«O processo do mundo ainda não está decidido em nenhum lugar, nem tão-pouco está frustrado; e os homens podem ser na terra os guardiões do seu rumo ainda não decidido, quer para a salvação, quer para a perdição. O mundo permanece, na sua totalidade, como um fabril laboratorium possibilis salutis». (Ernst Bloch) O esclarecimento entendido como desencantamento do mundo (Weber) procurou explicar racionalmente a relação entre o homem e a fantasia e a relação fantástica do homem com o mundo, recorrendo ao caminho que parte dos mitos e das utopias e termina na ciência ou, mais precisamente, na glorificação ideológica do que é: a realidade estabelecida. A fantasia foi considerada como um processo anímico primitivo, que prescinde do princípio de realidade. O resultado desta desvalorização e concomitante abandono da fantasia e do seu poder para formular desejos sensatos foi a hipertrofia do entendimento técnico. Hoje vivemos na situação de realizar muitas coisas que não queremos, sem saber o que realmente queremos. Ernst Bloch recuperou o poder da fantasia utópica, com o objectivo de mostrar que aquilo que é não pode ser verdadeiro. Se "a necessidade (privação) ensina a pensar", como diz Bloch, então a abundância metabolicamente reduzida produz regressão cognitiva e atrofia dos órgãos mentais, portanto, o homem metabolicamente reduzido de hoje que conserva a sua vida sem procurar a auto-expansão. A concepção blochiana do homem começa no limiar do fundo vital, onde entre o ser e o ter se abre o mundo: "a necessidade ensina a pensar". Na escala composta pelo impulso, ainda obscuro e amorfo, o afã, o impulso já sentido, a ânsia, o impulso ainda sem meta, o instinto, o impulso que busca já o específico, o desejo, o impulso passivo mas com uma prefiguração, e o querer, que inclui uma actividade diferenciada, é o instinto o primeiro nível da dinâmica teleológica. A esperança é o ponto onde a consciência e o ser se encaixam, isto é, onde o elemento subjectivo e o elemento objectivo do processo do mundo convergem. No homem, os impulsos atravessam a temporalidade da vida anímica e mostram quase sempre um pré-conhecimento do fim. Por isso, em vez de instintos, Bloch prefere falar de tendências, cujos elementos são: um défice, uma meta e uma antecipação ou ainda-não, formando um arco que se estende do presente para o futuro. A tendência básica e primária não é o instinto sexual, como em Freud, mas a fome, a tendência a suum esse conservare, isto é, a tendência que impulsiona simplesmente a conservar-se vivo, da qual procedem os instintos imediatos e os movimentos do sentimento ou emoções. A esperança é algo biologicamente constitutivo da existência: a privação converte a fome em docta fames, em fome informada e instruída, inclusive esclarecida. O si mesmo é levado para além da conservação da sua vida: explode e a autoconservação transforma-se em auto-expansão. Da fome economicamente esclarecida nasce a decisão alimentada pelos sonhos diurnos de suprimir todas as circunstâncias em que o homem é um ser oprimido, ofendido e humilhado. Ao analisar o mundo onírico de certos pacientes, Freud estudou aquilo a que Bloch chamou o já-não-consciente: a fantasia produtiva do homem ocupa-se das vivências que não pôde dominar e que, por isso, reprimiu. Nos sonhos nocturnos, aflora à consciência o passado reprimido e os impulsos reprimidos buscam a sua libertação nos sonhos. Esta fantasia produtiva que actua sobre o passado insuperado manifesta-se primordialmente nos sonhos nocturnos dos homens. Porém, como mostrou Bloch, não são só os pacientes que sonham: as pessoas saudáveis e felizes também sonham e estes sonhos não são desencadeados somente por vivências desagradáveis mas também por vivências felizes. No sonhar acordado, desperto, revela-se um ainda-não-consciente, isto é, uma antecipação do futuro que ainda-não-existe. Esta fantasia que se manifesta no limiar do presente que se conhece é uma fantasia fascinada pela novidade possível. É uma imaginação poética que não pretende modificar