quarta-feira, 4 de abril de 2012

A Emergência da Esfera Pública Portuguesa e Ultramarina

Porto: Edifício A Nacional (Marques da Silva)
... Notas para uma pesquisa.

Um acontecimento portuense possibilitou a emergência da esfera pública em Portugal e nas colónias ultramarinas portuguesas: a revolução liberal de 1820, que estalou no Porto no dia 24 de Agosto, dando origem à formação da Junta do Porto, composta por mais de 30 indivíduos entre militares, magistrados, desembargadores, oficiais de milícias e membros da aristocracia de província, e liderada por Fernandes Tomás, Silva Carvalho, Lobo Moura e José Ferreira Borges, todos homens de leis que tinham fundado o Sinédrio. O conceito de esfera pública, forjado por Jürgen Habermas, é um conceito polémico, no sentido de não estar completamente delimitado e definido, de modo a poder ser aplicado sem percalços ao estudo da modernização reflexiva dos países ocidentais. Terry Eagleton e John B. Thompson apontaram algumas falhas ou limitações do conceito de esfera pública, tal como o elaborou Habermas, mas nenhum deles abdicou do próprio conceito, o que demonstra a sua pertinência teórica para compreender a formação das sociedades modernas, na sua articulação dialéctica com o desenvolvimento dos mass media desde o século XVIII até aos nossos dias. Na sua obra inicial Mudança Estrutural da Esfera Pública, Habermas traçou o surgimento e a consequente destruição da esfera pública burguesa, que, como âmbito da comunicação e do debate público, estimulado pelo desenvolvimento da imprensa, criou um fórum de debate público, onde a autoridade do Estado podia ser criticada, questionada e obrigada a justificar-se diante de um público informado e pensante. Como demonstrou Hannah Arendt, a distinção entre o público e o privado data da Grécia Clássica, mas ela assume uma forma nova na Europa dos séculos XVII e XVIII, no contexto do desenvolvimento rápido da economia capitalista e do estabelecimento do Estado Constitucional burguês. A autoridade pública passou a referir-se cada vez mais à actividade relacionada ao Estado que definiu legalmente esferas de jurisdição e que possui o monopólio do uso legítimo da violência. A sociedade civil emergiu como o campo das relações económicas privadas que foram estabelecidas sob a égide da autoridade pública. O campo privado compreende tanto o domínio da expansão das relações económicas como a esfera íntima das relações pessoais que se tornaram cada vez mais desvinculadas da actividade económica e ancoradas na instituição da família conjugal. Ora, entre o domínio da autoridade pública e o domínio privado da sociedade civil e da esfera íntima, emergiu uma nova esfera do público: a esfera pública burguesa que consiste de indivíduos privados que se reúnem em determinados espaços públicos para debater, entre eles e com as autoridades do Estado, sobre a regulação da sociedade civil e a condução do Estado. O meio utilizado para essa confrontação com o poder político estabelecido era o uso público da razão, articulado por indivíduos privados envolvidos e comprometidos numa discussão que era, em princípio, aberta a todos, livre e sem coerção. A esfera pública burguesa desenvolveu-se inicialmente no campo da literatura, para depois, mais tarde, se ligar directamente ao campo da política. No final do século XVII e início do século XVIII, os salões e os cafés de Paris e de Londres transformam-se em centros de discussão e debate, funcionando como lugares públicos onde os indivíduos particulares podiam encontrar-se e discutir assuntos literários e problemas de interesse geral. O surgimento da indústria do jornal facilitou o fomento dessas discussões públicas: as folhas de notícias e os jornais transmitiam inicialmente informações de vários tipos, mas no decurso do século XVIII passaram a expressar cada vez mais pontos de vista políticos. A imprensa tornou-se assim um fórum-chave do debate crítico, de natureza política, alimentando uma discussão e uma crítica permanentes das actividades dos funcionários do Estado. Em Inglaterra, a imprensa desfrutou de maior liberdade do que em outros países europeus, como a França, a Alemanha e Portugal, onde era periodicamente sujeita a censura e a um controle restritivo por parte de funcionários públicos. A liberdade de imprensa e as outras funções críticas da esfera pública - liberdade de opinião e de expressão, liberdade de reunião e de associação, etc. - só foram incorporadas como lei quando se desenvolveu o Estado Constitucional. Em princípio, pelo menos em teoria, a esfera pública burguesa era aberta a todos os indivíduos privados, mas, na prática, estava restrita a um sector limitado da população, porque os critérios efectivos de admissão eram a propriedade privada e a educação. Estes dois critérios tendiam a circunscrever o mesmo grupo de indivíduos, o público leitor burguês do século XVIII, na medida em que a educação era determinada, em grande medida, pelos direitos de propriedade do indivíduo. Em A Questão Judaica, a propósito dos direitos do homem, Marx criticou justamente o carácter de classe subjacente à constituição da esfera pública burguesa. No entanto, apesar de alguns dos seus aspectos serem expressão velada e subtil de interesses de classe, a esfera pública burguesa personificava ideias e princípios que superavam e transcendiam as formas históricas restritas onde ocorria: a esfera pública burguesa teve o mérito de materializar a ideia de uma comunidade de cidadãos, reunindo-se como iguais num fórum que, sendo distinto da autoridade pública do Estado e dos domínios privados da sociedade civil e da esfera íntima, era capaz de formar uma opinião pública, através da discussão crítica, da argumentação racional e do debate público. É nesta sua função crítica que Habermas descobre o princípio crítico da publicidade: as opiniões pessoais dos indivíduos privados transformam-se em opinião pública, através do debate crítico-racional de um público de cidadãos, aberto a todos e livre de dominação.

