segunda-feira, 20 de abril de 2009

Morte, Perda e Luto (1)

«Não existe amor sem perda. E não existe a superação da perda sem alguma experiência de luto. Não ser capaz de a vivenciar é ser incapaz de entrar no grande ciclo da vida humana de morte e de renascimento, enfim, é ser incapaz de viver novamente». (Lifton)
Philippe Ariés analisou as imagens da morte no Ocidente em função de quatro parâmetros: a consciência de si (1), a defesa da sociedade contra a natureza selvagem (2), a crença na outra vida (3), e a crença na existência do mal (4). As variações destes parâmetros ao longo do tempo, desde a baixa Idade Média até aos nossos dias, possibilitaram-lhe captar e estabelecer uma sequência ou sucessão de cinco modelos: a morte domada (1), a minha morte (2), a morte distante e próxima (3), a morte do outro (4) e a morte invertida (5). A história da morte apresentada por Ariés fornece-nos muitos dados e perspectivas importantes, mas a sua metodologia é ingénua e frágil e os seus resultados são questionáveis. Alguns conceitos utilizados, tais como "todos morremos" (morte domada), a "minha morte" e a "morte do outro", são retomados de V. Jankélévitch, não como constantes antropológicas da morte, mas como designações gerais de imagens da morte: as constantes antropológicas são vistas por Ariés como variações históricas de modelos da morte. Esta fragilidade teórica revela-se no uso que Ariés faz da "morte do outro". O seu surgimento histórico é explicado pela mudança do parâmetro da individualidade: "Até agora variava entre dois limites: o sentido da espécie e de um destino comum (todos morremos) e o sentido da sua biografia pessoal e específica (a minha morte). No século XIX, enfraquecem-se um e outro em proveito de um terceiro sentido, antes confundido com os dois primeiros: o sentido do outro, e não de um outro qualquer. A afectividade, outrora difusa, concentrou-se a partir de então em alguns seres raros cuja separação já não é suportada e desencadeia uma crise dramática: a morte do outro" (Ariés). O século XIX trouxe-nos uma "revolução do sentimento": a sensibilidade dirigida para a vida privada (privacy), que "encontrou o seu lugar na família «nuclear», remodelada pela sua nova função de afectividade absoluta. A família substituiu-se ao mesmo tempo à comunidade tradicional e ao indivíduo do final da Idade Média e do início dos tempos modernos". A morte de si perdeu sentido e "o medo da morte, germinando nos fantasmas dos séculos XVII e XVIII, foi desviado de si para o outro, o ser amado". Ariés apresenta como novidade aquilo que é uma realidade desde que o homem é homem ou, pelo menos, desde que sepulta os seus mortos queridos (Florbela Espanca) há cerca de 50 000 anos: a morte na primeira pessoa (a minha morte ou morte própria), na segunda pessoa (a morte do outro) e na terceira pessoa (a morte anónima) sempre-já coexistem, tanto ao nível humano como ao nível animal.
A morte do outro significa uma perda para os que sobrevivem e esta perda de alguém próximo e querido constitui o maior golpe que o espírito humano pode (ou não) suportar: o homem pode ser esmagado pelo pesar e morrer por causa do sofrimento desencadeado pela perda do ser amado. O homem não sente amor e pesar por um outro ser humano qualquer, mas apenas por um ou alguns seres humanos particulares. Tudo isto se deve ao vínculo afectivo, isto é, à formação, manutenção, rompimento e renovação de vínculos emocionais: a atracção que um indivíduo sente por outro indivíduo. Diversas espécies animais revelam a existência de vínculos fortes e persistentes entre indivíduos e os tipos de vínculos diferem de uma espécie para outra, embora os mais comuns sejam as ligações entre pais e filhos e as ligações entre adultos do sexo oposto ou do mesmo sexo. O primeiro vínculo e o mais persistente é aquele que se forma entre a mãe e o seu filho. A vinculação afectiva resulta do comportamento social da espécie e implica uma aptidão para reconhecer indivíduos. Cada membro do par vinculado procura manter-se na proximidade do outro e suscita no outro o comportamento de manutenção da proximidade: os dois indivíduos vinculados tendem a manter-se próximos um do outro e, quando se separam, um deles procura, mais cedo ou mais tarde, o outro para restabelecer e reatar a proximidade. A presença de um intruso desencadeia resistência no par vinculado e, geralmente, o mais forte pode atacá-lo. O comportamento agressivo ajuda a manter e a conservar os vínculos, sendo utilizado quer para atacar e afugentar os intrusos, quer para punir o parceiro errante. Os vínculos afectivos e os estados emocionais subjectivos tendem a ocorrer juntos. Em termos de experiência subjectiva, a formação de um vínculo é descrita como apaixonar-se, a manutenção desse vínculo, como amar alguém, e a perda do parceiro vinculado, como sofrer por alguém. A ameaça de perda gera ansiedade, a perda produz tristeza, e, tanto uma como a outra, podem despertar raiva. A manutenção de um vínculo é experienciada como uma fonte de segurança, e a sua renovação, como uma fonte de alegria.
A alimentação e o sexo não explicam a existência de vínculos afectivos: o bebé não se vincula à mãe por causa desta o alimentar e os adultos não se vinculam uns aos outros por causa do sexo. Estas explicações foram desmentidas por estudos etológicos e experimentais. Entre as aves e os mamíferos, as crias ligam-se a objectos maternos, apesar de não serem alimentadas por eles, e os vínculos afectivos entre adultos não são necessariamente acompanhados por relações sexuais, as quais ocorrem frequentemente na ausência de vínculos afectivos persistentes. Do ponto de vista ontogenético, os vínculos afectivos desenvolvem-se, porque os seres vivos nascem dotados de uma inclinação para se aproximar de determinado tipo específico de estímulos, aqueles que lhes são familiares, e para evitar outros tipos de estímulos, aqueles que lhes são estranhos. O bebé humano desenvolve o comportamento de ligação com a mãe ou outro substituto maternal durante os primeiros nove meses de vida: a figura de ligação é, geralmente, a pessoa que lhe dispensa a maior parte dos cuidados maternos. O comportamento de ligação mantém-se activado até ao final do terceiro ano de vida e, depois desta idade, torna-se cada vez menos activado, embora persista, como parte do equipamento comportamental humano, durante grande parte do ciclo vital. A ligação desenvolve-se mesmo que o bebé seja repetidamente punido pela figura de ligação. Do ponto de vista evolutivo, a função biológica da vinculação entre indivíduos da mesma espécie é, provavelmente, a protecção contra predadores: o comportamento de apego contribui para a sobrevivência do indivíduo, mantendo-o em contacto com aqueles que cuidam dele e protegendo-o das ameaças ambientais. Os cuidados que lhe são prestados garantem a sua sobrevivência, protegendo-o das ameaças ambientais e reduzindo o risco de morte prematura. (CONTINUA com o título "Morte, Perda e Luto 2".)
J Francisco Saraiva de Sousa