o passado insuportável, mas que penetra no futuro ainda-não-realizado, para o antecipar mediante formas simbólicas e ideais. Os sonhos diurnos têm a sua origem num défice e tendem a superá-lo. São sonhos de uma vida melhor que resultam do jogo da fantasia criadora: o sonhador encontra-se quase sempre no centro dos acontecimentos. Bloch analisa a sua estrutura sub specie utopica, isto é, a partir da fantasia criadora voltada para o futuro: os sonhos diurnos são voluntários (1), o eu do sonhador é conservado, embora não tenha nada a ver com os paraísos artificiais de Baudelaire (2), visam uma vida melhor e, devido à sua amplitude, podem abarcar outros eus com os quais procura melhorar a vida da comunidade (3), e tendem a ir até ao fim, sem satisfação fictícia, abstinência ou resignação (4). O sonho nocturno nutre-se da regressão, enquanto o sonho diurno prefigura e antecipa um outro princípio de realidade e, por isso, projecta-se no futuro. Os sonhos acordados têm um carácter intencional e projectam-se, quando visam um futuro autêntico, para o não-cumprido, o ainda-não-consciente, de modo a descrever um arco utópico que vai da fantasia antecipativa até ao futuro entrevisto. Como determinação fundamental do sonho diurno, o ainda-não-consciente constitui a única pré-consciência do futuro. O sonho diurno encerra na sua latência uma tendência para a claridade e, quando o presságio quer ser razoável, começa a florescer a esperança esclarecida, a docta spes. A partir do momento em que entra em jogo a razão, a esperança como afecto expectativo do sonhar para a frente deixa de ser mero estado de ânimo e converte-se em actuação consciente-sapiente: a função utópica como forma interna do acto da esperança abandona o passado e os seus conteúdos apoiam-se nas futuras possibilidades do ser de outro modo, ou seja, do ser melhor. A forma interna histórica da esperança é a cultura humana considerada no seu horizonte utópico-concreto. A simbiose de ambas constitui a docta spes, a atitude adoptada pela filosofia num mundo ainda-não-concluído. A antropologia da esperança exige necessariamente uma ontologia do mundo aberto ao futuro e à história: a esperança humana encontra-se fundada nas infinitas possibilidades abertas do processo cósmico. Sem estas possibilidades reais, a esperança seria um absurdo, porque, segundo Kierkegaard, a esperança é precisamente a "paixão pelo possível". Bloch valoriza muito mais o conceito de possibilidade do que o conceito de realidade: a realidade mais não é do que a realização da possibilidade. Por isso, Bloch elaborou uma ontologia do que ainda-não-é mas que é possível ou susceptível de vir a ser. Ao sentido de realidade do homem corresponde logicamente o sentido de possibilidade. O mundo em que vivemos e esperamos não é um edifício acabado e concluído, mas uma combinação de realidades e de possibilidades, isto é, um processo aberto. Não é um sistema de estruturas eternamente repetíveis e reproduzíveis, mas uma história aberta, onde acontecem e podem ser realizadas coisas novas. O mundo é, segundo a expressão feliz de Bloch, um laboratorium possibilis salutis: não é um céu da perfeição nem um inferno do aniquilamento, mas simplesmente uma terra imperfeita, cujas possibilidades estão abertas ao bem e ao mal. Isto significa que o futuro do mundo pode ser ou a morte do universo e o nada ou a pátria da identidade. Com exclusão das possibilidades irreais, existem diversos tipos de possibilidades: a possibilidade formal, na qual se baseia o optimismo ingénuo das utopias abstractas; a possibilidade epistemológica, que, apesar de constituir o fundamento da liberdade da razão humana, é demasiado subjectiva; a possibilidade objectiva que reside na raiz das próprias coisas; e a possibilidade dialéctica, que permite captar a relação entre utopia e «matéria», porque, "sem matéria não existe um suporte para a antecipação" e sem antecipação "não há horizonte para a matéria". Esta última categoria de possibilidade permite superar a oposição entre uma