O fórum da esfera pública burguesa foi completamente minado pelo desenvolvimento do Estado e das organizações comerciais em grande escala, sobretudo daquelas ligadas à comunicação de massas, no decorrer dos séculos XIX e XX: a esfera pública emergente foi de tal modo transformada que o seu potencial crítico foi diminuído ou mesmo empurrado para a clandestinidade. Dois desenvolvimentos sociais paralelos são responsáveis pelo nascimento da esfera social repolitizada, a qual destruiu a base da esfera pública burguesa: a expansão do Estado intervencionista que assumiu as funções de bem-estar na esfera social e o crescimento das grandes organizações industriais que tomaram um carácter semi-público. Ao escapar à distinção entre público e privado, a esfera social repolitizada permite aos grupos de interesse organizados procurarem obter uma fatia ampla dos recursos disponíveis, de modo a eliminar o papel do debate público permanente entre indivíduos particulares. Sob pressão destes dois desenvolvimentos sociais paralelos, as instituições que propiciavam um fórum para a esfera pública desapareceram ou, pelo menos, sofreram uma transformação radical: os salões e os cafés perderam a sua função crítica e as instituições da comunicação de massas transformaram-se em organizações comerciais de grandes dimensões. A comercialização da comunicação e dos bens culturais transformou o fórum de debate crítico-racional em campo de consumo cultural: o público que pensa cedeu o seu lugar ao público que consome cultura no decorrer do seu tempo de lazer, organizado, planeado e controlado pelo sistema de indústria cultural. A esfera pública emergente foi, deste modo, através da penetração das leis do mercado na esfera reservada aos indivíduos privados enquanto público, transformada num mundo fraudulento de pseudoprivacidade ou de privacidade sob holofotes, criado e controlado pelo sistema de indústria cultural: o debate crítico-racional tende a ser substituído pelo consumo e o contexto da comunicação pública dissolve-se nos actos estereotipados da recepção isolada e passiva. O conteúdo dos jornais foi despolitizado, personalizado e transformado em mero sensacionalismo, com o objectivo de aumentar as vendas: o público-leitor de jornais consome não só as notícias fabricadas como também os produtos publicitários, dos quais as organizações da imprensa recebem as suas rendas. Entretanto, já no decurso do século XX, surgiram novas técnicas de gerenciamento da opinião, utilizadas nas áreas do jornalismo manipulador ligadas aos assuntos políticos. Embora digam interpelar os indivíduos particulares, elas mais não fazem do que manipular a opinião pública, de modo a promover os objectivos particulares de grupos de interesse organizados. Segundo Habermas, os resíduos da esfera pública burguesa assumem assim um carácter feudal: as novas técnicas de gerenciamento da opinião são usadas para conferir à autoridade pública o tipo de aura e de prestígio pessoal que foi, no passado, conferido pela publicidade oficial das cortes feudais. A refeudalização da esfera pública transforma-a em palco e a política em espectáculo manipulado, onde os lideres e os partidos políticos procuram o assentimento de uma população despolitizada. Na época áurea da esfera pública burguesa, o princípio de publicidade era utilizado pelos indivíduos particulares contra o poder estabelecido e contra a autoridade publica. Mas, com a refeudalização da esfera pública, a publicidade converteu-se em princípio de integração manipulada: a cultura difundida pelos meios de comunicação de massas é uma cultura de integração, que, através da manipulação do seu público-consumidor, o exclui do espaço da discussão pública e dos processos de decisão. Com a subversão do princípio crítico da publicidade e a sua conversão em demonstração teatral com fins de aprovação, a própria democracia é posta em causa, bastando pensar na degradação do Parlamento em assembleia dominada e manipulada por interesses organizados, tanto pelos interesses dos escritórios de advocacia, como também pelos interesses do poder financeiro e dos grandes grupos económicos: os lideres e os partidos políticos - outrora instrumentos de formação de vontades, não nas mãos dos que mandam nos aparelhos partidários, como sucede hoje em dia, mas nas mãos do público culto - recorrem às