Capa do livro de Ricardo Jorge (1899) |
«Cito Marx sem dizê-lo, sem colocar aspas, e, como eles não são capazes de reconhecer os textos de Marx, passo por ser aquele que não cita Marx. Será que um físico, quando faz física, experimenta a necessidade de citar Newton ou Einstein? Ele utiliza-os, mas não tem necessidade de aspas, de nota de rodapé ou de aprovação elogiosa que prove a que ponto ele é fiel ao pensamento do Mestre. E como os demais físicos sabem o que fez Einstein, o que ele inventou e demonstrou, reconhecem imediatamente (a sua presença). É impossível fazer história actualmente sem utilizar uma sequência infindável de conceitos ligados directa ou indirectamente ao pensamento de Marx e sem se colocar num horizonte descrito e definido por Marx. Em última análise, poder-se-ia perguntar que diferença poderia haver entre ser historiador e ser marxista.» (Michel Foucault)
Ricardo Jorge (1858-1939) formou-se em Medicina na Escola Médico-Cirúrgica do Porto em 1879, tendo apresentado uma dissertação sobre O Nervosismo no Passado, onde esboçou a história da neurologia. Em 1880, após ter defendido a sua dissertação do concurso para professor - Localizações Motrizes do Cérebro, assumiu a docência das cadeiras de Anatomia, Histologia e Fisiologia Experimental, mas o seu interesse inicial pelo saber neurológico levou-o a viajar pela Europa: Ricardo Jorge deslocou-se frequentemente a Estrasburgo e a Paris, onde assistiu às lições de Jean-Martin Charcot (1825-1893) e visitou os hospitais locais. Porém, em 1884, trocou a neurologia pela Saúde Pública: a sua obra Higiene Social Aplicada à Nação Portuguesa (1884) inaugurou uma nova abordagem da saúde pública em Portugal: «Cada vez mais insalubre, a cidade não tem nas condições devidas nem água, nem esgotos, esses dois elementos imprescindíveis de limpeza, que a experiência tem demonstrado reduzirem a cifra da mortalidade geral. O hospital é um antro infecto, onde se amontoam doentes fora de todos os limites da tolerância e num desprezo repugnante das leis mais comezinhas da boa higiene. As classes pobres, o mundo dos proletários, vegetam ancoradas nuns alvéolos húmidos e lôbrengos, sem ar e sem luz, e abandonadas a uma especulação torpe que tão sordidamente as explora com a miserável edificação das ilhas. Há a desfiar um estendal de misérias e vergonhas, de males e de incúrias. É forçoso lavrar um protesto contra tanto desleixo, contra tanta inépcia, contra tanta loucura criminosa» (Ricardo Jorge). Ao abraçar a causa da higiene, Ricardo Jorge estava perfeitamente convicto de que à medicina cabe um papel supremo na direcção mental e social: «Venha à medicina o primado, como o sonhara o espírito eminente de Augusto Comte, projectando-a ao ápice do seu sistema de hierarquia sociológica; porque só ela conhece o homem em corpo e espírito, nas suas imperfeições e nos seus vícios, nas suas misérias e fraquezas; porque só ela pela higiene, o mais florão da sua coroa, pode promover o bem-estar físico e moral, a evolução meliorista da actividade somática e intelectual» (Ricardo Jorge). Entre 1891 e 1899, Ricardo Jorge foi médico municipal do Porto, levando a cabo o seu saneamento (O Saneamento do Porto,1888), de modo a garantir o fornecimento de água pura, captada e canalizada, e a prática da desinfecção e do saneamento, e responsável pelo Laboratório Municipal de Bacteriologia, e, em 1895, tornou-se professor titular da cadeira de Higiene e Medicina Legal na Escola Médico-Cirúrgica do Porto. A sua consagração nacional e internacional como higienista e investigador ocorreu quando chegou à prova clínica e epidemiológica da peste bubónica - depois confirmada bacteriologicamente por ele próprio e Câmara Pereira - que assolou a cidade do Porto em 1899. Ora, para erradicar a peste no Porto, Ricardo Jorge iniciou operações profiláticas, como, por exemplo, a evacuação de casas e o isolamento e desinfecção de domicílios, que desencadearam a fúria popular. Infelizmente, a saúde pública no Porto - oitocentista e novecentista - ainda não foi historiada. A obra seminal de Ricardo Jorge já pertence à era bacteriológica da Saúde Pública, inaugurada pelas descobertas científicas de Louis Pasteur (1822-1895) e Robert Koch (1843-1910), entre outros: o que quer dizer que a sua fórmula de medicina social retoma o modelo inglês que ligou - entre si - a assistência aos pobres, o controle da saúde da força de trabalho e o esquadrinhamento geral da saúde pública, de modo a proteger as classes mais ricas dos perigos gerais. O conhecimento de que "criaturas microscópicas" - e não vagos miasmas químicos (T. Sydenham, 1624-1689) - causavam as doenças contagiosas implicou a ampliação dos horizontes da Saúde Pública e da reforma sanitária: tornou-se possível proteger a comunidade contra as doenças transmissíveis, prolongando a vida dos seus membros, e operar o saneamento do ambiente. As medidas profiláticas tomadas por Ricardo Jorge para erradicar a peste bubónica no Porto desencadearam revoltas populares que, incentivadas por forças políticas, o obrigaram a abandonar a cidade e a ir para Lisboa, onde foi nomeado Inspector-Geral de Saúde em 1899, e retomou a sua actividade docente na Escola Médico-Cirúrgica de Lisboa. Da sua imensa actividade merece especial destaque a organização da luta contra a pandemia de gripe de 1918 - Pneumónica ou Gripe Espanhola - e contra as epidemias de tifo, varíola e difteria que surgiram como consequência das deficientes condições sanitárias do período pós-guerra.
