domingo, 15 de abril de 2012

Ocaso da Literatura

Porto: Casa da Música
«Deste modo, o problema prático mais importante da nossa época é justamente o de saber em que direcção agir, que atitude tomar, de forma a contribuir para dar à evolução social uma orientação diferente da que ela parece estar a adquirir espontaneamente - uma orientação que permitisse modificar uma evolução que corre o risco de suprimir o elemento qualitativo e a personalidade humana, ao mesmo tempo que aumenta consideravelmente o nível de vida e as possibilidades de consumo dos indivíduos e cria assim uma situação de que já uma vez caracterizei o elemento paradoxal no plano da cultura, escrevendo que corremos o risco de acabar por ter uma produção considerável de diplomados da Universidade e de doutores analfabetos - para a substituir por uma orientação para uma estrutura social capaz de assegurar efectivamente um desenvolvimento harmonioso, tanto do sujeito libidinal, como da personalidade intrasubjectiva e socializada, um desenvolvimento harmonioso do indivíduo e da personalidade.» (Lucien Goldmann)

Ontem ofereceram-me uma enorme mala cheia de livros sobre teatro, peças e ensaios, entre os quais estava, talvez por engano, um romance de Paulo Coelho, um escritor que nunca quis ler. O romance de Paulo Coelho intitula-se Veronika Decide Morrer: folheei-o e li algumas partes, mas acabei por desistir da leitura integral, porque o achei "fora de prazo" e profundamente patético. Retomei depois a releitura das obras de Lucien Goldmann, cuja sociologia da criação cultural foi injustamente esquecida pela crítica académica. O seu conceito de estreitamento da esfera da consciência possível ajuda a compreender o ocaso da literatura - e da arte - no nosso tempo indigente. Convém retomar o elemento paradoxal introduzido pelo capitalismo tecnocrata no plano da cultura - a produção massificada de diplomados da Universidade e de doutores analfabetos, previsto por Goldmann, e associá-lo ao próprio declínio da cultura, através desse fenómeno terrível que é o estreitamento da personalidade. Deste modo simples, formulei uma hipótese que permite abrir um novo horizonte de pesquisa futura, onde se joga a renovação da teoria marxista e a formulação de uma nova praxis política. O desenvolvimento desta hipótese exige a análise detalhada das causas e das consequências da crise financeira de 2008, tarefa que não vou levar a cabo aqui. No entanto, devo dizer que aquilo que os marxistas ocidentais julgaram estar ultrapassado na teoria de Marx está - depois desta crise profunda do capitalismo - na ordem do dia: a teoria da pauperização que o actual governo português converteu em programa político. De certo modo, os marxistas ocidentais, colocados entre duas paredes, a dos adversários liberais do marxismo e a do próprio marxismo soviético, não conseguiram reescrever O Capital, de forma a formular uma teoria forte do desenvolvimento do capitalismo: cederam lá onde Marx é actual e profundo. Mas esta cedência precipitada e impensada que enfraqueceu o projecto político da Esquerda, fazendo-a seguir numa direcção errada e suicida, pode ser corrigida à luz dos ensinamentos da actual crise económica, como já tentei demonstrar noutros textos. Depois da morte de Marx e talvez durante os seus últimos doze anos de vida, o marxismo foi mal-pensado: a prioridade dada ao materialismo sobre a dialéctica foi fatal, tanto para o marxismo ocidental como para o marxismo soviético. E, quando hoje procuramos dar o lugar de destaque à dialéctica, somos obrigados a abandonar o materialismo, o maior erro de todos os tempos. Quando formulou o estruturalismo genético que suporta a sua "sociologia dialéctica", Goldmann estava consciente disso, mas não foi capaz de se livrar de vez da tentação positivista, presente no seu projecto de uma sociologia dialéctica elucidada por oposição à sociologia positivista. Combateu a tecnocracia sem ter suspeitado da sua presença nas próprias ciências sociais e humanas, cujo desenvolvimento contribuiu mais para a adaptação social do que para a mudança social qualitativa. A teoria do equilíbrio que retomou de Jean Piaget é absolutamente estranha à dialéctica, como o demonstra o facto de N. Bukharin a ter usado para apresentar o "materialismo histórico" como "sociologia geral": Goldmann comete o mesmo erro que critica no marxismo soviético, apesar de ter referido o nome de Dilthey que nos reconduz directamente ao idealismo transcendental de Schelling como fio condutor capaz de orientar a pesquisa filosófica sobre a tipologia das concepções do mundo. O materialismo bloqueou o desenvolvimento da teoria marxista e desviou-a da sua verdadeira praxis política: o aumento do nível de vida de um número considerável de pessoas no mundo ocidental, o impulso materialista realizado, não trouxe consigo qualidade de vida e muito menos aperfeiçoamento da humanidade. Opor a autogestão - a célebre experiência da Jugoslávia - à tecnocracia não constitui um programa político adequado para a Esquerda. A dialéctica implica uma nova ontologia fundamental que, uma vez elucidada, impõe limites à formulação de novas políticas. Como é evidente, não posso explicitar aqui todas estas ideias, nem sequer posso elucidar a relação entre sociedade e literatura preconizada por Goldmann. No entanto, para explicitar a minha hipótese do ocaso da literatura, vou socorrer-me dos ensaios de Goldmann, onde ele esboça uma crítica inteligente da psicanálise.