novas técnicas dos mass media para obter o assentimento passivo dos eleitores, de modo a legitimar fraudulentamente os seus programas e compromissos políticos. Habermas abordou nesta obra inicial a nova ideologia que nasceu com o desenvolvimento da comunicação de massas, aliás um tema que as suas obras posteriores acabaram por abandonar. A teoria da nova ideologia de Habermas está intimamente ligada à concepção dos receptores de mensagens e de imagens como consumidores passivos, hipnotizados pelo espectáculo e manipulados pelas novas técnicas de gerenciamento da opinião: «A intimidade com a cultura exercita o espírito, enquanto que o consumo da cultura de massas não deixa rastros: ela transmite uma espécie de experiência que não acumula, mas faz regredir». Ambas as teorias de Habermas são tributárias da Dialéctica do Esclarecimento de Horkheimer e Adorno: a nova ideologia produzida e difundida pelos mass media já não toma a forma de um sistema coerente de ideias ou de crenças separadas, como sucedia com as velhas ideologias políticas do século XIX, mas é inerente aos próprios produtos da indústria cultural, produtos estes que reproduzem o status quo e integram o indivíduo dentro do sistema estabelecido, eliminando qualquer elemento de transcendência e de crítica. Marcuse é peremptório quando escreve no seu Homem Unidimensional: «Esta absorção da ideologia pela realidade não significa, contudo, o "fim da ideologia". Pelo contrário, num sentido específico, a cultura industrial avançada é mais ideológica do que a sua predecessora, visto que actualmente a ideologia está no próprio processo de produção». Ora, segundo Habermas, as indústrias culturais - a teoria crítica da Escola de Frankfurt não permite utilizar este termo no plural e com razão! - criam uma "falsa consciência" e um "falso consenso": «A crítica competente de questões publicamente discutidas cede lugar a um mundo de conformismo, com pessoas ou personificações publicamente apresentadas; consent (consenso) coincide com o good will (boa vontade) provocada pela publicity (publicidade). Outrora, "publicidade" significava a desmistificação da dominação política perante o tribunal do uso público da razão; publicity subsume (hoje) as reacções de um assentimento descomprometido. À medida que se configura, mediante public relations (relações públicas), a esfera pública burguesa reassume traços feudais: os "ofertantes" ostentam roupagens e gestos de representação perante clientes dispostos a segui-los. A publicidade imita aquela aura de prestígio pessoal e de autoridade supra-natural que antigamente era conferida pela esfera pública representativa». Assim, dado serem mais o efeito de técnicas de fabricação da opinião do que o resultado da discussão livre entre cidadãos que fazem uso público da razão, os consensos obtidos nas sociedades modernas são consensos falsos e fabricados. Os conceitos de falsa consciência e de falso consenso aparecem aqui associados à concepção da ideologia como uma espécie de cimento social que circula no mundo social da vida quotidiana - ele próprio colonizado pelo sistema! - através dos produtos das indústrias culturais: a sua função é integrar e incorporar os indivíduos na ordem social vigente, de modo a garantir a sua reprodução social. Ora, como já disse, esses dois conceitos foram abandonados por Habermas nas suas obras posteriores, mais preocupadas com os processos de racionalização - uma herança de Weber! - que definem a modernidade, nas quais a falsa consciência é substituída pela consciência fragmentada que bloqueia o esclarecimento através do mecanismo da reificação. Os desenvolvimentos mais recentes da teoria marxista da ideologia levaram-na a descobrir na acção comunicativa quotidiana o local da ideologia, mas a sua análise não será levada a cabo neste estudo preparatório. Porém, antes de passar à esfera pública portuguesa, convém frisar que a ideologia burguesa, sobretudo na sua versão neoliberal, se deslocou para o campo da chamada ciência económica, que Althusser definiu como mera técnica de adaptação social. De certo modo, as ciências sociais são meras técnicas ideológicas: a crítica da ideologia converte-se finalmente, no nosso tempo indigente, em crítica das ciências sociais. (Chegou a altura de encararmos a própria ciência como ideologia! O tempo pertence à Filosofia!)

