terça-feira, 10 de janeiro de 2012

A Religião Maia

Palenque: Templo de Las Inscripciones
«As principais fontes do nosso conhecimento sobre as deidades maias estão nos já referidos códices de Dresden, Madrid e Paris. Todos eles contêm muitas representações pictóricas de vários membros do panteão maia. (...) Damos fé do dualismo existente na mitologia maia quase tão completo como o da antiga Pérsia: o conflito entre a luz e a obscuridade. Nesta oposição, contemplamos, por um lado, as deidades do Sol, os deuses do quente e da luz, da civilização e da alegria da vida, e por outro, as deidades da obscuridade, da morte, da noite, da tenebrosidade e do medo. Destas concepções primárias de luz e de obscuridade se desenvolvem todas as formas mitológicas dos maias.» (Lewis Spence)

Os Maias já foram encarados como os Gregos da Mesoamérica, título que merecem se tivermos em conta a autonomia das suas Cidades-Estados e, em especial, a sua filosofia do tempo, mas a sua religião ainda não foi alvo de um estudo detalhado, realizado à luz de novas teorias da religião suficientemente poderosas para articular toda a imensa superstrutura da sociedade maia. A escassez de fontes escritas - indígenas ou espanholas - e a dificuldade de decifração do seu sistema hieroglífico não permitem esboçar uma visão dinâmica da religião maia. Uma cultura que produziu uma filosofia da eternidade do tempo não pode ser alvo do preconceito positivista que desvaloriza a sua religião, como se ela fosse um conjunto de crenças pré-científicas: a filosofia maia do tempo constitui a chave de leitura interna da sua religião. Quando estudamos a religião maia, temos dificuldade em distinguir as teorizações dos sacerdotes das crenças populares. A classe sacerdotal maia era uma classe de sábios-astrónomos. No topo da hierarquia sacerdotal encontrava-se Ah Kin Mai ou Ahau Kan Mai, que em Yucatán era o chefe supremo do poder sacerdotal. Além dos seus deveres administrativos e de aconselhamento dos governantes civis, o chefe do clero maia ensinava aos noviços a escrita hieroglífica, as genealogias, a realização das cerimónias de cura das doenças, os cálculos calendáricos, a astronomia, a adivinhação e o ciclo dos rituais. Em Yucatán, os oficiantes regulares do Grande Sacerdote do Sol eram chamados Ah Kin, "o(s) do Sol", sendo encarregados do ciclo completo dos sacrifícios comunais e das adivinhações. Os chilanes eram basicamente profetas e adivinhos que consultavam os almanaques adivinhatórios de 360 dias e de outros períodos de tempo para fazer profecias. Além disso, quando recebiam inspiração divina, entrando em transe, tinham visões, frequentemente induzidas por drogas sagradas como por exemplo o peyote (Datura) e os cogumelos alucinógenos. Assistidos pelos chaques, os nacones, outro grupo especializado de sacerdotes, arrancavam os corações das vítimas dos sacrifícios, entregando-os a Ah Kin, quem depois se encarregava das cerimónias. Na sociedade maia, os sacerdotes desfrutavam de um prestígio tão grande como o dos senhores nobres. Segundo o cronista Cogolludo, «os sacerdotes eram considerados como senhores», superiores a todos devido ao facto de formarem a classe culta da sociedade maia. Sendo consultados para todos os assuntos importantes da colectividade, tais como a determinação das datas das diferentes actividades agrícolas e das festas religiosas, a doação de nomes às pessoas e a feitura dos seus horóscopos, a predição dos acontecimentos futuros, a cura das doenças, a escritura dos códices, a transmissão das tradições, a educação dos sacerdotes, a realização dos cálculos para anunciar eclipses e outros fenómenos do céu, enfim a administração da justiça, eles castigavam e premiavam e, por isso, eram temidos e obedecidos por todos. No entanto, a sua alta posição social não os impedia de sujeitar-se à severa disciplina ritual observando as rigorosas regras do culto: os jejuns, as abstinências e os autosacrifícios. Os sacerdotes maias inventaram a escrita hieroglífica, a cronologia e o calendário, três dispositivos do saber que garantiram o seu domínio espiritual. As suas observações astronómicas levaram-nos ao conhecimento preciso das estações do ano que lhes permitia regular as actividades agrícolas. Conhecedores do curso dos astros, os sacerdotes eram considerados como promotores de fenómenos, investidos pelos deuses dos poderes necessários para ajudar a colectividade a controlar as condições atmosféricas, de modo a garantir o sucesso das suas colheitas e dos seus campos cultivados. Dado contar com a ajuda preciosa da astronomia e do calendário, a religião maia alcançou um domínio ideológico quase ilimitado: além de predizer o que os acontecimentos astronómicos anunciavam (eclipses, o princípio das águas, cheias, secas, inundações), os sacerdotes criaram uma astrologia que lhes permitia dominar todos os aspectos da vida colectiva e individual. No palco da luta entre forças divinas, os sacerdotes ajudavam os deuses benéficos a conquistar a sua vitória sobre os seus arqui-adversários e tentavam apaziguar a ira dos deuses maléficos. A construção de templos e de pirâmides, a veneração do poder sacerdotal, o cumprimento dos rituais, as ofertas e os sacrifícios constituíam os meios para obter dos deuses vida e saúde, sustento e felicidade. Ao contrário do que se pensou durante muito tempo, os sacrifícios humanos eram praticados pelos maias (e também pelos incas), em grau inferior ao dos astecas, é certo!, como demonstraram as pinturas de Bonampak e os monumentos esculpidos. Os maias sacrificavam crianças, geralmente órfãs, até mesmo em altares locais como sucedeu no caso de um menino educado pelos frades franciscanos, testemunhado por Juan Couoh pouco depois da conquista definitiva de Yucatán, adultos, previamente encerrados em jaulas de madeira, e idosos, muitas vezes extraindo os seus corações, esfolando-os depois de terem sido lançados para a base da pirâmide, e repartindo partes dos seus corpos pelos participantes. Os sacerdotes e os seus ajudantes ficavam com as mãos, os pés e as cabeças dos sacrificados, e a sua carne era comida (canibalismo). Além destes sacrifícios humanos e, sobretudo, animais, os maias ofereciam aos deuses o seu próprio sangue. Os lugares do corpo escolhidos para o autosacrifício eram a língua, as orelhas, os cotovelos e o pénis. Segundo Diego de Landa, o autosacrifício realizava-se fazendo passar uma corda, repleta de espinhas, através da língua, e o sangue resultante dessa agressão corporal era recolhido em tiras de papel de cortiça para serem oferecidas aos deuses.