Goldmann esboçou uma periodização da história já demasiado longa do mundo capitalista ao nível da economia, distinguindo três períodos de desenvolvimento capitalista, a cada um dos quais correspondem determinadas formas de filosofia e de literatura. Quando elaborou esta periodização do capitalismo, Goldmann, discípulo de Lukács, encontrava-se em diálogo produtivo com Marcuse e com a Escola de Frankfurt. Ora, a influência de Marcuse, sobretudo da sua teoria do homem unidimensional, implicava um ajuste de contas filosófico com a sua obra anterior. A estética da Escola de Frankfurt fê-lo mudar de perspectiva em relação ao Nouveau Roman, levando-o a reconhecer mais tarde a pobreza e a secura dessa criação cultural: «Porque é certo que, se a unidade destas obras é rigorosa, o outro pólo, a integração nessa mesma unidade das possibilidades e das virtualidades das realidades humanas que ignora ou cujo sacrifício exige, ocupa nelas um lugar relativamente restrito», como o demonstra o primeiro romance de Robbe-Grillet, Les Gommes. Embora sejam obras autênticas e representativas, «elas exprimem um empobrecimento geral da criação literária e cultural, análogo e paralelo àquele que Herbert Marcuse assinalou como característico do mundo moderno ao constatar que, das duas dimensões da existência que caracterizam o homem, o real e o possível, a última, na qual se baseia o essencial da criação literária, tende a desaparecer progressivamente das consciências, conduzindo àquilo a que ele chamou o homem unidimensional». Na sua derradeira obra publicada em vida, A Dimensão Estética, Marcuse tenta elaborar uma estética marxista, mediante a impugnação da sua ortodoxia predominante que interpreta a «qualidade e verdade de uma obra de arte em termos da totalidade das relações de produção existentes», isto é, que considera a obra de arte como expressão dos interesses e da visão do mundo de determinadas classes sociais de um modo mais ou menos preciso. Não é preciso avançar muito mais na explicitação da crítica de Marcuse à ortodoxia estética do marxismo para compreender que um dos seus alvos é precisamente a estética esboçada por Goldmann em Le Dieu Caché. A concepção da obra de arte como expressão de uma visão do mundo coerente, isto é, do máximo de consciência possível de uma determinada classe social, é impugnada por Marcuse, em nome de dois princípios da teoria marxista: a análise da arte no contexto das relações sociais prevalecentes, de forma a podermos atribuir-lhe uma função política, e a defesa da autonomia da arte perante essas mesmas relações sociais. A estética de Marcuse visa salvaguardar a subjectividade da depreciação ou desvalorização a que foi sujeita pela ortodoxia marxista e da sua dissolução na consciência de classe: «as qualidades radicais da arte, ou seja, a sua acusação da realidade estabelecida e a sua invocação da bela imagem (schöner Schein) da libertação baseiam-se precisamente nas dimensões em que a arte transcende a sua determinação social e se emancipa a partir do universo real do discurso e do comportamento, preservando, no entanto, a sua presença esmagadora. Assim, a arte cria o mundo em que a subversão da experiência própria da arte se torna possível: o mundo formado pela arte é reconhecido como uma realidade suprimida e distorcida na realidade existente. Esta experiência culmina em situações extremas que explodem na realidade existente em nome de uma verdade normalmente negada ou mesmo ignorada. A lógica interna da obra de arte termina na emergência de outra razão, outra sensibilidade, que desafiam a racionalidade e a sensibilidade incorporadas nas instituições sociais dominantes». Daqui resulta que a universalidade da arte não radica na visão do mundo de uma determinada classe social, como pressupõe Goldmann, mas sim na humanidade concreta - universal - que, não podendo ser personificada por uma classe particular, luta pela libertação das potencialidades reprimidas do homem e da natureza, abrindo assim no seio da própria totalidade repressiva uma nova dimensão da experiência: o renascimento da subjectividade rebelde. Hans-Dietrich Sander analisou os contributos de Marx e de Engels para uma teoria da arte, chegando à conclusão de que a ortodoxia marxista é uma inversão total da perspectiva dos fundadores do marxismo. Que pena Marx não ter cumprido o seu projecto de escrever um livro sobre Balzac e o capitalismo, para o qual contribuiu mais tarde Lukács: o autor de O Capital lia atentamente A Comédia Humana de Balzac, descobrindo nela afinidades com o seu próprio pensamento. 

