terça-feira, 29 de julho de 2008

Ernst Bloch: Ontologia da Possibilidade

«O processo do mundo ainda não está decidido em nenhum lugar, nem tão-pouco está frustrado; e os homens podem ser na terra os guardiões do seu rumo ainda não decidido, quer para a salvação, quer para a perdição. O mundo permanece, na sua totalidade, como um fabril laboratorium possibilis salutis». (Ernst Bloch)
O esclarecimento entendido como desencantamento do mundo (Weber) procurou explicar racionalmente a relação entre o homem e a fantasia e a relação fantástica do homem com o mundo, recorrendo ao caminho que parte dos mitos e das utopias e termina na ciência ou, mais precisamente, na glorificação ideológica do que é: a realidade estabelecida. A fantasia foi considerada como um processo anímico primitivo, que prescinde do princípio de realidade. O resultado desta desvalorização e concomitante abandono da fantasia e do seu poder para formular desejos sensatos foi a hipertrofia do entendimento técnico. Hoje vivemos na situação de realizar muitas coisas que não queremos, sem saber o que realmente queremos. Ernst Bloch recuperou o poder da fantasia utópica, com o objectivo de mostrar que aquilo que é não pode ser verdadeiro. Se "a necessidade (privação) ensina a pensar", como diz Bloch, então a abundância metabolicamente reduzida produz regressão cognitiva e atrofia dos órgãos mentais, portanto, o homem metabolicamente reduzido de hoje que conserva a sua vida sem procurar a auto-expansão.
A concepção blochiana do homem começa no limiar do fundo vital, onde entre o ser e o ter se abre o mundo: "a necessidade ensina a pensar". Na escala composta pelo impulso, ainda obscuro e amorfo, o afã, o impulso já sentido, a ânsia, o impulso ainda sem meta, o instinto, o impulso que busca já o específico, o desejo, o impulso passivo mas com uma prefiguração, e o querer, que inclui uma actividade diferenciada, é o instinto o primeiro nível da dinâmica teleológica. A esperança é o ponto onde a consciência e o ser se encaixam, isto é, onde o elemento subjectivo e o elemento objectivo do processo do mundo convergem. No homem, os impulsos atravessam a temporalidade da vida anímica e mostram quase sempre um pré-conhecimento do fim. Por isso, em vez de instintos, Bloch prefere falar de tendências, cujos elementos são: um défice, uma meta e uma antecipação ou ainda-não, formando um arco que se estende do presente para o futuro. A tendência básica e primária não é o instinto sexual, como em Freud, mas a fome, a tendência a suum esse conservare, isto é, a tendência que impulsiona simplesmente a conservar-se vivo, da qual procedem os instintos imediatos e os movimentos do sentimento ou emoções. A esperança é algo biologicamente constitutivo da existência: a privação converte a fome em docta fames, em fome informada e instruída, inclusive esclarecida. O si mesmo é levado para além da conservação da sua vida: explode e a autoconservação transforma-se em auto-expansão. Da fome economicamente esclarecida nasce a decisão alimentada pelos sonhos diurnos de suprimir todas as circunstâncias em que o homem é um ser oprimido, ofendido e humilhado.
Ao analisar o mundo onírico de certos pacientes, Freud estudou aquilo a que Bloch chamou o já-não-consciente: a fantasia produtiva do homem ocupa-se das vivências que não pôde dominar e que, por isso, reprimiu. Nos sonhos nocturnos, aflora à consciência o passado reprimido e os impulsos reprimidos buscam a sua libertação nos sonhos. Esta fantasia produtiva que actua sobre o passado insuperado manifesta-se primordialmente nos sonhos nocturnos dos homens. Porém, como mostrou Bloch, não são só os pacientes que sonham: as pessoas saudáveis e felizes também sonham e estes sonhos não são desencadeados somente por vivências desagradáveis mas também por vivências felizes. No sonhar acordado, desperto, revela-se um ainda-não-consciente, isto é, uma antecipação do futuro que ainda-não-existe. Esta fantasia que se manifesta no limiar do presente que se conhece é uma fantasia fascinada pela novidade possível. É uma imaginação poética que não pretende modificar o passado insuportável, mas que penetra no futuro ainda-não-realizado, para o antecipar mediante formas simbólicas e ideais. Os sonhos diurnos têm a sua origem num défice e tendem a superá-lo. São sonhos de uma vida melhor que resultam do jogo da fantasia criadora: o sonhador encontra-se quase sempre no centro dos acontecimentos. Bloch analisa a sua estrutura sub specie utopica, isto é, a partir da fantasia criadora voltada para o futuro: os sonhos diurnos são voluntários (1), o eu do sonhador é conservado, embora não tenha nada a ver com os paraísos artificiais de Baudelaire (2), visam uma vida melhor e, devido à sua amplitude, podem abarcar outros eus com os quais procura melhorar a vida da comunidade (3), e tendem a ir até ao fim, sem satisfação fictícia, abstinência ou resignação (4). O sonho nocturno nutre-se da regressão, enquanto o sonho diurno prefigura e antecipa um outro princípio de realidade