utopia que reflecte o movimento da realidade (o possível objecto) e uma utopia que é fonte da liberdade humana. A categoria de possibilidade dialéctica rompe com uma ontologia acabada do ser já existente e avança com uma ontologia do ser ainda-não-existente: a utopia exige a insatisfação permanente com o que existe, a exploração do homem pelo homem, ao mesmo tempo que procura explicitar as possibilidades concretas das quais a realidade está grávida. Constitui o eixo da perfectibilidade da mais absoluta de todas as utopias sociais: a naturalização do homem e a humanização da natureza (Marx). Para Bloch, a finalidade da filosofia é a transformação do mundo. Graças à possibilidade real e dialéctica, os sonhos utópicos, que são diurnos, acordados e contagiosos, não degeneram em ilusões ocas, mas ajudam a conservar o optimismo militante. Este optimismo está fundado sobre a utopia concreta, que o liberta do quietismo e lhe atribui o seu próprio lugar à frente do processo do mundo, onde se produz o novum. A produção da frente e do novum ao longo da história humana desemboca numa nova realidade que capta uma terceira categoria: ultimum. O ultimum deverá ser a pátria da identidade. Assim, a utopia concreta constitui "o ponto de intersecção entre o sonho e a vida, sem o qual o sonho seria mera utopia abstracta e a vida pura trivialidade". A utopia concreta faz da esperança subjectiva uma esperança comunitária, uma docta spes, uma esperança esclarecida, que critica o mundo existente, com a sua capacidade de se erguer por cima do imediato e do fáctico e inventar novos possíveis a partir da "obscuridade do momento vivido". A utopia concreta visa eliminar a miséria humana e o direito natural visa suprimir a humilhação do homem. Segundo Marx, o imperativo categórico é "subverter todas as condições em que o homem é um ser humilhado, escravizado, abandonado e desvalorizado». J Francisco Saraiva de Sousa
26 comentários:
Amigos
O texto ainda está sujeito a alterações e pretendo explicitar um pouco melhor a fenomenologia da consciência antecipativa ou antecipante. :)
Ando muito stressado e já não me apetece aperfeiçoar este post: está concluído. :(
Ah, o direito natural como garantia da dignidade humana não tem nada de semelhante ao pseudo-parecer de Freitas do Amaral (FPF): esse parecer é anti-direito e reflecte o caos e a falência da justiça em Portugal corrupto.
Gostei muito deste texto, Francisco!
"Para Bloch, a finalidade da filosofia é a transformação do mundo".
Para mim, não ficou clara a natureza desta transformação de que fala bloch.
Também ando muito estressado. Graves problemas na minha família...
"Bloch"
André
Sim, não explicitei esse tema, porque se trata de uma filosofia aberta que precisa analisar as tendências concretas da sociedade estabelecida. Porém, o pensamento de Bloch vai na linha do socialismo democrático: democracia e liberdades individuais eram exigências práticas. Hoje a democracia é um travesti corrupto: compete-nos avançar com novos sohnos diurnos e combater os poderes corruptos estabelecidos.
Espero que os seus problemas se resolvam facilmente e da melhor maneira. ("sonhos")
Obrigado, Francisco. Também espero que eles se resolvam da melhor maneira. Muitas vezes, antes de dormir, faço uma prece a Hypnos, pedindo-lhe a benção do esquecimento. Às vezes desejo entrar em um estado de catalepsia sem retorno.
Talvez a morte seja leve e doce.
A "validade" do parecer de Freitas do Amaral revela o seu sentido encarnadamente reduzido no artigo publicado pelo filho no "Diário Económico": mais outra cabala lisboeta que visa erguer a falsidade como uma realidade de aparência corrompida. Perante os ataques que são feitos ao Norte e em especial ao Porto, chegou o momento do Norte unir-se e reclamar autonomia total de Lisboa: a unidade nacional é falsa.
Uma observação: Usei o termo fantasia em vez de imaginação utópica e este uso não foi inocente. Mas imaginação é o termo adequado. Bachelard fala de devaneio e esse termo corresponde ao sonhar acordado de Bloch.