Capitalismo concorrencial e romance de personagem problemática. O primeiro período da história do capitalismo estende-se até ao ano de 1910 e, no plano económico, corresponde ao capitalismo liberal. Goldmann caracteriza-o como «período individualista, no qual a ideia de conjunto, de totalidade, tende a desaparecer da consciência». No plano do pensamento filosófico, o período liberal do capitalismo exprime-se pelas «duas formas de filosofia individualista radical que são o racionalismo e o empirismo, as duas grandes correntes da chamada filosofia clássica, e, no plano da literatura, entre outros, pelo romance clássico, o romance de personagem problemática». Goldmann considera que, na história da cultura ocidental, existe quase sempre uma relação de homologia rigorosa entre as grandes tendências e correntes filosóficas e as grandes criações literárias. Assim, por exemplo, pares homólogos de universos imaginários criados por escritores e de sistemas conceptuais elaborados por filósofos são as obras de Pascal e de Racine, de Descartes e de Corneille, de Gassendi e de Molière, de Kant e de Schiller e de Schelling e dos Românticos. A título de exemplo, destaca-se particularmente a colaboração entre escritores e filósofos nos círculos literários e de amizade de Jena, da qual resultou a elaboração do romantismo de Jena, cuja concepção romântica era determinada pela filosofia idealista de Schelling, em especial pela sua filosofia da natureza. O órgão de difusão da concepção romântica foi o periódico Athenaeum (1798-1800): o romantismo de Jena resultou da colaboração próxima entre Novalis, os irmãos Schlegel, Goethe, Schleiermacher e Schelling. Goldmann detestava de tal modo o estruturalismo não-genético de Althusser que se descartou da sua teoria do todo complexo a-dominante, sem ter visto que ela podia ajudá-lo a estabelecer as homologias entre sistemas filosóficos e criações literárias, levando em conta os desfasamentos das temporalidades de cada uma das estruturas da totalidade social em relação às outras. O período liberal é de tal modo longo que Goldmann teve dificuldade em descobrir um escritor cuja obra correspondesse rigorosamente ao racionalismo: o par formado por Descartes e Corneille é diferente dos restantes pares referidos, porque só um certo número das peças de Corneille parece ser a expressão literária da posição racionalista de Descartes que marcou toda a cultura ocidental. O romance de personagem problemática é o género literário que corresponde ao período do capitalismo liberal. Goldmann confronta-se aqui com o problema do romance de personagem problemática não ser homólogo nem ao empirismo nem ao racionalismo, nem à Filosofia das Luzes, porque este romance é, ao mesmo tempo, uma forma literária crítica, que implica o elemento positivo da afirmação do indivíduo e do valor individual, e uma crítica social extremamente rigorosa: o romance da personagem problemática mostra que a sociedade em que vivem os seus heróis não permite ao indivíduo desenvolver-se e realizar-se. Ora, este problema liga-se à problemática da crítica e da revolta na literatura moderna, embora ele não exista à luz da estética da Escola de Frankfurt, para a qual toda a grande obra de arte é recusa da ordem estabelecida. Goldmann nunca conseguiu «reconciliar» a sua obra anterior sobre a sociologia do romance e sobre a visão trágica do mundo com a problemática da crítica, tendendo a ser mais afirmativo - a cultura afirmativa de Marcuse - do que crítico. Numa obra anterior, Pour une Sociologie du Roman, Goldmann tinha retomado a tipologia do romance de Lukács, distinguindo quatro tipos de romance: o romance do idealismo abstracto (D. Quixote de Cervantes e O Vermelho e o Negro de Stendhal, por exemplo), caracterizado pela actividade do herói e pelo seu conhecimento muito estreito em relação à complexidade do mundo; o romance psicológico ou do romantismo da desilusão (A Educação Sentimental de Flaubert, por exemplo), orientado para a análise da vida interior e caracterizado pela passividade do herói e pelo seu conhecimento muito amplo para o levar a encontrar satisfação no âmbito do mundo da convenção; o romance educativo (Os Anos de Aprendizagem de Wilhelm Meister de Goethe, por exemplo), consumado por uma auto-limitação - a maturidade viril de Lukács - que, sendo uma espécie de renúncia à pesquisa problemática, não é nem uma aceitação do mundo nem um abandono da escala implícita dos valores; e, por fim, uma quarta possibilidade que, surgindo em 1920, se exprime nos romances de Tolstoi, orientados para a epopeia. Como é que Goldmann articula esta tipologia do romance com a sua perspectiva posterior? Ele deixou de falar dela nas obras posteriores, integrando os três primeiros tipos de romance sob a designação geral de romance de personagem problemática. As peripécias da personagem ao longo da história da literatura moderna permitem-lhe acompanhar de perto o destino do indivíduo ao longo dos três períodos de evolução do capitalismo: o eclipse da personagem no romance corresponde ao eclipse do indivíduo na sociedade. Esta é uma ideia extremamente produtiva que merece ser desenvolvida, até porque vai ao encontro de uma das preocupações fundamentais da teoria crítica da Escola de Frankfurt. E é esta ideia brilhante que estou a utilizar para elucidar o eclipse da literatura no nosso tempo indigente.