e, por isso, projecta-se no futuro. Os sonhos acordados têm um carácter intencional e projectam-se, quando visam um futuro autêntico, para o não-cumprido, o ainda-não-consciente, de modo a descrever um arco utópico que vai da fantasia antecipativa até ao futuro entrevisto. Como determinação fundamental do sonho diurno, o ainda-não-consciente constitui a única pré-consciência do futuro. O sonho diurno encerra na sua latência uma tendência para a claridade e, quando o presságio quer ser razoável, começa a florescer a esperança esclarecida, a docta spes. A partir do momento em que entra em jogo a razão, a esperança como afecto expectativo do sonhar para a frente deixa de ser mero estado de ânimo e converte-se em actuação consciente-sapiente: a função utópica como forma interna do acto da esperança abandona o passado e os seus conteúdos apoiam-se nas futuras possibilidades do ser de outro modo, ou seja, do ser melhor. A forma interna histórica da esperança é a cultura humana considerada no seu horizonte utópico-concreto. A simbiose de ambas constitui a docta spes, a atitude adoptada pela filosofia num mundo ainda-não-concluído.
A antropologia da esperança exige necessariamente uma ontologia do mundo aberto ao futuro e à história: a esperança humana encontra-se fundada nas infinitas possibilidades abertas do processo cósmico. Sem estas possibilidades reais, a esperança seria um absurdo, porque, segundo Kierkegaard, a esperança é precisamente a "paixão pelo possível". Bloch valoriza muito mais o conceito de possibilidade do que o conceito de realidade: a realidade mais não é do que a realização da possibilidade. Por isso, Bloch elaborou uma ontologia do que ainda-não-é mas que é possível ou susceptível de vir a ser. Ao sentido de realidade do homem corresponde logicamente o sentido de possibilidade. O mundo em que vivemos e esperamos não é um edifício acabado e concluído, mas uma combinação de realidades e de possibilidades, isto é, um processo aberto. Não é um sistema de estruturas eternamente repetíveis e reproduzíveis, mas uma história aberta, onde acontecem e podem ser realizadas coisas novas. O mundo é, segundo a expressão feliz de Bloch, um laboratorium possibilis salutis: não é um céu da perfeição nem um inferno do aniquilamento, mas simplesmente uma terra imperfeita, cujas possibilidades estão abertas ao bem e ao mal. Isto significa que o futuro do mundo pode ser ou a morte do universo e o nada ou a pátria da identidade.
Com exclusão das possibilidades irreais, existem diversos tipos de possibilidades: a possibilidade formal, na qual se baseia o optimismo ingénuo das utopias abstractas; a possibilidade epistemológica, que, apesar de constituir o fundamento da liberdade da razão humana, é demasiado subjectiva; a possibilidade objectiva que reside na raiz das próprias coisas; e a possibilidade dialéctica, que permite captar a relação entre utopia e «matéria», porque, "sem matéria não existe um suporte para a antecipação" e sem antecipação "não há horizonte para a matéria". Esta última categoria de possibilidade permite superar a oposição entre uma utopia que reflecte o movimento da realidade (o possível objecto) e uma utopia que é fonte da liberdade humana. A categoria de possibilidade dialéctica rompe com uma ontologia acabada do ser já existente e avança com uma ontologia do ser ainda-não-existente: a utopia exige a insatisfação permanente com o que existe, a exploração do homem pelo homem, ao mesmo tempo que procura explicitar as possibilidades concretas das quais a realidade está grávida. Constitui o eixo da perfectibilidade da mais absoluta de todas as utopias sociais: a naturalização do homem e a humanização da natureza (Marx).
Para Bloch, a finalidade da filosofia é a transformação do mundo. Graças à possibilidade real e dialéctica, os sonhos utópicos, que são diurnos, acordados e contagiosos, não degeneram em ilusões ocas, mas ajudam a conservar o optimismo militante. Este optimismo está fundado sobre a utopia concreta, que o liberta do quietismo e lhe atribui o seu próprio lugar à frente do processo do mundo, onde se produz o novum. A produção da frente e do novum ao longo da história humana desemboca numa nova realidade que capta uma terceira categoria: ultimum. O ultimum deverá ser a pátria da identidade. Assim, a utopia concreta constitui "o ponto de intersecção entre o sonho e a vida, sem o qual o sonho seria mera utopia abstracta e a vida pura trivialidade". A utopia concreta faz da esperança subjectiva uma esperança comunitária, uma docta spes, uma esperança esclarecida, que critica o mundo existente, com a sua capacidade de se erguer por cima do imediato e do fáctico e inventar novos possíveis a partir da "obscuridade do momento vivido". A utopia concreta visa eliminar a miséria humana e o direito natural visa suprimir a humilhação do homem. Segundo Marx, o imperativo categórico é "subverter todas as condições em que o homem é um ser humilhado, escravizado, abandonado e desvalorizado».
J Francisco Saraiva de Sousa