Cosmologia Maia. Os maias acreditavam que o céu estava dividido em 13 compartimentos, sendo suportado por quatro deuses ou génios, os Bacabes, cada um dos quais colocado num dos quatros lados do mundo. A cada uma das direcções do mundo correspondia uma cor: o vermelho era a cor do Leste, o branco a do Norte, o negro a do Oeste e o amarelo a do Sul. Uma quinta cor - o verde - correspondia ao centro. Assim, o Bacab vermelho (Kan) estava a Leste, o Bacab branco (Muluc) a Norte, o Bacab negro (Ix) a Oeste e o Bacab amarelo (Cauac) a Sul. Em cada um dos quatro pontos cardeais, havia uma ceiba sagrada, a árvore do algodão silvestre, chamada ceiba Imix. Associadas com as cores do mundo e as respectivas deidades, estas árvores ajudavam a sustentar o mundo, e, em cada uma delas, aninhava uma ave com a respectiva cor, como se verifica nos relevos de Palenque e de Piedras Negras. Tal como os astecas, os maias acreditavam que o mundo repousava sobre o tórax de um enorme caimão ou lagarto, o qual flutuava sobre uma vasta laguna. Além disso, os maias acreditavam - tal como os astecas - que existiam nove inframundos, um debaixo do outro, governados pelos nove Senhores da Noite. Dotados de aspectos diabólicos, os nove Senhores da Noite desempenhavam funções importantes nos calendários dos maias e dos astecas. Para os astecas, Mictlantecuhtli, um dos nove Senhores da Noite, era o deus principal do mundo das sombras, que, juntamente com a sua mulher, governava o quinto estrato inferior do mundo. Segundo os astecas, o mundo tinha sido criado cinco vezes e destruído em quatro ocasiões, sendo a época presente a quinta criação: quatro mundos precederam o nosso mundo e cada um deles ruiu em cataclismos no decorrer dos quais a humanidade foi exterminada. São os quatro Sóis, sendo o nosso o quinto Sol. Cada um dos Sóis é designado nos monumentos - como o calendário asteca ou a pedra do Sol - por uma data, a do seu fim, que evoca a natureza do desastre pelo qual terminou. Cada uma das quatro primeiras idades do mundo foi destruída de modo violento: o primeiro Sol, naui-ocelotl (quatro-jaguar), desapareceu num gigantesco massacre, no qual os homens foram devorados pelos jaguares; o segundo Sol, naui-eecatl (quatro-vento), foi destruído por Quetzalcóatl que fez soprar sobre ele uma tempestade mágica, transformando os homens em macacos; o terceiro Sol, naui-quiauitl (quatro-chuva), foi submergido numa chuva de fogo enviada por Tlaloc; e o quarto Sol, naui-atl (quatro-água), terminou num dilúvio que durou 52 anos. Os astecas acreditavam que o quinto Sol - naui-ollin (quatro-tremor de terra) - seria destruído por meio de imensos sismos. As tradições maias relativas ao número de criações e destruições do mundo variam em relação às tradições dos astecas. Alguma fontes indicam que vivemos na quarta idade do mundo, enquanto outras apresentam - em conformidade com o pensamento asteca - o mundo presente como a quinta idade do mundo. Ainda não conhecemos a duração que os maias atribuíam a cada uma destas idades do mundo. Mas sabemos que, para os maias, o caminho sobre o qual o tempo desliza estende-se até um ponto tão distante no passado que a mente humana não é capaz de compreender o seu carácter absolutamente remoto. No entanto, os maias tentaram retomar esse caminho em busca desse ponto inicial, tendo sido conduzidos a um período muito distante na insondável eternidade do passado. Uma inscrição maia remonta o cálculo a 90 000 000 de anos, e outra vai até 400 000 000 de anos. Ora, estes cálculos devem ter levado os maias a pensar que o tempo não teve princípio ou começo. Os maias interessavam-se mais pelo passado do que pelo futuro (uns escassos quatro milénios!), uma vez que, para eles, a história se repetia sempre que os influxos divinos voltavam a estar em equilíbrio. Tal como os astecas, os maias acreditavam que o mundo estava condenado a um fim repentino, devido provavelmente a uma combinação de influxos malignos. Por isso, os sacerdotes maias tentaram esquadrinhar o passado em busca dessa maléfica combinação de influxos que marcaria o fim de um período, não o fim do mundo tout court. Porém, como essa combinação não tinha destruído o mundo no passado, tão-pouco poderia destruí-lo agora. A concepção da história como repetição levou os maias a confundir o passado com o futuro e a introduzir a noção de ciclos de tempo que entrava em contradição com o seu conceito de tempo como uma marcha interminável dos seus carregadores divinos em direcção a um futuro tão eterno quanto o passado. Ora, a concepção sacerdotal da eternidade do tempo - a estrada ao longo da qual os carregadores divinos se revezavam não tinha princípio nem fim! - levada ao seu extremo entra em choque com a crença popular das criações e destruições do mundo. O tempo-caminho e o tempo-roda são duas concepções do mundo diametralmente opostas.