Capitalismo em crise, imperialismo e romance da comunidade. O segundo período da história do capitalismo é o período imperialista, cuja origem se situa por volta de 1910-1911. Goldmann destaca outras datas significativas para mostrar a dificuldade de estabelecer o equilíbrio económico e social durante este período imperialista: em 1914, a Primeira Guerra Mundial, a partir de 1917-1918, uma profunda crise social e política, entre 1929 e 1933 a grande crise económica, em 1933 a tomada do poder por Hitler, e, entre 1939 e 1945, a Segunda Guerra Mundial. O carácter provisório e instável dos equilíbrios económicos e sociais alcançados durante este período explica-se, em parte, pelo facto do mecanismo de regulação através do mercado, essencial para a economia do período liberal, ter sido perturbado pelo desenvolvimento dos monopólios e dos trustes. Goldmann é muito esquemático na caracterização económica dos períodos, negligenciando neste caso os contributos económicos fundamentais de Lenine, de Rosa Luxemburgo, de Sweezy e de Baran. Além disso, como veremos já a seguir, ao omitir a Revolução de Outubro de 1917, talvez para se distanciar do marxismo soviético, tende a esquecer a literatura que surgiu dessa revolução e do movimento operário: o realismo socialista também é a expressão de uma determinada visão do mundo, de resto bem explicitada pela obra de Maximo Gorki. Os pensadores marxistas que viveram nesta época estavam convencidos de que ela representava a crise final do capitalismo: a perspectiva de queda do capitalismo e de passagem ao socialismo - alimentada pela frequência das crises sociais e económicas que culminam com a crise de 1929 - justifica a designação de capitalismo em crise dada pelos marxistas a este período. No plano filosófico, ao período imperialista - infelizmente um período de transição - corresponde a filosofia existencialista (Heidegger, Sartre, Jaspers, por exemplo) que, apesar de reter elementos individualistas do período liberal, já não tem por centro nem a razão (racionalismo) nem a percepção (empirismo), mas sim os limites do indivíduo, em especial o limite por excelência que é a morte. O existencialismo tomou por centro, no plano psíquico, o sentimento que se desenvolve a partir da consciência dos limites e da morte: a angústia. O facto de Sartre ter sido filósofo e escritor mostra que, no período imperialista, a literatura estava muito próxima da filosofia: as obras de Kafka (A Metamorfose, América), Musil (O Homem Sem Qualidades), Sartre (A Náusea) e Camus (O Estrangeiro) mostram a dificuldade do indivíduo em se adaptar ao mundo social que o rodeava. O tema da dificuldade do indivíduo em se adaptar à sociedade já estava presente no romance de personagem problemática: ele foi retomado para elucidar o choque do romance com o problema da personagem que determinará a sua evolução futura. No plano económico, a passagem do capitalismo liberal ao capitalismo monopolista foi marcada pela perda de importância económica e social do indivíduo, a qual explica o enorme sucesso da psicanálise nos Estados Unidos: «Ora o escritor não pode dar forma senão ao que é essencial na realidade a partir da qual elabora a sua obra e, tendo o desenvolvimento económico diminuído a importância do indivíduo, teria sido difícil criar uma grande obra literária contando a história de uma personagem, uma biografia que, no plano da realidade, mais não apresentava que um carácter anedótico». No campo do pensamento socialista e na sua proximidade, houve tentativas de substituir a personagem pela colectividade e escrever romances de personagem colectiva, como testemunham Les Thibault de Roger Martin du Gard, os romances da família de Thomas Mann (Budenbrooks) e de John Galsworthy (The Forsyte Saga) e o romance da comunidade revolucionária de Malraux (La Condition Humaine). Porém, como a revolução socialista não conseguiu transformar substancialmente a sociedade ocidental, o romance da comunidade não se tornou uma forma literária predominante. É fácil captar as semelhanças e as diferenças entre as perspectivas de Lukács e de Goldmann: toda a obra sociológica e filosófica de Goldmann é tributária da estética de Lukács, embora tenha tentado analisar aquilo que Lukács condenou, a literatura de vanguarda.