Privados de uma história da Saúde Pública no Porto Oitocentista, não podemos reconstituir os episódios de fúria popular dirigida contra a figura de Ricardo Jorge, de modo a explicitar a forma de medicina social introduzida na cidade do Porto. Apesar disso, a referência à obra pioneira de Ricardo Jorge permite-nos abordar o nascimento da medicina social na Europa, tal como foi formulado por Michel Foucault, sendo no entanto movidos por uma preocupação política. O pensamento de Esquerda (Walter Benevides et al., 1974) tende a opor a medicina social à medicina individual, como se a socialização da medicina fosse uma conquista das classes trabalhadoras, em nome do Direito à Saúde garantido pelo Estado. Nesta perspectiva, a medicina socializada é uma medicina de Estado. Não admira que Leo Huberman e Paul Sweezy (1970) tenham recorrido ao modelo cubano de planificação da saúde pública para mostrar as virtudes da medicina socializada sob o regime socialista: «Uma única vida humana tem mais valor que todo o ouro do homem mais rico do mundo» (Che Guevara). Os estudos de Michel Foucault sobre o nascimento da medicina social introduziram alguma inquietude nesta maneira de conceptualizar a saúde, na medida em que defende a hipótese de que, «com o capitalismo não se deu a passagem de uma medicina colectiva para uma medicina privada, mas precisamente o contrário»: Desenvolvendo-se nos finais do século XVIII e início do século XIX, o capitalismo «socializou um primeiro objecto que foi o corpo enquanto força de produção, força de trabalho. O controle da sociedade sobre os indivíduos não se opera simplesmente pela consciência e pela ideologia, mas começa no corpo, com o corpo. Foi no biológico, no somático, no corporal que, antes de tudo, investiu a sociedade capitalista. O corpo é uma realidade bio-política. A medicina é uma estratégia bio-política» (Michel Foucault): o que quer dizer que a medicina moderna que nasceu no final do século XVIII entre Morgagni (1682-1771) e X. Bichat (1771-1802), graças ao aparecimento da anatomia comparada, é uma medicina social fundada sobre uma determinada tecnologia do corpo social: «E nesta nova imagem - a do tacto - que se dá de si mesma, a experiência clínica arma-se para explorar um novo espaço: o espaço tangível do corpo, que é ao mesmo tempo esta massa opaca em que se ocultam os segredos, invisíveis lesões e o próprio mistério das origens. E a medicina dos sintomas, pouco a pouco, entrará em regressão, para se dissipar diante da medicina dos órgãos, do foco e das causas, diante de uma clínica inteiramente ordenada pela anatomia patológica. É a idade de Bichat» (Michel Foucault). A hipótese de Michel Foucault é tributária de duas grandes obras: a de Victor Bullough sobre a medicina na Idade Média, e a de George Rosen sobre a história da saúde pública. Entrando numa polémica deslocada e desnecessária com Marx, Michel Foucault distingue três etapas na formação da medicina social: a medicina de Estado, que se desenvolveu na Alemanha no começo do século XVIII, a medicina urbana, que apareceu em França nos finais do século XVIII, e, finalmente, a medicina dos pobres e da força de trabalho, que emergiu em Inglaterra no segundo terço do século XIX. Michel Foucault é peremptório quando afirma que, embora o corpo tenha sido investido política e socialmente, o poder médico não começou por o atingir enquanto força de trabalho: «A medicina dos pobres, da força de trabalho, do operário, não foi o primeiro alvo da medicina social, mas o último. Em primeiro lugar, o Estado, em seguida a cidade e, finalmente, os pobres e trabalhadores foram objectos de medicalização» (Michel Foucault). (:::/:::)
1. Medicina de Estado. Marx, o cérebro mais filosófico da Alemanha, lamentou o atraso económico do seu país, sem no entanto lhe ter negado o mérito de ter produzido uma Staatswissenschaft, uma ciência do Estado, de resto bem explicitada por Hegel na sua Filosofia do Direito. (:::)
2. Medicina Urbana. A medicina social que surgiu em França nos finais do século XVIII não tinha como suporte a estrutura do Estado, mas o fenómeno da urbanização.
3. Medicina da Força de Trabalho. Devido ao atraso nacional, Ricardo Jorge foi obrigado a trabalhar em duas frentes: o saneamento da cidade do Porto e o controle da população pobre, mas a sua obra sobre Higiene Social está mais próxima do modelo inglês (medicina dos pobres e dos trabalhadores) do que do modelo francês (medicina da cidade), repleta como está de brilhantes páginas de denúncia humanitária que nos fazem lembrar as que foram escritas por Marx e, sobretudo, por Engels. No decorrer do século XVIII, os pobres não foram problematizados como fonte de perigo médico. Michel Foucault destaca três razões para explicar a problematização médica dos pobres no segundo terço do século XIX: as grandes agitações sociais do começo do século XIX mostraram que os pobres já eram uma força política capaz de participar activamente na revolta contra o sistema (1). E esta nova força política evidenciou-se quando os serviços prestados pela população pobre foram substituídos pelo sistema postal e pelo sistema de carregadores (2): o povo pobre revoltou-se contra estes sistemas que lhe retiravam o pão e a possibilidade de viver. Finalmente, uma outra razão foi a cólera de 1832 que começou em Paris, propagando-se a toda a Europa (3): a cólera desencadeou uma série de medos políticos e sanitários em relação à população pobre, levando à divisão do espaço urbano em espaços pobres e espaços ricos.
Em construção. J Francisco Saraiva de Sousa
2 comentários:
Já devem ter reparado que, depois de o ter criticado, resolvi dialogar com Michel Foucault! Sim, trata-se de um ajustamento...
Depois do Natal termino este estudo.
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