Panteão Maia. A religião maia desenvolveu-se e ramificou-se ao longo da história social dos maias. Do simples animismo dos distantes tempos pré-agrícolas em que todas as forças naturais deificadas eram adoradas com a intervenção mínima do feiticeiro, a religião maia converteu-se mais tarde num politeísmo ultra-complexo, que abrangia não só as forças elementares da natureza mas também os seres humanos, os animais e os vegetais, os astros e os fenómenos celestes, ou mesmo conceitos abstractos como por exemplo as divisões do tempo. Diz-se frequentemente que o politeísmo maia era mais limitado do que o politeísmo asteca, mas não partilho esta opinião, na medida em que os maias adoptaram muitos deuses estrangeiros sem ter chegado a fazer uma sistematização teológica completa do seu panteão sagrado, tal como a que foi realizada nos mosteiros pelos sacerdotes astecas, cujo pensamento teológico se exprimia por meio de manuscritos como o Borgias. No entanto, as suas categorias permitem realizar essa sistematização, tendo em conta as seis características fundamentais da religião maia identificadas por Eric S. Thompson. Em primeiro lugar, os deuses da chuva e da terra têm uma origem relacionada com répteis: traços de serpentes e de caimães combinam-se e misturam-se na sua representação, podendo aparecer combinados algumas vezes com traços humanos. Na arte maia, os deuses com forma puramente humana são muito raros. Em segundo lugar, a religião maia tende a destacar a quadruplicidade dos seus inúmeros deuses, ao mesmo tempo que os associa com as direcções e cores do mundo, deixando adivinhar a existência mística dos quatro num só. Em terceiro lugar, a religião maia destaca a dualidade de aspectos: os deuses podem ser tanto benevolentes como maléficos, podem mudar de sexo e até podem ser classificados em função da idade através da repartição de funções entre uma deidade jovem e uma deidade velha. A arte maia representa a malevolência pela adição de alguma insígnia da morte. Assim, por exemplo, Itzamná, senhor dos céus, do dia e da noite, Chaac, deus da chuva, e Yum Kax, senhor dos bosques e dos campos, eram deidades benévolas associadas ao Sol e à Lua que asseguravam as colheitas, enquanto Ah Puch, a morte, representada por um corpo descarnado ou com sinais de decomposição, era uma deidade maléfica, sendo acompanhada pelo cão, pela coruja ou pela ave mitológica Moan, todos eles de mau agoiro. Em quarto lugar, os deuses são ordenados de modo quase indiferenciado em grandes categorias: um deus pode pertencer a duas categorias diametralmente opostas, como sucede com o Sol que é tanto um deus celeste como um deus do inframundo. Em quinto lugar, a religião maia dá grande importância aos deuses relacionados com os períodos de tempo: os números, os 20 dias de cada mês, os 19 meses do ano, os 13 katunes (períodos de 20 anos) e outros períodos cronológicos são considerados pelos sacerdotes como deuses. E, finalmente, em sexto lugar, há na religião maia algumas incompatibilidades e duplicações de funções devidas à imposição de conceitos de ordem superior, forjados pela hierarquia sacerdotal, sobre o mundo simples dos deuses da natureza adorados pelos maias mais antigos e, sobretudo, pela plebe formada por camponeses. A multiplicidade de deuses implicava relações e interferências de tal modo complexas que uma deidade podia ser dotada de vários aspectos e várias deidades podiam relacionar-se com um só conceito. Ora, a existência de deidades benéficas e maléficas, e inclusive de caracteres favoráveis e contrários numa mesma deidade, revela o dualismo que caracterizava a religião mesoamericana: os seus conceitos de bem e de mal deificados e em luta perpétua. As forças da natureza deificadas lutavam entre si, umas aliadas e outras inimigas do homem, e o resultado deste antagonismo sacral era o destino do homem. Este dualismo encontra-se desde logo no núcleo originário da religião asteca, o seu mito da criação: o culto de um casal primordial Ometecuhtli, "o senhor da Dualidade", e Omeciuatl, "a senhora da Dualidade", ou Tonacatecuhtli (Senhor da Subsistência) e Tonacacihuatl (Senhora da Subsistência) -, responsável pelo nascimento de quatrocentos deuses e de todos os homens. Eis agora uma tentativa de sistematização do panteão maia:
  1. Deuses celestes. O Sol e a Lua eram os deuses mais importantes desta categoria, tendo sido alvo de um ciclo de lendas. Segundo uma dessas lendas, o Sol e a Lua foram os primeiros habitantes do mundo que, depois desta passagem pelo mundo, se mudaram para a morada celestial. O Sol era o patrono da música e da poesia e, ao mesmo tempo, um caçador célebre, ao passo que a Lua era a deusa do tecido e dos nascimentos. Além disso, o Sol e a Lua foram os primeiros seres que coabitaram, mas a Lua, devido à sua infidelidade conjugal, conquistou a reputação de ser de tal modo ligeira e fácil (aluada) que o seu nome se tornou sinónimo de libertinagem sexual. As flores da árvore de plumiera que constituíam o símbolo do acto carnal ficaram associadas tanto ao Sol como à Lua, tendo esta última adquirido também o estatuto de deusa do milho, da terra e de todos os seus frutos. Depois desta coabitação terrestre, o Sol e a Lua foram viver para a morada celestial: a palidez da luz da Lua - em contraste com o brilho da luz solar - deve-se ao facto do Sol ter sacado um dos olhos da Lua. Embora os sacerdotes não partilhassem esta crença popular, os plebeus maias explicavam os eclipses através das brigas entre estes dois deuses celestes, detentores de títulos honoríficos tais como Senhor e Senhora ou Nosso Pai e Nossa Mãe ou ainda Nosso Avô e Nossa Avó. Outra deidade relevante dentro do panteão hierárquico era Itzamná, que, apesar desta sua importância hierárquica, nunca conquistou um número significativo de devotos plebeus. Existiam quatro Itzamnás, cada um deles