa experiência imediata está muito mais sujeita às coacções das conceptualizações racionais do que a dos primitivos. Até mesmo a personalidade - a individualidade - dos primitivos é, graças às dependências místicas, muito mais forte, mas muito menos diferenciada do que a nossa: o que significa que a pessoa humana não permanece idêntica nas diferentes estruturas sociais, como confirmaram mais tarde Ralph Linton e Abram Kardiner. Ao opor a mentalidade primitiva à mentalidade moderna, Lévy-Bruhl procurou mostrar que a primeira é explicada pelo estado de espírito místico: os homens primitivos forjam conceitos, tal como nós, mas - ao contrário de nós - não os usam como instrumentos de um pensamento discursivo: «A discussão de Lévy-Bruhl acerca da lei da participação mística é talvez a mais valiosa e original das partes da sua obra. Ele foi um dos primeiros, se não o primeiro, a salientar que as ideias primitivas, que nos parecem tão estranhas, às vezes chegando mesmo a parecer idiotas, quando consideradas como factos isolados, são plenas de significação, desde que vistas como segmentos de padrões de ideias e de comportamento, tendo cada parte uma relação coerente com as demais partes. Ele reconheceu que os valores formam sistemas tão coerentes como as construções lógicas do intelecto e que existe uma lógica de sentimentos assim como existe uma da razão, embora aquela esteja baseada num princípio diferente. A sua análise nada tem a ver com as historietas fantasiosas que comentamos anteriormente, porque ele não tenta explicar a magia e a religião primitivas por uma teoria que procura mostrar como teriam elas surgido, ou qual a sua causa e a sua origem. Ele aceita-as como consumadas, e procura apenas mostrar a sua estrutura e o modo pelo qual elas constituem uma prova da existência de uma mentalidade distinta, comum a todas as sociedades de um determinado tipo» (Evans-Pritchard). O que hoje podemos dizer é que existem diferentes lógicas correspondendo aos diferentes tipos de sociedades - ou mesmo coexistindo no seio de uma única sociedade.


Acho que as críticas feitas à teoria da mentalidade primitiva de Lévy-Bruhl - incluindo a de Marcel Mauss e a de Henri Bergson - foram extremamente injustas. Lévy-Bruhl recusou fazer parte da Escola Sociológica de Durkheim, apesar de partilhar com ela a ideia de que a mentalidade do indivíduo deriva das representações colectivas da sua sociedade: ele permaneceu um filósofo, puro e simples, mais interessado pelos sistemas primitivos de pensamento do que pelas instituições sociais primitivas. Para Lévy-Bruhl, podemos começar o estudo da vida social tanto pela análise das maneiras de pensar como pela análise das formas reais de comportamento: a questão da lógica - ou das duas lógicas, a do conceito e a do sentimento - atravessa todos os seus livros, o que despertou a animosidade dos antropólogos ingleses e americanos que, sob influência do fetiche positivista dos estudos empíricos, recusaram precipitadamente a sua teoria da mentalidade primitiva, pré-lógica e mística. (Robert H. Lowie ignora-o na sua opus magnum - Primitive Religion, 1952, destacando apenas a teoria do animismo de E. B. Tylor, a teoria da magia de J. G. Frazer e a teoria colectivista de E. Durkheim.) Mas, como vimos, Lévy-Bruhl nunca afirmou que os homens primitivos eram incapazes de pensar coerentemente: eles são inteligentes e pensam de maneira coerente e lógica, mas fazem-no usando categorias diferentes das nossas. O que está em questão na obra de Lévy-Bruhl não é a diferença biológica ou psicológica entre primitivos e civilizados, mas sim a diferença social. O único antropólogo que se atreveu a defender Lévy-Bruhl foi Evans-Pritchard, que, traduzindo-o numa linguagem acessível ao espírito pragmatista anglófono, o confrontou com a teoria dos resíduos e das derivações de Vilfredo Pareto. Com isto não pretendo poupar a teoria de Lévy-Bruhl a uma reformulação aprofundada, mas simplesmente reconhecer o seu mérito lá onde os seus críticos apontaram as armas: a definição da polaridade. Uma forma diplomática de dizer que a abolição por decreto da mentalidade primitiva resulta do seu regresso a todos os quadros sociais das sociedades modernas: recusa-se a mentalidade primitiva para ocultar o primitivismo do homem moderno, como se todos os homens fossem iguais nas suas capacidades intelectuais. Hoje quem queira estudar a mentalidade primitiva não precisa sair da sua própria sociedade e deslocar-se até aos trópicos, porque os primitivos habitam a sua própria sociedade. Uma das tarefas prioritárias da Filosofia Primitiva é precisamente pensar este regresso do primitivo que se verifica nas sociedades supostamente mais desenvolvidas do mundo. O regresso do primitivo tal como o concebo não se identifica com a redescoberta do sobrenatural exposta por Peter I. Berger: a redescoberta do sobrenatural constitui uma das peças do regresso do primitivo, cujo movimento global reintroduz nos espaços centrais da sociedade civilizada a figura do pensamento mágico. Contudo, esta reintrodução do pensamento mágico nos quadros sociais das sociedades modernas implica um fenómeno regressivo, a própria animalização do homem, o que não sucedia nas sociedades primitivas colonizadas pelos europeus - muito mais humanas do que as nossas sociedades. Quando isto acontece, a civilização e, sobretudo, a cultura superior, começam a entrar numa fase de colapso. Hoje, no Ocidente, a forma cultural dominante é a mentalidade primitiva que cresce e invade todos os seus tecidos, como se fosse um cancro. Uma sociedade metabolicamente reduzida é necessariamente uma sociedade cancerosa


Obras de Lucien Lévy-Bruhl, nenhuma das quais está traduzida em português, tanto quanto sei - as minhas edições são todas da PUF:


1910: As Funções Mentais das Sociedades Inferiores.
1922: A Mentalidade Primitiva.
1927: A Alma Primitiva.
1931: O Sobrenatural e a Natureza na Mentalidade Primitiva.
1935: A Mitologia Primitiva.
1938: A Experiência Mística e os Símbolos para os Primitivos.
1949: Os Cadernos de L. Lévy-Bruhl.  


J Francisco Saraiva de Sousa