Capitalismo de organização, revolta das letras e Nouveau Roman. O terceiro período do desenvolvimento do capitalismo iniciou-se depois do fim da Segunda Guerra Mundial, sendo marcado pela concentração considerável do poder de decisão nas mãos de um grupo relativamente pouco denso de tecnocratas e pelo aparecimento de técnicos com um nível de conhecimentos muito elevado na sua especialidade profissional para poderem executar as decisões tomadas pelo grupo restrito dos tecnocratas. Esta caracterização genérica do terceiro período capitalista justifica a designação de sociedade tecnocrática que lhe foi atribuída. Goldmann retoma outras designações, tais como sociedade de consumo, capitalismo de organização e sociedade de massas, sublinhando que cada uma delas destaca um dos aspectos principais da sociedade que se estruturou depois do fim da Segunda Guerra Mundial. A articulação de todos esses aspectos numa totalidade não é suficiente para elaborar uma teoria marxista do capitalismo de organização, cuja ausência explica a trajectória suicida seguida pela Esquerda europeia. O chamado capitalismo de organização caracteriza-se pelo aparecimento de mecanismos conscientes de auto-regulação: a classe dirigente tomou consciência da totalidade e dos problemas de organização global da economia e da sociedade, pelo menos ao nível da vontade e do comportamento dos seus membros, de modo a evitar a sucessão de crises verificada no período imperialista. A introdução dos mecanismos de regulação reforçaram a integração social e cultural do conjunto da sociedade, através do aumento do nível de vida que, de certo modo, neutralizou os efeitos do esquema da pauperização das classes médias proposto por Marx. Ora, uma das consequências psicológicas do aumento do nível de vida da maioria da população, incluindo a classe trabalhadora, foi o enfraquecimento significativo das forças de oposição tradicionais. A sociedade de consumo foi até agora uma sociedade altamente integrada que, além de enfraquecer a oposição tradicional, preparou o terreno para a hegemonia ideológica do neoliberalismo, que se consuma plenamente após a Queda do Muro de Berlim. A crítica aristocrática da cultura de massas (Ortega y Gasset) e a crítica do sistema de indústria cultural (Adorno, Horkheimer, Marcuse) alertaram para os efeitos nefastos do processo de integração social e cultural, mas o mocinho satisfeito - a consciência feliz de Marcuse - preferiu continuar a pensar mais com a marmita estomacal do que com a cabeça. Porém, com o triunfo do neoliberalismo à escala global a crise voltou a ocupar o lugar central da agenda: a crise financeira e económica de 2008 acordou brutalmente o mocinho satisfeito, o Zé-Ninguém da marmita, do seu sono metabolicamente reduzido, o sono sem sonhos de um mundo melhor (Bloch). A miséria regressa assim à ordem do dia e, acossado pela mera sobrevivência, o mocinho satisfeito não sabe o que fazer, até porque ele já não sabe pensar de modo autónomo. Mas antes de retomar este tema, convém analisar uma contradição da sociedade tecnocrática: o aumento da competência não conduz a grande maioria dos indivíduos a participar nas decisões essenciais e, o que é mais preocupante, reduz consideravelmente a sua vida psíquica e atrofia os seus órgãos cognitivos. Ora, como demonstrou Goldmann, aliás na peugada de Marcuse, a sociedade de organização é a sociedade dos especialistas analfabetos ou, de modo mais provocante, dos doutores analfabetos: o seu elevado nível de qualificação profissional e de competência técnica choca frontalmente com a sua atrofia mental e cognitiva. À era tecnocrática dos gestores e dos economistas corresponde a miséria da "ciência económica", uma mera técnica ideológica de adaptação social incapaz de integrar uma visão de conjunto da sociedade, da cultura e da economia, bastando folhear os manuais de economia para confirmar essa fragmentação: a instrumentalização da razão, a perda de visão da totalidade e a liquidação do indivíduo constituem aspectos de um mesmo processo de liquidação da realidade e de regressão civilizacional do Ocidente. Marcuse demonstrou que, antes do advento da sociedade de consumo, o homem se definia por duas dimensões fundamentais nas quais se desenvolviam a sua vida psíquica e o seu comportamento: a dimensão da adaptação ao real e a dimensão da transposição do real em direcção ao possível, a um outro princípio de realidade que os homens deverão criar pelo seu próprio comportamento. Goldmann articula estas duas dimensões do homem através da teoria do equilíbrio que, de certo modo, eclipsa a teoria da revolução. Apesar do seu mérito, Sciences Humaines et Philosophie é uma obra falhada, no sentido de não ter resistido dialecticamente às seduções da sociedade de consumo: a Filosofia não precisa das ciências humanas para pensar o possível - contra a fragmentação da totalidade social operada pelas ciências sociais. Goldmann lembra a definição do homem de Pascal - o homem como ser infinitamente maior do que aquilo que é, para lhe dar uma perspectiva dialéctica: o homem é maior do que aquilo que é por ser puro devir e estar continuamente a construir um mundo novo. O seu optimismo não lhe permitiu ver que a perda da dimensão do possível implica uma regressão antropológica fatal: o homem reconduzido à sua animalidade, isto é, o homem como animal metabolicamente reduzido.