atribuído a uma das quatro direcções e cores do mundo. É provável que os quatro Itzamnás fossem os quatro monstros celestiais, geralmente representados como lagartos ou caimães de duas cabeças e algumas vezes como serpentes monocéfalas ou bicéfalas. O Códice de Dresden descreve os quatro monstros celestiais - os Chicchanes - como sendo metade humanos e metade ofídios, associando-os às quatro direcções e cores do mundo. As suas manifestações terrestres apresentam-nos como deidades da chuva e das colheitas e alimentos, o que nos leva a pensar que eram meras variantes dos Chaques. O céu era também habitado pelas deidades ligadas aos planetas e pelos Chaques. O deus Vénus e o deus da Estrela Polar, Xaman Ek, desempenham um papel crucial nos registos hieroglifícos maias e os Chaques mais não eram do que deuses da chuva, dotados de atributos de serpente. Fossem ou não manifestações dos Itzamnás, os Chaques podem ter sido elementos de uma religião mais antiga que sobreviveu entre os camponeses, rivalizando com os Itzamnás promovidos pela hierarquia sacerdotal. Também existiam quatro Chaques, cada um deles situado num dos quatro cantos do mundo: os plebeus maias acreditavam que eles enviavam a chuva mediante a aspersão da água que tiravam das cabaças que levavam consigo. Ora, se as cabaças fossem esvaziadas de uma só vez, o mundo ficaria submerso numa gigantesca inundação: o transporte das cabaças valeu-lhes o nome de (deuses) regadores. Além da chuva, os Chaques produziam os relâmpagos, lançando machados de pedra sobre a terra de modo a produzir raios. Algumas vezes representados como sendo de estatura gigantesca, os Chaques tinham como assistentes e músicos as pequenas rãs, chamadas uo, cujos sons emitidos anunciavam a chuva. Finalmente, Kukulcán, o nome dado a Quetzalcóatl em Yucatán, era o deus tutelar dos invasores mexicanos, que, sendo uma deidade estrangeira tardia, nunca desempenhou um papel relevante no panteão maia.
  2. Deuses da Terra. Os deuses da superfície da Terra eram responsáveis pela produção das colheitas. É provável que tenham existido sete deidades associadas à Terra, tal como havia treze deuses celestes e nove deuses do mundo subterrâneo. Os deuses da vegetação em geral e do milho em particular e os deuses do solo ocupavam um lugar de destaque: os deuses do solo estavam associados com as montanhas, as fontes, as confluências dos rios e outras manifestações da natureza. Os diversos produtos da terra tinham os seus próprios deuses, mas de todos eles o mais importante era o deus do milho, o deus de toda a vegetação, representado como um ser pleno de juventude e, frequentemente, com o milho a emergir da sua cabeça. O deus jaguar era um deus tanto da superfície da Terra como do seu interior e correspondia ao Tepeyóllotl dos astecas. Durante os cinco nefastos dias - dias sem nome - que ficavam no final do ano, os maias reverenciavam a estranha figura em forma de espantalho - Mam - que, depois disso, era lançada ao solo e depreciada até que voltasse novamente o fim do ano. Todos estes deuses da Terra partilhavam alguns atributos, entre os quais o lírio aquático, as conchas e outros símbolos relacionados com a água, assim como os atributos da morte.
  3. Deuses do inframundo. A noção cristã de salvação era absolutamente estranha à concepção religiosa asteca: a dignidade do homem residia na submissão aos seus deuses e ao seu destino. No calendário divinatório, tanto asteca como maia, o dia do nascimento fixava o destino do indivíduo e permitia prever a sua morte. De acordo com a narrativa de Sahagún, os astecas acreditavam que as almas dos mortos podiam ir para um de três lugares, destinos ou moradas: o céu, o paraíso e o inferno. Os guerreiros que tinham morrido no campo de batalha ou na pedra dos sacrifícios, bem como as mulheres mortas ao darem à luz, iam para o lugar onde vive o Sol: «Estes vivem em prazeres permanentes, bebem e saboreiam o suco das flores saborosas e odoríferas, nunca se sentem tristes nem têm qualquer dor ou desgosto, porque vivem na casa do Sol onde só há riqueza e prazeres... e por isso, todos desejam esta morte, pois os que morrem assim são muito louvados». No céu os guerreiros escoltavam o Sol nascente (Huitzilopcghtli) até ao zénite onde eram rendidos pelas mulheres mortas ao darem à luz. Todas estas almas eram «diferentes espécies de aves com rica plumagem». As pessoas que tinham morrido de diversas doenças, tais como hidropsia, lepra, papeira, cancro e epilepsia, e afogadas nas águas ou tocadas pelos raios iam morar para Tlalocan, o lugar dos pequenos deuses da chuva, chamados Tlaloques, onde «nunca faltam as maçarocas verdes de maís (milho), e as abóboras, e as ervas e as flores». Os mortos que iam para este paraíso terrestre não eram queimados mas enterrados, com a cara coberta de sementes de plantas. Finalmente, as pessoas destituídas de méritos - nobres ou plebeias - iam morar para o compartimento inferior do mundo subterrâneo, Mictlan, o reino infernal governado pelo deus e pela deusa da morte. Estes mortos - cobertos com ornamentações de papel - eram lançados à terra com as seguintes palavras: «Oh filho, eis-te morto, sofreste os trabalhos desta vida, já te levou o deus que se chama Mictlantecuhtli e a deusa Mictalcichuatl... e a tua lembrança não mais voltará». A seguir os sacerdotes encorajavam o morto para a longa viagem que ia fazer, alertando-o para as emboscadas que teria de vencer. Ao fim de vinte e quatro horas, o corpo era queimado e as cinzas recolhidas num pote. No fim do ano a sua morte era comemorada com cerimónias fúnebres que terminavam ao fim de dois, três ou quatro anos, altura em que o morto devia ter concluído a sua viagem. Os vivos já nada tinham a recear. Desconhecemos se estes conceitos astecas tinham o seu paralelo nas crenças maias. Foram identificados os glifos dos nove Senhores da Noite e dos inframundos, cujos nomes ainda não conhecemos: o primeiro desta série é o Sol da Noite, isto é, o deus Sol na sua viagem nocturna desde o Oeste até ao ponto de nascimento a Leste. Além disso, o equivalente maia do Tlalocan asteca parece ser uma morada governada por Cisin, cujo nome implica a ideia de fedor a carne podre, sendo representado como deus da morte. A ideia de uma morada paradisíaca para os guerreiros era estranha aos maias, pelo menos antes de terem sofrido a influência dos cultos guerreiros dos astecas.