Os historiadores portugueses ainda não compreenderam que o movimento de transformações profundas da sociedade portuguesa iniciado pela revolução liberal de 1820 só se consuma com a queda da monarquia e a implantação da república a 5 de Outubro de 1910: a lentidão do processo revolucionário português, marcado e adiado por sucessivos golpes contra-revolucionários, ajuda a entender o atraso estrutural de Portugal, em grande parte devido à poderosa resistência que as elites nacionais - temendo pelo seu futuro - opõem à mudança social qualitativa. Em Portugal, as revoluções sociais nunca conseguem triunfar plenamente, porque não há verdadeiramente circulação das elites e mudanças significativas no regime de propriedade: os "mesmos" verdugos conservam o poder - económico, político, ideológico, religioso e cultural - desde a fundação de Portugal, fazendo da sua história uma espécie de sucessão de biografias, construídas, mantidas e renovadas ao abrigo do Estado. A História da Imprensa Periódica Portuguesa de José Tengarrinha é uma obra a-crítica, que, graças à definição escolástica dos conceitos, acaba por capitular perante a ideologia veiculada pelos mass media. Perante estas palavras de Tengarrinha, segundo as quais «o jornalismo nasceu, em Portugal como em qualquer outro país, da confluência de três factores distintos: o progresso da tipografia, a melhoria das comunicações e das relações postais e o interesse do público pela notícia», ficamos com a impressão de que o jornalismo caiu de para-quedas em Portugal, bastando criar as infra-estruturas necessárias no país para que o esfera pública portuguesa se desenvolvesse quase que por milagre. Definindo o jornal em função de três condições formais - a saber: periodicidade, encadeamento e conteúdo específico, Tengarrinha divide a história da imprensa portuguesa em três períodos: o primeiro período vai da Gazeta de 1641 à revolução de 1820; o segundo período vai da revolução de 1820 a fins do terceiro quartel do século XIX, quando a imprensa se estrutura como uma verdadeira indústria; e o terceiro período vai deste quartel do século XIX aos nossos dias. Esta periodização da história da imprensa portuguesa capta o momento crucial da constituição da esfera pública portuguesa, a revolução liberal de 1820, aliás na peugada de Adrien Baldi (1822): a imprensa de opinião, a imprensa romântica, eis os únicos conceitos que retenho da obra de Tengarrinha para compreender a constituição da esfera pública burguesa em Portugal. Antes de 24 de Agosto de 1820, apenas se publicavam em Portugal cinco jornais, dois dos quais no Brasil: a Gazeta do Rio de Janeiro (1808), e a Idade de Ouro do Brasil (1808), publicado na Baía. A censura pombalina impediu que o jornalismo independente - crítico e político - se desenvolvesse em Portugal, a exemplo do que sucedia em Inglaterra, Holanda e França. Em Portugal, a configuração da esfera pública burguesa sofreu as vicissitudes da história atribulada do liberalismo. Infelizmente, ainda não temos uma obra séria sobre a história do liberalismo português, capaz de tipificar a corrupção endémica que caracteriza estruturalmente a política portuguesa. Quem conheça relativamente bem o período liberal português sabe que Portugal é um país ingovernável: os políticos portugueses não governam para o bem público, mas para garantir o seu próprio enriquecimento pessoal: cada um dos políticos liberais que deu nome a uma ou mais ruas portuguesas foi um corrupto, talvez com excepção de Fernandes Tomás que morreu cedo. Os políticos corruptos do gabinete ministerial presidido pelo duque da Terceira - Agostinho José Freire, Silva Carvalho e Manuel Gonçalves Miranda - eram conhecidos como devoristas, pela sofreguidão insaciável que manifestavam de enriquecimento pessoal. Mas a lista de corruptos não se esgota nestes nomes: a chamada revolução de Setembro de 1836, com o seu rotativismo político, produziu novos corruptos, todos eles candidatos a ditadores: Passos Manuel, Sá da Bandeira, o duque de Palmela, Saldanha e tantos outros, além de serem ideologicamente flexíveis, também foram devoristas dóceis perante a Inglaterra e a oligarquia financeira. A imprensa denunciou publicamente muitos casos de corrupção, numa linguagem violenta e desbragada. Victor de Sá tentou fazer uma periodização do liberalismo português (1820-1834), distinguindo três períodos: o primeiro período liberal (1820-23) foi dominado pelas Cortes que decretaram as primeiras reformas liberais e votaram a Constituição de 1822. Este é o período que reflecte melhor o espírito