A análise da sociedade contemporânea de Marcuse é infinitamente superior à de Goldmann. Quando escreveu os ensaios que estou a comentar, Goldmann estava convencido de que a problemática fundamental das sociedades capitalistas modernas não se situa ao nível da miséria nem ao nível de uma liberdade directamente limitada pela lei ou pela coacção exterior, mas sim ao nível do estreitamento da consciência: «O estreitamento da personalidade e da individualidade, o qual constitui um fenómeno inquietante, já mesmo no período de transição que vivemos (sic), corre assim o risco de se tornar cada vez mais grave se a evolução social se orientar efectivamente para uma adaptação perfeita dos homens a uma sociedade em que, na maior parte, eles se tornarão simples executantes bem pagos, tendo um nível de vida elevado e férias mais ou menos longas, e vivendo cada vez melhor enquanto técnicos especializados, mas com a consciência restringida». Como já vimos, a crise financeira de 2008 alterou completamente este quadro, pondo na ordem do dia os três níveis referidos por Goldmann. No entanto, como o nível do estreitamento da consciência se agravou cada vez mais com a produção em massa de diplomas atribuídos a indivíduos que nada fizeram para os merecer, excepto apropriar-se ilicitamente do pensamento dos outros, como se fossem "comunas-replicadores", continuarei a acompanhar a análise de Goldmann no que se refere às suas implicações na criação cultural. A elaboração hegeliana do fim da arte consumou-se literalmente no nosso tempo indigente: o aumento do número de diplomados não trouxe consigo a intensificação da criatividade cultural; pelo contrário, degradou-a de forma brutal. Qual é a filosofia que corresponde melhor ao terceiro período do desenvolvimento capitalista? Goldmann não respondeu a esta questão, embora tenha retomado a crítica do positivismo elaborada pela Escola de Frankfurt para demarcar a sua sociologia dialéctica da sociologia positivista: «a grande diferença (entre ambas) consiste precisamente no facto de a primeira (a sociologia positivista) se contentar em desenvolver uma fotografia tão exacta, tão minuciosa quanto possível da sociedade existente (ou uma modelação da sociedade em função de modelos prévios?), enquanto que a segunda (a sociologia dialéctica) tenta desenredar, na sociedade que estuda, a consciência, as tendências virtuais que estão prestes a desenvolver-se e que estão orientadas para a sua superação. Em resumo, a primeira tenta dar conta do funcionamento da estruturação existente, a segunda tem por centro as possibilidades de variação e de transformação da consciência e da realidade sociais». Ao analisar o pensamento unidimensional, isto é, a filosofia positiva, Marcuse esboçou uma primeira resposta a esta questão. Henri Lefebvre e Alfred Schmidt levaram essa análise mais longe quando associam o estruturalismo à tecnocracia. E, pouco mais tarde, Alex Callinicos acusa justamente o pós-estruturalismo (Derrida, Deleuze, Foucault) e os discursos da pós-modernidade (Lyotard, Jameson) de fazerem o jogo do neoliberalismo. É certo que Goldmann criticou severamente os estruturalismos não genéticos de Lévi-Strauss e de Althusser, mas, em vez de estabelecer uma homologia entre o estruturalismo e o Nouveau Roman, deslocou o problema, dizendo que, contrariamente a Marcuse, «creio que existem tendências para a superação desta situação e que o homem de uma única dimensão representa apenas um único termo da alternativa diante da qual se encontram as sociedades industriais contemporâneas». Goldmann descobre essa alternativa na revolta no interior da criação cultural, o que não constitui uma novidade para quem conheça bem a obra filosófica de Marcuse: o que é novidade é a distinção de dois aspectos diferentes e complementares dessa revolta das letras, a saber o aspecto da revolta formal de uma arte que, não aceitando uma sociedade, encontra formas de expressão para a recusar, e o aspecto do próprio tema da revolta no interior da obra de certos escritores e artistas. O primeiro aspecto manifesta-se no Nouveau Roman, e o segundo, nas peças de teatro de Sartre e, sobretudo, de Jean Genet. Esta distinção não faz muito sentido à luz da estética da Escola de Frankfurt e não se compreende bem a razão que levou Goldmann a introduzi-la na criação cultural do terceiro período da história do capitalismo, quando na verdade ela já podia ter sido introduzida nos períodos anteriores. Jean-Pierre Sarrazac lembra que o teatro tem sido acusado de não ter acompanhado as grandes tendências da literatura moderna, como se tivesse ficado parado no tempo, mas, quando abordaram os temas da luta de classes, da revolta e da revolução, Genet e Sartre passaram ambos do romance ao teatro. O teatro de Sartre que tem por tema a revolução - Les Mouches e Les Séquestrés d'Altona, por exemplo - aborda-o ainda na perspectiva da filosofia clássica, em termos de relação antagónica entre o indivíduo e a realidade social exterior, isto é, de conflito entre a ética e a história. Genet aborda o mesmo tema - nas suas quatro grandes peças de teatro que são Les Bonnes, Le Balcon, Les Nègres e Les Paravents - em termos de conflito entre dominados e dominadores: as personagens são colectivas, o real é sempre mentiroso, inautêntico e odioso, e os valores autênticos são os do ritual realizado pelos dominados. Pelo facto de abordar os temas da luta de classes, da revolta e da revolução numa sociedade tecnocrática na qual as forças de contestação foram enfraquecidas, Jean Genet é visto por Goldmann como o maior escritor da revolta na literatura francesa: o seu teatro reage a esse enfraquecimento da oposição tratando nas próprias obras a revolta dos dominados dentro da e contra a sociedade que recusam e contando a história das forças de contestação quando estas ainda não existem ou estão prestes a desaparecer. Ora, de acordo com as categorias