  4. Deificação dos períodos de tempo e dos números. O mês maia era constituído por vinte dias e cada um desses dias era considerado como um deus, sendo alvo das orações dos mortais. Os números que acompanhavam os dias também eram deuses, correspondendo provavelmente às 13 deidades celestes, e, do mesmo modo, todos os períodos de tempo eram considerados como deuses. A divinização dos períodos de tempo e dos números pode causar alguma perplexidade nos homens de hoje, mas ela tinha a sua razão de ser entre os maias, preocupados com o fluir do tempo: a Escola Pitagórica também deificou os números e certas relações numéricas e, no entanto, ninguém se escandaliza (Cf. Werner Jaeger). A civilização maia, cujo apogeu ocorreu entre aproximadamente 600 e 990 d.C., dedicou particular atenção ao tempo, tendo elaborado um calendário de considerável complexidade para saber quando os deuses malignos estariam no comando, de modo a fazer o possível para evitar os seus malefícios para a agricultura, abstendo-se de agir em tais ocasiões e tentando apaziguar a sua ira. Esta tarefa foi facilitada pelo desenvolvimento de uma formidável forma de notação dos números: os maias usavam o conceito de valor associado à posição e tinham um símbolo para o zero. A representação dos números de primeira ordem fazia-se mediante pontos com valor da unidade e barras com valor de cinco, tendo o zero um signo especial, uma concha. Os números de ordens superiores escreviam-se com os mesmos elementos, colocados em colunas, valendo cada grupo de signos vinte vezes mais que o grupo imediato inferior. O seu sistema de numeração não era decimal como o nosso, mas vigesimal, estando baseado no número 20. No calendário maia, a unidade era o dia (kin); 20 kines formavam um uinal (um mês) e 18 uinales um tun (um ano incompleto de 360 dias); 20 tunes equivaliam a um katún e 20 katunes a um baktun (ciclo de cerca de 400 anos). Os maias também registavam períodos de maior duração: o pictun (20 baktunes), o calabtun (20 pictunes), o kinchiltun (20 calabtunes) e o alautun (20 kinchiltunes). O mês era constituído por 20 dias, cada um dos quais associado a um presságio específico. O conjunto de 13 meses de 20 dias formava um ciclo de 260 dias, o cerne do almanaque maia. A cada um dos 260 dias do ano sagrado (calendário ritual) estava associado um número de 1 a 13, havendo 20 nomes diferentes para os dias que eram arranjados de tal modo que a mesma combinação de número e nome só se repetia a intervalos de 260 dias.  Além do Ano Sagrado de 260 dias (calendário ritual), havia o Ano Solar de 365 dias (calendário solar), o chamado Ano Vago, composto de 18 meses de 20 dias cada um e cinco dias intercalares que eram considerados nefastos. O calendário sagrado (tzolkin) de 260 dias repetia-se sem interrupção independentemente do calendário solar de 365 dias: ele constituía a base dos horóscopos que regiam todas as actividades da vida dos maias, a começar pelo nascimento. Um ciclo maior que o do Calendário Redondo continha 18 980 dias e correspondia ao período ao fim do qual os ciclos de 260 e 365 dias coincidiam, sendo o número 18 980 o mínimo múltiplo comum de 260 e 365. Ora, este número de anos é igual a 52 Anos Vagos e a 73 Anos Sagrados. Porém, a unidade de tempo mais importante era o katun, que compreendia 20 anos de 360 dias, porque se esperava que os acontecimentos de um katun se aproximassem daqueles de um katun anterior que tivesse terminado num dia associado ao mesmo número. A Conta Longa - ou série inicial, distinta da Conta Curta, em que uma data era registada dentro de um ciclo de cerca de 260 anos - era um elemento fundamental do calendário maia: ela nada mais é do que uma contagem dos dias iniciada num ponto convencional que corresponde no nosso calendário ao dia 10 de Agosto de 3 113 a.C., provavelmente a data da última criação do mundo. A Conta Longa devia ser utilizada para datar acontecimentos históricos e comemorações, em vez de acontecimentos astronómicos: as inscrições maias decifradas revelam dados cronológicos e referências astronómicas e astrológicas, e o registo de datas fixas do calendário sugere o desejo de comemorar a passagem do tempo, registando a data em que um edifício foi dedicado ao culto, data expressa em termos do calendário solar, do calendário lunar e do calendário ritual, com as representações das divindades padroeiras dos diferentes ciclos cronológicos. O Códice de Dresden, um dos três livros maias, inclui um conjunto de tabelas para o planeta Vénus, dotadas de uma enorme precisão. Vénus era identificado com Kukulcan, o equivalente maia de Quetzalcóatl: o primeiro reaparecimento de Vénus como "estrela da manhã" após um período de invisibilidade constituía para os maias um momento particularmente aterrorizante. Com efeito, todos os ciclos maias tinham o seu reinício num único dia do Ano Sagrado de 260 dias: o dia em que Vénus era "1 Ahau". Os maias determinaram quantas revoluções sinódicas seriam necessárias para que Vénus voltasse a reaparecer como "estrela da manhã" no dia "1 Ahau": Se o período sinódico de Vénus fosse de 584 dias, as revoluções requeridas seriam 65, correspondendo a 146 do ciclo de 260 dias, porque o mínimo múltiplo comum de 584 e 260 é 37 960, o que é igual ao produto de 65 e 584 e ao produto de 146 e 260. Os sacerdotes maias