liberal tal como foi encarnado por Fernandes Tomás, o grande mentor da revolução de 1820. A Constituição de 1822, directamente inspirada pela Constituição de Cádis, consagra três princípios fundamentais: a ideia de soberania nacional, tendo a nação como o único verdadeiro soberano; a supremacia do poder parlamentar sobre o poder real; e a limitação da autoridade real. Porém, uma reacção absolutista (1823-26), a conspiração militar contra-revolucionária em Lisboa, conhecida como Vila-Francada (27 de Maio de 1823), e acarinhada por D. Carlota Joaquina e D. Miguel, aboliu a Constituição e anulou as reformas, forçando os liberais a emigrar. Os adversários do constitucionalismo estavam divididos em duas correntes: a moderada, para a qual pendia D. João VI, e a radical chefiada por D. Carlota Joaquina, que organizou uma nova revolta, conhecida como Abrilada (10 de Abril de 1824). Do seu fracasso resultou a saída de D. Miguel de Portugal. O segundo período liberal (1826-1828), a seguir à morte de D. João VI em 10 de Março de 1826, adoptou a Carta Constitucional outorgada aos portugueses por D. Pedro, imperador do Brasil e herdeiro do trono de Portugal. Uma nova reacção absolutista (1828-1834) seguiu-se ao desembarque de D. Miguel em Lisboa, gerando nova emigração. O terceiro período liberal foi dominado pela guerra civil (1832-34), que terminou com a vitória definitiva dos liberais adeptos da Carta Constitucional outorgada por D. Pedro em 1826. Dois acontecimentos marcam o início deste terceiro período: o Tratado da Quádrupla Aliança (Inglaterra, França, Espanha e Portugal), que decide a defesa das instituições parlamentares na Península Ibérica em 22 de Abril de 1834, e a Convenção de Évora-Monte, que põe termo à guerra civil em 26 de Maio do mesmo ano. Admiro a tentativa de periodizar a história do liberalismo português levada a cabo por Victor de Sá, mas não concordo com a delimitação do terceiro período liberal que se iniciou em 1834: não faz sentido falar da Revolução de Setembro de 1836 e, depois, tentar distinguir entre o suposto liberalismo triunfante, por um lado, e o republicanismo e o socialismo, por outro. A velha prática portuguesa de governar - anular as decisões do governo anterior e tomar novas decisões, sem no entanto ir à raiz dos problemas para não estorvar o enriquecimento pessoal dos que governam em rotação - não permite a estabilização de um regime: a revolução de 1820 foi capturada pela rede corrupta do poder político estabelecido e aprisionada à lógica do enriquecimento pessoal tão evidente na extinção das ordens religiosas (18 de Junho de 1834) e na integração das suas propriedades nos "bens nacionais" e venda aos particulares. A ideia de república não é completamente estranha à revolução de 1820: os revolucionários vintistas nunca confiaram em D. João VI e a Constituição de 1822 limitava o poder régio e abria a porta à democracia, a forma de governo mais temida pela burguesia e aristocracia portuguesas. (E, para os portuenses ilustres, a nova sociedade ambicionada para o país conjugou-se com o desejo republicano: a primeira tentativa de implantar a república ocorreu no Porto a 31 de Janeiro de 1891. O Porto é o alfa e o ómega do grande projecto revolucionário português.) Os liberais triunfantes que formaram governos nunca foram democratas e a monarquia constitucional vacilou sempre entre o absolutismo moderado ou radical e o liberalismo truncado que, no governo, assumiu a forma de ditadura, como por exemplo a ditadura de Costa Cabral. Em termos políticos, a revolução de 1820 só se consumou com a implantação da república a 5 de Outubro de 1910, que, como se sabe, não foi amiga da democracia. Portugal é, visceralmente, anti-democrático: até mesmo os governos formados depois do 25 de Abril de 1974 não resistiram e não resistem à tentação ditatorial. Em Portugal, o poder político é corrupto e, sendo assim, não admira que a revolução de 1820 também tenha fracassado no plano económico, como o demonstra o atraso estrutural do país. Portugal pode ser lapidarmente definido como o país das revoluções sociais fracassadas ou, como alguém já o disse, como o país eternamente adiado. Conhecemos a imbecilidade dos povos, mas, em Portugal, essa imbecilidade também está instalada nas elites do poder, cuja imagística retórica - exibida sobretudo no Parlamento e na comunicação social - deve ser desmitificada se quisermos atingir as fontes não admitidas e, quase sempre, desagradáveis, da sua acção, de modo a adquirirmos uma consciência madura e inteligente da história de Portugal. 