da estética de Marcuse, para romper o nexo social da destruição e da submissão, de modo a tornar possível a libertação dos homens e da natureza, não é preciso tematizar a própria revolução, como sucede nas obras esteticamente mais perfeitas, onde a necessidade da revolução constitui o a priori da arte. Ao contrário do que pensa Goldmann, a tematização da revolução pela obra não faz dela necessariamente uma verdadeira obra de arte: «A literatura pode ser revolucionária num determinado sentido, só em referência a si própria, como conteúdo tornado forma. O potencial político da arte baseia-se apenas na sua própria dimensão estética. A sua relação com a praxis é inexoravelmente indirecta, mediatizada e frustrante. Quanto mais imediatamente política for a obra de arte, mais ela reduz o poder de afastamento e os objectivos radicais e transcendentes de mudança. Neste sentido, pode haver mais potencial subversivo na poesia de Baudelaire e de Rimbaud que nas peças didácticas de Brecht». Estas palavras de Marcuse não são dirigidas contra o teatro de Genet que admirava, mas sim contra a preferência de Lukács pelo realismo como modelo da arte progressista, preferência essa que levou os marxistas ortodoxos a difamar o romantismo, a denunciar a arte decadente e a condenar todas as manifestações literárias e artísticas que não expressassem os interesses e a visão do mundo de uma classe ascendente. (Marcuse acusa a estética soviética de ter imobilizado a dialéctica da libertação.) Mas esta diferença entre Marcuse e Goldmann que deriva, em última análise, de concepções diferentes da relação entre sociedade e literatura, entre teoria social e teoria estética, e do problema das mediações, abordado por Sartre em Questions de Méthode, não deve levar-nos a descartar o contributo fundamental de Goldmann à teoria marxista da arte e da literatura, até porque a sua análise nos ajuda a compreender o ocaso da criação cultural e artística na sociedade contemporânea, retomando o conceito de homem unidimensional de Marcuse. Na sociedade contemporânea na qual o indivíduo perdeu importância e as forças de oposição foram enfraquecidas, o grande escritor que queira dizer o essencial sobre a situação do homem na sociedade estabelecida, esbarra com um duplo obstáculo. Por um lado, o escritor não pode já colocar os grandes problemas da situação do homem numa sociedade que afunila a sua consciência e o priva da sua relevância social e psicológica, ao nível de uma história imediatamente perceptível, isto é, ao nível da biografia de uma personagem central, porque, se o fizer, se arrisca a permanecer prisioneiro de factos casuais sem significação essencial. Mas, por outro lado, se tentar pôr os problemas de conjunto, é forçado a situar-se num nível que, sem ser conceptual, se torna de tal modo totalizante que perde cada vez mais a relação com aquilo que é imediatamente perceptível e vivido. Ao situar-se a este nível mais abstracto, o escritor arrisca-se a não ser compreendido pelos leitores das suas obras, os quais, devido ao estreitamento psíquico e intelectual, são cada vez menos aptos a discernir os fenómenos a este nível de abstracção e de generalização. Goldmann dá-nos o exemplo de uma passagem do romance La Jalousie de Alain Robbe-Grillet: «O calçado ligeiro, de sola de borracha, não faz o mínimo ruído nos ladrilhos do corredor». Os leitores, incluindo um professor americano, não compreendem o sentido essencial desta passagem, interpretando-a em termos de experiência vivida, como se Robbe-Grillet tivesse escrito "um homem caminha em pés-de-lã", em vez de "o calçado ligeiro (...) não faz o mínimo ruído". O que o leitor não compreende é que Robbe-Grillet foi obrigado a contar as coisas de uma maneira diferente, não por ser ridículo, mas porque as próprias coisas se tornaram de tal modo diferentes que não podem ser ditas da maneira consagrada. Para dizer o essencial da sociedade tecnocrática, Robbe-Grillet é obrigado a substituir a forma consagrada - "o homem avança" - por uma nova forma - "o calçado avança": «A história de um homem ciumento é apenas um facto casual, enquanto que as solas que arrastam o homem se tornaram o fenómeno central da vida quotidiana de todos nós, quer disso estejamos conscientes ou não». Deste modo, ao procurar exprimir a ausência de deuses (valores) no mundo moderno, Robbe-Grillet denuncia a reificação vigente, responsável pelo facto de serem realmente as solas quem avança e arrasta o homem, um fenómeno que Goldmann analisou em Recherches Dialectiques. A arte da recusa fala, pois, uma nova linguagem, operando aquilo a que Goldmann chama revolta formal na arte, que, sem a ajuda da crítica, corre o risco de não ser compreendida pelo público: «Quase toda a arte contemporânea é uma arte da recusa que se interroga sobre a existência do homem no mundo moderno e que é obrigada, por isso, a situar-se a um nível abstracto, isto é, a deixar de falar baseada na história de um indivíduo ou até num acontecimento vivido, porque o próprio indivíduo não é já um elemento essencial na sociedade contemporânea, como o era na época de Stendhal, de Balzac ou de Flaubert». Porém, quando reconhece que o Nouveau Roman exprime um empobrecimento geral da criação cultural e literária, Goldmann caminha na direcção do pessimismo que impregna a arte autêntica, advertindo contra a consciência feliz da praxis radical. O caminho que vai do estreitamento da consciência até ao ocaso da literatura, passando pela liquidação do indivíduo, curvou-se sobre si mesmo e fechou-se. A mudança social exigida pela arte não está garantida. E os homens com acesso facilitado às praças da alimentação dos Shoppings deixaram de ser criadores e receptores inteligentes de obras de arte: a afluência - acompanhada pela intolerância ao sofrimento e pela incapacidade de sentir alegria - significa regressão mental e cognitiva, a grande doença do nosso tempo. 