sabiam que 584 dias era uma sobre-estimação do período sinódico médio de Vénus, tendo acabado por alcançar uma precisão da ordem de um dia em 5 000 anos. Observando que a revolução da Lua ao redor da terra era mais ou menos de 29 dias e meio, os maias elaboraram um calendário lunar em que as lunações eram calculadas alternativamente em 29 e 30 dias, excepto quando era necessário corrigir o erro acumulado pela interpolação de um mês extra de 30 dias. Ora, ao registar uma determinada data nestes calendários, os maias obtinham uma fórmula cronológica de uma precisão absoluta: o manuseamento dos calendários por parte dos sacerdotes permitiam-lhes realizar predições para todos os aspectos da vida colectiva e individual, atribuindo o seu destino à influência das deidades que regiam os períodos cronológicos e os próprios números. A posse da chave do tempo constituía o instrumento mais poderoso de domínio da classe sacerdotal numa sociedade dirigida por uma teocracia. A vida dos maias dependia da interpretação que os sacerdotes faziam da passagem do tempo. Ora, a passagem do tempo fascinou de tal modo os sacerdotes maias que os levou a elaborar uma verdadeira filosofia do tempo, na qual a eternidade do tempo contrastava com a insignificância infinitesimal do homem. Trata-se de uma filosofia fatalista que ainda não foi pensada com o rigor que merece.
  5. Outros deuses. Além dos deuses celestes, da superfície da Terra e do inframundo, havia outros deuses, cujo lugar é difícil de determinar. No decurso da época da conquista espanhola, os maias veneravam diversos deuses responsáveis pelas actividades comerciais ou mesmo pelas tatuagens. Ek Chuah era o nome dado ao deus dos mercadores e dos viajantes, o qual também era considerado como uma deidade guerreira. A deusa Ixchel conectava a Lua, o parto, a medicina, o arco-íris e as inundações, enquanto a deusa Ixtab era a padroeira dos suicidas por afogamento, cujas almas iam para o lugar do Sol. Estes deuses deviam ser meras manifestações de aspectos especializados de deuses com funções de natureza mais geral. Além da deificação dos heróis, tão comum no século XVI em Yukatán, os maias veneraram durante o Período Clássico algumas deidades de origem animal, como por exemplo o morcego, o cão, os pássaros mitológicos Moan e os mochos, atribuindo-lhes a missão de enviar a chuva à humanidade. O deus do machado ou cutelo de obsidiana também era venerado no Período Clássico. Esta diversidade de deuses deixa supor uma vontade superior pré-existente: os maias, pelo menos os de Yucatán, reconheciam a existência de um ser supremo, um deus vivo, verdadeiro e criador, que, sendo o maior dos deuses, não tinha figura nem podia ser representado por ser incorpóreo e invisível. Chamavam-lhe Hunab Ku e faziam proceder dele todas as coisas do mundo, mas não lhe prestavam culto, não só por ser invisível, mas também por estar muito distante dos assuntos humanos. Esta crença num deus superior aponta na direcção do monoteísmo, tendência que se encontra também entre os astecas. Tanto na zona de Chiapas como em Yucatán, as comunidades maias prestavam culto aos seus antepassados, isto é, aos fundadores das suas linhagens. Ora, o culto dos antepassados remonta aos tempos primordiais em que a organização em clãs tinha sido muito mais forte entre os maias do que na época da conquista espanhola. No nível mais tardio de Mayapán, foram descobertos oratórios familiares - altares - nas casas dos grandes senhores, onde queimavam incenso, que abonam a favor da persistência secular desta prática de deificar os antepassados. Infelizmente, não possuímos informação suficiente para comparar o culto maia dos antepassados com o mesmo culto praticado pelos gregos e pelos romanos, tal como foi analisado por Fustel de Coulanges: o que podemos dizer é que este culto era, provavelmente, o resultado da influência dos mexicanos, na medida em que o deus mais conhecido das linhagens, Zacalpuc, foi uma deidade invasora asteca. Os espanhóis descobriram em toda a Mesoamérica, incluindo a região maia, a adoração do deus Xipe Tótec, o terrível deus coberto com a pele humana de um esfolado e usando uma máscara de pele humana, cuja origem os astecas atribuíam aos tlapanecas, um pequeno grupo que habitava a costa do Pacífico, no estado de Guerrero. Era um deus da vegetação e os seus ritos em torno do esfolamento eram partilhados pela deusa do solo. Em toda a área dos maias, as grutas eram usadas como ossários e para a celebração de ritos religiosos, no decurso dos quais os maias utilizavam a chamada "água virgem", isto é, água não contaminada. Os maias acreditavam que, quanto mais inacessíveis fossem as grutas, maior seria a pureza das suas águas subterrâneas. Nas proximidades de Chichén Itzá, descobriram-se galerias de grutas subterrâneas, chamadas Balankanché, consagradas ao culto das deidades astecas da chuva, os Tlaloques, bem como a Xipe Tótec.
O deus do Milho e os mitos da Criação. Os freis espanhóis nunca compreenderam o carácter sagrado do milho e, por isso, os índios sujeitos à sua colonização mental tinham o cuidado de esconder deles que o milho era, efectivamente, um deus, o presente supremo oferecido pelos deuses aos homens. Além de ser a base económica da civilização maia, o milho constituía o núcleo central da sua adoração religiosa: todos os maias que cultivavam a terra erigiam no seu próprio coração um templo para venerá-lo. Sem este templo interior, os maias não teriam construído as pirâmides e os templos que tanto fascinavam as suas hierarquias clerical e civil: as pirâmides e os templos mais não eram - pelo menos para os camponeses que trabalhavam a terra - do que construções dedicadas à conciliação dos deuses do céu e da terra, de modo a proteger e a garantir a fertilidade dos seus campos de milho. Os maias comiam milho durante todo o ano e ano após ano: uma má colheita de milho implicava uma espécie de catástrofe. O milho era um aliado do homem na sua guerra perpétua contra os caprichos do clima, as pestes dos trópicos e a vegetação demasiado exuberante: a sobrevivência do milho garantia a sobrevivência do homem e dos seus filhos. Mas foram precisos muitos esforços para que os homens recebessem dos deuses este cereal sagrado. Uma lenda maia conta-nos a história do milho: O milho estava inicialmente escondido debaixo de uma montanha rochosa, tendo sido descoberto por um exército de formigas em marcha que escavaram um túnel até ao lugar secreto do milho. Quando as formigas começaram a transportar grãos de milho, a curiosa raposa viu-as e resolveu provar alguns desses grãos. Logo a seguir os outros animais e os homens tomaram conhecimento do novo alimento guardado num lugar onde só as formigas podiam entrar. Os homens pediram aos deuses da chuva que os ajudassem a ter acesso ao lugar: três deuses da chuva tentaram quebrar em pedaços a rocha através dos seus raios. Após o seu fracasso, os homens conseguiram persuadir o principal deus da chuva, o mais velho, a pôr à prova o seu poder. Embora tenha negado diversas vezes a sua ajuda, ele acabou por enviar o pássaro carpinteiro para descobrir o sítio mais débil da rocha através dos golpes do seu forte bico sobre a superfície da grande rocha. Uma vez descoberto o ponto susceptível de ruptura, o deus aconselhou o pássaro a proteger-se enquanto lançava o seu mais poderoso raio contra o ponto escolhido: a grande rocha quebrou-se em fragmentos. Desobedecendo às ordens do deus, o pássaro espreitou o disparo divino e foi atingido na cabeça por um pedaço de pedra: o sangramento abundante resultante desse ferimento é desde então responsável pela cor vermelha da sua cabeça. O disparo de fogo foi de tal modo potente que grande parte dos grãos de milho, até então de cor branca, ficaram um pouco chamuscados: algumas maçarocas ficaram ligeiramente queimadas, outras perderam a sua cor devido ao fumo e outras não sofreram qualquer dano, o que explica as quatro classes de milho: milho negro, milho avermelhado, milho amarelo e milho branco. O Libro de Chilam Balam de Chumayel utiliza uma linguagem poética quando diz que o milho - oculto dentro da pedra - assumiu a sua divindade no momento em que saiu da noite para a luz, identificando a pedra como sendo o jade, cuja cor verde simboliza a espiga de milho antes de amadurecer. O extenso relato deste Libro ilustra com precisão o tratamento reverencial que os maias dispensavam a esta fonte primordial do sustento diário: o milho. A mentalidade dos maias revela-se na sua atitude em relação à terra e aos seus frutos, e os seus rituais - o conjunto de cerimónias em torno do cultivo dos campos agrícolas - mostram como a sua religião era um produto subsidiário do sistema agrícola. Popol Vuh, a epopeia dos quichés, oferece-nos a versão mais completa do mito maia da criação. O carácter agrário da religião maia transparece claramente nas crenças cosmogónicas. Embora o relato só fale de três criações, pensamos que os maias acreditavam que o mundo tinha sido criado quatro ou cinco vezes. Três humanidades sucessivas foram criadas pelos deuses, logo após terem criado a terra, os bosques, as águas e os animais. No princípio, era apenas a água. Depois os deuses exclamaram "terra" e a terra apareceu, sendo a seguir coberta de árvores. Os deuses criadores fixaram o curso dos rios e povoaram a terra de animais, atribuindo a cada espécie o seu próprio habitat. Porém, como careciam do dom da palavra, os animais não eram capazes de louvar os seus criadores e de lhes dirigir súplicas. Por isso, os deuses resolveram criar uma espécie superior de animais. A primeira humanidade foi feita de barro. É certo que os homens de barro sabiam falar, mas, dada a sua imperfeição - eles dissolviam-se com a acção da água! - e a sua fragilidade, não corresponderam aos propósitos dos deuses: o facto dos primeiros homens não prestarem homenagem aos deuses levou-os - aos últimos - a recorrer à inundação para os destruir. A segunda humanidade foi feita de madeira: os homens de madeira falavam, comiam e reproduziam-se, mas as suas caras não tinham expressão facial e os seus corpos feitos de madeira eram secos. Eram criaturas dotadas de inteligência limitada e ingratas em relação aos seus criadores, sem sangue e sem coração, e de cor amarela. Desiludidos com estas criaturas de rosto endurecido, os deuses deram-lhes o mesmo destino da primeira humanidade: uma inundação destruiu os segundos homens, e os que conseguiram escapar à destruição, refugiando-se nas árvores, tiveram como descendentes os macacos. Finalmente, os deuses resolveram fazer uma nova humanidade, usando como matéria-prima a massa do milho amarelo e branco, precisamente daquele milho que tinha sido descoberto debaixo da montanha rochosa. Deste modo, surgiram os quatro primeiros homens capazes de servir os deuses. Eles foram de tal modo afortunados que podiam contemplar a maior parte da terra. Mas os deuses não desejavam que os homens fossem seus iguais, e, por isso, cobriram os seus olhos com uma espécie de neblina, de modo a limitar a sua visão. Depois criaram as mulheres para estes quatro primeiros homens. Logo a seguir chegou a aurora e surgiram a estrela da manhã e o Sol. Os homens de milho começaram a adorar os seus criadores, tendo sido os pais dos quichés, dos cakchiqueles e de outros povos maias das terras altas. Este mito mostra que o milho era mais do que a planta vital dos maias:o milho era a própria carne dos maias. Porém, convém ter em conta que, nos mitos da criação da Mesoamérica, o ponto culminante não é o aparecimento do homem, mas sim o momento da aurora: o homem não era - para os maias - uma criatura muito diferente dos restantes seres vivos, sendo visto no contexto geral da criação.