19 comentários:

E. A. disse...

Francisco, soube no outro dia do "Sex Lab" na Universidade de Aveiro, andam a pedir voluntários. Até voluntariar-me-ia, mas Aveiro é fora de mão. O Francisco tem alguma coisa a ver com o projecto? Parece ser interessante. :)

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Tenho familiares nessa Universidade, mas não estou ligado a esse projecto: sim, fica "fora de mão". :)

E. A. disse...

Que engraçado, eu tb, mas da área da cultura.

Pois, eu ouvi na rádio, e lembrei-me imediatamente de si! Ainda bem, então, que vários académicos se debruçam sobre o tema da sexualidade. :)

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

O site da UA deve fornecer mais informação, suponho, porque ainda não vi. Aqui no Porto também quiseram iniciar um projecto afim, mas com as pessoas em questão descartei tal possibilidade: não gosto perder temppo a falar do óbvio. :)

E. A. disse...

Sim, têm mesmo um site a divulgar o projecto:
http://sexlab.web.ua.pt/Paginas/projectos/projecto3_mais.asp

E. A. disse...

Sim, do evidente não se discute. Mas não considera o projecto interessante? Ouvi o psicólogo responsável a falar da incoerência entre a resposta fisiológica ao estímulo sexual e a expressão emocional sobre o mesmo objecto.

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Ah, estive a reler o capítulo dedicado à "visão da morte" da obra "O Declínio da Idade Média" de J. Huizinga e fiquei impressionado não com os horrores da putrefacção e da dança macabra ou o duplo horrendo da pessoa, mas com determinadas práticas que fazem lembrar a actual indústria da morte.

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Sim, o tema é interessante. Não há somente essa dissonância, mas muitas outras, bem exemplificadas no programa da Sue e seus imitadores nacionais. :)

E. A. disse...

Ahah! Quem são os emuladores nacionais da Sue????

Não conheço, n me diga que fala daquela psicóloga, a Marta Crawford? Muito fraca ao pé da Sue. Melhor que a Sue, só o F. ahahah

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Sim, falo dessa. Pelo menos, devia mudar o cenário e ser mais segura nas respostas! Não tinha paciência para responder a certas questões, sem problematizar quem as colocava. Não percebo certa ignorância sexual numa era supostamente hipersexual!

E. A. disse...

Não sabia que ela voltou a ter um programa. Sim, ela é muito insegura, a Sue é despachada nos conselhos, como se quer nesta sociedade ansiosa. :)

Ya, o Slavoj Zizek numa entrevista mui sui generis que o amável Z. (aqui do universo bloguista) me enviou o link
http://video.google.com/videoplay?docid=8610224796251814184
fala de um superego que instiga ao prazer, que está ligado à política e ao capitalismo (ele é marxista).

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Sim, tem novo programa na TVINotícias (6 canal aqui no Porto) e segue de perto o da Sue.

Sim, concordo com essa ligação ao capitalismo tardio, o nosso, mas ainda não conseguimos explicar bem essa conexão. Ela tb está ligada a alguma forma de regressão cognitiva. Além disso, as pessoas perderam confiança em si mesmas, entregando-se facilmente às orientações dos saberes burocráticos e administrativos, e permitindo a gestão exterior das suas vidas. Detecto essa anomalia nos sites webcam!

E. A. disse...

Sim, porque a esfera privada está desencantada! Já não iniciação, há google, searching for....

E. A. disse...

Se calhar sou cognitivamente retardada, mas há algo nesta "sociedade transparente" que me agrada muito e que, no fundo, sabemos que não lhe podemos resistir.

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Vattimo errou quando chamou transparente à nossa sociedade: os mass media são tudo menos transparentes, pelo menos para o comum dos mortais. Acho que precisamos de novas estruturas de orientação e esse trabalho passa pela reabilitação de instituições já existentes, embora disfuncionais no presente. Uma mudança de paradigma ajudava a proteger o futuro...

E. A. disse...

Sim, a crítica aos media de Vattimo e Perniola é nesse sentido, porque eles são "pós-ideológicos"... n é o caso do F. ;)

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Saiu uma edição nova do "Homem sem Qualidades" de Musil e a FNAC faz desconto de 40% na sua feira do livro: 40 euros os dois volumes! Vale a pena!

E. A. disse...

Sim, o exemplar homem pós-moderno, o Ulrich!

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Ya, parece que a ausência de qualidades já tem uma história sedimentada, provavelmente mais preocupante no nosso tempo dado a sua indigência intelectual e política! :)