26 comentários:

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Amigos

O texto ainda está sujeito a alterações e pretendo explicitar um pouco melhor a fenomenologia da consciência antecipativa ou antecipante. :)

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Ando muito stressado e já não me apetece aperfeiçoar este post: está concluído. :(

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Ah, o direito natural como garantia da dignidade humana não tem nada de semelhante ao pseudo-parecer de Freitas do Amaral (FPF): esse parecer é anti-direito e reflecte o caos e a falência da justiça em Portugal corrupto.

André LF disse...

Gostei muito deste texto, Francisco!
"Para Bloch, a finalidade da filosofia é a transformação do mundo".
Para mim, não ficou clara a natureza desta transformação de que fala bloch.
Também ando muito estressado. Graves problemas na minha família...

André LF disse...

"Bloch"

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

André

Sim, não explicitei esse tema, porque se trata de uma filosofia aberta que precisa analisar as tendências concretas da sociedade estabelecida. Porém, o pensamento de Bloch vai na linha do socialismo democrático: democracia e liberdades individuais eram exigências práticas. Hoje a democracia é um travesti corrupto: compete-nos avançar com novos sohnos diurnos e combater os poderes corruptos estabelecidos.

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Espero que os seus problemas se resolvam facilmente e da melhor maneira. ("sonhos")

André LF disse...

Obrigado, Francisco. Também espero que eles se resolvam da melhor maneira. Muitas vezes, antes de dormir, faço uma prece a Hypnos, pedindo-lhe a benção do esquecimento. Às vezes desejo entrar em um estado de catalepsia sem retorno.
Talvez a morte seja leve e doce.

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

A "validade" do parecer de Freitas do Amaral revela o seu sentido encarnadamente reduzido no artigo publicado pelo filho no "Diário Económico": mais outra cabala lisboeta que visa erguer a falsidade como uma realidade de aparência corrompida. Perante os ataques que são feitos ao Norte e em especial ao Porto, chegou o momento do Norte unir-se e reclamar autonomia total de Lisboa: a unidade nacional é falsa.

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Uma observação: Usei o termo fantasia em vez de imaginação utópica e este uso não foi inocente. Mas imaginação é o termo adequado. Bachelard fala de devaneio e esse termo corresponde ao sonhar acordado de Bloch.

André LF disse...