A esfera pública portuguesa polarizou-se em torno dos periódicos publicados no Porto e em Lisboa. As massas populares nunca foram admitidas nessa esfera pública burguesa polarizada entre o Porto e Lisboa, cuja unidade tensa foi garantida pelos contactos entre as elites burguesas das duas cidades portuguesas, pela sua aliança contra os partidários do regime absolutista, encabeçados pela Igreja Católica, e pelos deslocamentos políticos e intelectuais de uma cidade para a outra. Uma bela frase proferida por Manuel Fernandes Tomás na sessão de 14 de Fevereiro das Cortes resume o espírito liberal que preside à configuração da esfera pública burguesa em Portugal: «Não concebo a possibilidade de existir um governo constitucional ao modo que a Nação o espera e deseja sem a Liberdade de Imprensa», pois, como acrescenta Agostinho José Freire na sessão de 15 de Fevereiro, «não é possível haver Constituição sem Imprensa livre: quem poderá informar o Governo dos perigos que o ameaçam, da má administração dos membros, da prevaricação dos magistrados e de todos os seus deveres se a Imprensa não for livre?» A crítica moderna que moldou a esfera pública portuguesa nasceu de uma luta contra o absolutismo, dentro do qual a burguesia portuguesa começou a criar, para si própria, um espaço discursivo próprio, ou, como diria Marx, a sua própria consciência de classe. Não admira, pois, que tenha sido confrontada com o regime repressivo do absolutismo, o regime do Portugal Velho, a que José Agostinho Macedo deu voz quando afirmou num dos seus opúsculos pestilentos que a Pátria está «sobejamente oprimida com o pestilencial flagelo dos periódicos», concluindo que «ao século da Política, que outra praga se devia adoptar que não fosse a dos periódicos políticos? (...) Portugal está coberto, alastrado, entulhado de periódicos, como o Egipto e mais do que o Egipto, de rãs, de gafanhotos, de moscas, de diabos». A Carta de Lei que mandava executar o Decreto das Cortes de 4 de Julho de 1821, promulgada em 12 de Julho, e, mais tarde, a Constituição de 1822 nos seus artigos 7º. e 8º., abolindo a censura prévia, estabelecem pela primeira vez em Portugal a liberdade de imprensa, a «língua da Nação», segundo Fernandes Tomás, fazendo nascer a imprensa de opinião, renovada e modernizada pelos jornalistas exilados, sobretudo em Inglaterra, que regressaram ao país após a revolução de 1820, que Almeida Garrett celebra no seu texto O 24 de Agosto: «Já temos uma Pátria, que nos havia roubado o despotismo: a timidez, a cobardia, a ignorância, que o tinha criado, que se prostrava com vil idolatria ante a obra das suas mãos, acabou. A última hora da tirania soou; o fanatismo, que ocupava a face da Terra, desapareceu; o sol da liberdade brilhou no nosso horizonte, e as derradeiras trevas do despotismo foram, dissipadas por seus raios, sepultar-se no Inferno. Qual era dentre vós, que se não pudesse chamar oprimido? Qual há dentre vós, que se não possa chamar libertado? Qual foi o português, que não gemeu, que não chorou ao som dos ferros? Qual é o português que não folgará com a liberdade? (...) Escravos ontem, hoje livres; ontem autómatos da tirania, hoje homens; ontem miseráveis colonos, hoje cidadãos, qual será o vil (não digo bem), qual será o infeliz que não louve, que não bendiga o braço heróico que nos quebrou os ferros, os lábios denodados que ousaram primeiro entoar o doce nome - Liberdade?» Os absolutistas tinham razões de sobra para temer a abundância de periódicos e a sua crescente influência na formação da opinião pública portuguesa. Luz Soriano esboça um panorama expressivo da multiplicação de periódicos: «Nos fins de Novembro (de 1820) a imprensa periódica havia já tomado um grande ascendente no público, saindo em Lisboa diariamente os seguintes