Bom dia, Francisco!
Achei muito interressantes as considerações de Bloch sobre a "fantasia produtiva" e o "sonhar acordado".
Jung, em contato com os índios pueblos, ouviu destes uma confissão muito pertinente: "Os brancos não têm grandes sonhos".
Segundo o chefe destes índios, os homens brancos, ao dominarem a natureza, afastaram o pensamento mítico de seu universo. Poder-se-ia acrescentar que os homens brancos da modernidade estão a exterminar a riqueza simbólica dos sonhos.
Percebo que os sonhos de muitas pessoas são metabolicamente reduzidos: dizem respeito unicamente a questões superficiais do cotidiano e a outros eventos desagradáveis.
Olá André
Estava a pensar nas afinidades entre a fenomenologia da imaginação criadora de Bachelard e a fenomenologia da consciência antecipadora de Bloch, ou seja, entre o devaneio e o sonho diurno, mas fiquei preso na concepção blochiana da morte e da caducidade.
Há tanta coisa para estudar... O cérebro místico... :)
Excelente texto, Camarada !!!
;)
Não me parece que o stress tenha interferido no produto final, mas em qualquer caso veja se faz alguma coisa anti-stress...
Quer uma lista com sugestões ?
Avanço algumas por minha conta:
1. Não ir ao Algarve em Agosto...
2. Não ver TV nem ter qq outro tipo de contacto com informação metabólicamente reduzida
3. Semear qualquer coisa ( feijões, por exemplo, que são rapidinhos...)
::)))
Abraço, Francisco...e veja se suida de si.
Boa tarde Manuel
Sim, o mês de Agosto é terrível: odeio Agosto, o seu calor e a sua falsa movimentação. Mas Portugal tende a ser falso durante todo o ano.
Durante este mês vou fazer cyberpesquisa. Pelo menos, fico sozinho e sem ter os ouvidos alugados. :)
Amigos
Se resistir à "neura", vou tentar fazer uma outra aproximação à decadência do Ocidente, retomando a teoria da retardação de Bolk, da domesticação de Lorenz e da acomodação de Carrel: estou cada vez mais convencido de que a sociedade metabolicamente reduzida significa degenerescência. O homem branco está em processo de decadência biológica e racial. :(
Francisco, já percebi o processo vertiginoso de degenerescência do homem branco :(
E ele me parece ser irreversível.
Oi André
Já viu os novos anúncios publicitários: R500, o novo computer, vale a pena ver; o homem para casamento é divertido.
Sim, a degerescência está no horizonte e deve implicar o sistema endócrino.
Ainda não vi o R500 :)
«Passear com conforto?» - Manuel, este anúncio da Google é para si! :)))
Francisco,
Já deve estar de férias. A sua amiga Borboleta voa-voa deseja-lhe umas óptimas férias descansadas e prazenteiras. :)
Abraço!
Realmente !...:))))
Então o Francisco agora entrou no negócio de "usados com garantia" ???
:)))
Boa tarde Papillon e Manuel
Ainda não tinha visto esse anúncio sobre o passear com conforto da Honda: são muitos anúncios portugueses em função das horas.
Ya, estou de férias e aproveito para sair da cidade e ir para a montanha verdejante ou praia. Entretanto, surgiram outros problemas e é preciso confrontá-los.
Boas férias e apareçam sempre, porque também apareço e talvez com novo post. Abraços
O anúncio R500 é giro e o dos projectos de arquitectura também... :)
De resto, tenho sido muito criticado por não dar a cara ou aparecer em público, como se vivesse escondido. Talvez o ar fresco me ajude a pensar se me devo comprometer... :)
Quem me dera ir sentir a aragem do mar, mas hoje estou manietada. :)
Que o Zéfiro seja bom conselheiro!
Ya, também não me apetece sair hoje de tarde; só à noite vou para junto da praia esplanar. :)
Faz bem! Também de noite vou "esplanar" e hoje deve estar uma noite maravilhosa com o calor que está! :)
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