Bom dia, Francisco!
Achei muito interressantes as considerações de Bloch sobre a "fantasia produtiva" e o "sonhar acordado".

Jung, em contato com os índios pueblos, ouviu destes uma confissão muito pertinente: "Os brancos não têm grandes sonhos".
Segundo o chefe destes índios, os homens brancos, ao dominarem a natureza, afastaram o pensamento mítico de seu universo. Poder-se-ia acrescentar que os homens brancos da modernidade estão a exterminar a riqueza simbólica dos sonhos.
Percebo que os sonhos de muitas pessoas são metabolicamente reduzidos: dizem respeito unicamente a questões superficiais do cotidiano e a outros eventos desagradáveis.

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Olá André

Estava a pensar nas afinidades entre a fenomenologia da imaginação criadora de Bachelard e a fenomenologia da consciência antecipadora de Bloch, ou seja, entre o devaneio e o sonho diurno, mas fiquei preso na concepção blochiana da morte e da caducidade.

Há tanta coisa para estudar... O cérebro místico... :)

Manuel Rocha disse...

Excelente texto, Camarada !!!

;)

Não me parece que o stress tenha interferido no produto final, mas em qualquer caso veja se faz alguma coisa anti-stress...

Quer uma lista com sugestões ?

Avanço algumas por minha conta:
1. Não ir ao Algarve em Agosto...
2. Não ver TV nem ter qq outro tipo de contacto com informação metabólicamente reduzida
3. Semear qualquer coisa ( feijões, por exemplo, que são rapidinhos...)

::)))

Abraço, Francisco...e veja se suida de si.

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Boa tarde Manuel

Sim, o mês de Agosto é terrível: odeio Agosto, o seu calor e a sua falsa movimentação. Mas Portugal tende a ser falso durante todo o ano.

Durante este mês vou fazer cyberpesquisa. Pelo menos, fico sozinho e sem ter os ouvidos alugados. :)

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Amigos

Se resistir à "neura", vou tentar fazer uma outra aproximação à decadência do Ocidente, retomando a teoria da retardação de Bolk, da domesticação de Lorenz e da acomodação de Carrel: estou cada vez mais convencido de que a sociedade metabolicamente reduzida significa degenerescência. O homem branco está em processo de decadência biológica e racial. :(

André LF disse...

Francisco, já percebi o processo vertiginoso de degenerescência do homem branco :(
E ele me parece ser irreversível.

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Oi André

Já viu os novos anúncios publicitários: R500, o novo computer, vale a pena ver; o homem para casamento é divertido.

Sim, a degerescência está no horizonte e deve implicar o sistema endócrino.

André LF disse...

Ainda não vi o R500 :)

E. A. disse...

«Passear com conforto?» - Manuel, este anúncio da Google é para si! :)))

Francisco,

Já deve estar de férias. A sua amiga Borboleta voa-voa deseja-lhe umas óptimas férias descansadas e prazenteiras. :)

Abraço!

Manuel Rocha disse...

Realmente !...:))))

Então o Francisco agora entrou no negócio de "usados com garantia" ???

:)))

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Boa tarde Papillon e Manuel

Ainda não tinha visto esse anúncio sobre o passear com conforto da Honda: são muitos anúncios portugueses em função das horas.

Ya, estou de férias e aproveito para sair da cidade e ir para a montanha verdejante ou praia. Entretanto, surgiram outros problemas e é preciso confrontá-los.

Boas férias e apareçam sempre, porque também apareço e talvez com novo post. Abraços

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

O anúncio R500 é giro e o dos projectos de arquitectura também... :)

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

De resto, tenho sido muito criticado por não dar a cara ou aparecer em público, como se vivesse escondido. Talvez o ar fresco me ajude a pensar se me devo comprometer... :)

E. A. disse...

Quem me dera ir sentir a aragem do mar, mas hoje estou manietada. :)

Que o Zéfiro seja bom conselheiro!

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Ya, também não me apetece sair hoje de tarde; só à noite vou para junto da praia esplanar. :)

E. A. disse...

Faz bem! Também de noite vou "esplanar" e hoje deve estar uma noite maravilhosa com o calor que está! :)