Bibliografia sumária:

  • Barrera Vásquez, Alfredo (1948). El Libro de los Libros de Chilam Balam. México: Fondo de Cultura Económica.
  • Códices Mayas (1930). Edição J. Antonio e Carlos A. Villacorta. Guatemala.
  • Landa, Diego de (1959). Relación de las cosas de Yucatán. México: Porrúa.
  • Memorial de Sololá, o Anales de los Cakchiqueles (1950). México: Fondo de Cultura Económica.
  • Popol Vuh, Las Antiguas Historias del Quiché (1947). México: Fondo de Cultura Económica.

J Francisco Saraiva de Sousa

8 comentários:

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

O governo talibã de Passos Coelho quer proibir os fumadores de fumar à entrada dos restaurantes. É provável que a mais nova loja maçónica tenha estranhos negócios com o mundo da droga: proíbe-se o tabaco para incentivar o consumo livre de narcóticos. Vivemos num país de loucos maçons! Os portugueses são muito frouxos - não prestam e são bois mansos.

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Por momentos, pensei reabilitar as pirâmides americanas para sacrificar os portugueses, arrancando-lhes o coração. Mas depois compreendi que os deuses têm nojo do sangue dos portugueses-bois-mansos. O melhor será metê-los numa nave e enviá-los para o espaço frio. Portugal é o descrédito total.

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Bem, agora redescobri as tentativas indígenas de dar ordem ao seu panteão sagrado: uma dos astecas, muito interessante, e outras dos maias.

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Bem, agora o meu impulso seria dar início a um texto sobre a religião asteca, que de certo modo pressuponho aqui conhecida. Mas vou resistir a essa tentação e tentar introduzir neste texto sobre os maias conceitos mais complexos. Vou dormir a pensar no modo de fazê-lo sem tornar o texto demasiado pesado.

Ah, sou sempre consequente comigo mesmo: há uma decisão metodológica, a de desprezar alguns - poucos - estudos recentes que reflectem a decadência mundial do ensino universitário. Prefiro entregar-me às fontes originárias e tentar tornar inteligível o que delas transpira. Não gostam aqui em Portugal que diga que sou auto-suficiente, mas a verdade é que aprendi a sê-lo desde o berço num mundo condenado ao nada! :)

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Já agora enuncio o meu pensamento de fundo: Vejo as culturas pré-colombianas como imensas superstruturas construídas sobre uma base económica precária. As grandes civilizações pré-colombianas tinham pés de barro: a cultura maia não precisou da conquista para entrar em eclipse. Ela pura e simplesmente eclipsou sob o peso das suas contradições internas. As invasões mexicanas do Norte aceleraram provavelmente o eclipse, mas não foram determinantes. As classes dominantes tornaram-se de tal modo dispendiosas que a massa de camponeses teve de revoltar-se e abandonar as cidades. Cada uma das cidades maias deve ter sido palco de revoltas camponesas: o desfecho foi o seu abandono.

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Para escrever um texto desta natureza tenho de mobilizar tantos livros e artigos que fico estafado e entrópico. :)

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Já falta pouco para concluir. Acho que vou escrever sobre a religião inca antes do texto sobre a religião asteca. Estou a prever um estudo da religião banto. :)

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Está finalmente concluído! :)