J Francisco Saraiva de Sousa

9 comentários:

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Columbia University deseja um contacto próximo comigo. Não sei como alargar o diálogo com todas as instituições que desejam "linkar-me". Vou pensar melhor antes de me ligar de vez.

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Eu sei que consigo renovar todo o pensamento, mas ainda não me decidi completamente, porque para o fazer não poderia fazer nada mais do que isso: pensar e escrever. Portugal é o meu inimigo interno e, apesar disso, não quero deixar de pensar em português. Pk se o fizer quebro a minha ligação a Portugal de vez... Estou a pensar.

Ah, adoro a Universidade de Columbia! Vou dar em breve resposta! :)))

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Em Portugal copia-se e apropria-se do pensamento dos outros, mas nos USA os meus posts foram recolhidos, traduzidos e estão a ser debatidos. A propriedade está garantida! Adoro os amigos/as americanos!

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Em suma: deixem de me enviar emails a agradecer a partilha de conhecimentos. Eu não sou a comuna de Paris: sou territorial e estou em diálogo com outros mundos. Não faço favores a ninguém!

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Até porque, se me enervar, começo a minar os textos e a ser cada vez mais abstracto para não ser copiado por "comunas-replicadoras". Que horror!

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Alienei-me no Laboratório de Pesquisa Avançada. Bah, tenho de ir jantar. :(

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Decidi e já sou membro! :)

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

David, amigo "chatinho" (espero que não traduzas este comentário), com tempo escrevo o que me pediste. Tempo não é o que me falta... :)

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Bah, David, o meu protocolo sobre o tal gene regulador não está muito perfeito: vou dormir sobre o assunto. Depois digo alguma coisa...