jornais: Gazeta de Lisboa, Diário do Governo, Minerva Constitucional, Mnemosine Constitucional, Portuguez Constitucional e o Patriota. Os não diários eram: Amigo do Povo, publicado às quartas-feiras; Amigo do Príncipe, às terças e sextas; Templo da Memória, às terças e quintas; Astro da Lusitânia, às segundas, quartas e sextas; O Liberal, às quartas-feiras; O Pregoeiro Lusitano, aos sábados; Diálogo dos Cegos, às terças e sextas; e, finalmente, o Cidadão Astuto, às segundas, quartas e sábados. Parece-nos que além destes havia mais uns dois ou três». O ano de 1821 foi efectivamente o ano áureo do jornalismo português do primeiro quartel do século XIX, atingindo-se então o número record de 39 novos periódicos, só ultrapassado no segundo quartel do século, sobretudo a partir de 1834: alguns destes novos jornais eram diários, editados no Brasil, Coimbra, Madeira, Porto e Lisboa, e a maior parte tinha carácter político e feição constitucional. Nos períodos liberais, o jornalismo transformou-se em poderosa arma ao serviço do constitucionalismo sonhado pelos vintistas revolucionários, como bem viu Alexandre Herculano em 1838: «Se a arte de escrever foi o mais admirável invento do homem, a mais poderoso e fecundo foi certamente a Imprensa. Não é ela mesma uma força, mas uma insensível mola do mundo moral, intelectual e físico, cujos registos motores estão em toda a parte e ao alcance de todas as mãos, ainda que mão nenhuma, embora o presuma, baste só por si para a fazer jogar». Convém alertar para o facto das histórias da imprensa portuguesa serem demasiado sectárias, procurando dar um protagonismo exagerado a Lisboa, em detrimento do Porto e da chamada província, ao ponto de não sabermos se um determinado jornal é portuense ou lisboeta. (Para todos os efeitos, sem a ajuda das estatísticas, de tabelas, de gráficos e de diagramas, é praticamente impossível analisar o enxame de periódicos que invadiram as cidades de Lisboa e Porto, o continente, as Ilhas Atlânticas e as colónias ultramarinas.) No Porto, cidade burguesa desde o século XII, o vintismo deu origem a um enxame de publicações que criticavam o poder político vigente, em nome do liberalismo e do constitucionalismo: o Diário Nacional, o primeiro grande diário da Cidade Invicta, publicado com a permissão da Junta Suprema do Reino e composto na Tipografia da Viúva Alvarez Ribeiro e Filhos, foi lido pelos portuenses apenas de 26 de Agosto a 5 de Setembro de 1820; o Correio do Porto (1820), jornal miguelista redigido por João António Frederico Ferro; A Borboleta Constitucional (1821); o Patriota Portuense; a Folheta Mercantil; o diário Crónica Constitucional do Porto (1832-35), impressa durante o cerco do Porto em continuação da Crónica da Terceira; A Vedeta da Liberdade (1835), órgão onde António Rodrigues Sampaio fez a sua estreia jornalística, defendendo os princípios da chamada revolução de Setembro e alcançando grande audiência nacional; o Periódico dos Pobres no Porto (1834), cartista, que em 1838 se fundiu com O Artilheiro; e O Athleta (1838), setembrista. (:::/:::) Na altura em que as ruas do Porto começaram a ser iluminadas por candeeiros públicos a gás, por volta de 1862, a cidade tornou-se elegante e herdeira do romantismo, como demonstra o esgotamento da edição de A Rua Escura, de Coelho Lousada, ou a frequência entusiástica das temporadas líricas do S. João: os portuenses iniciaram-se no "vício" do café e do dominó. No café Guichard prepara-se o ultra-romantismo, no Lisbonense discutem-se negócios e no Águia D'Ouro joga-se à tarde e organizam-se rusgas à noite, em nome de uma dama do lírico. Graças ao contacto diário com os ingleses, a burguesia portuense tomou consciência de que a civilização passa mais pela qualidade do que pela quantidade, e, por isso, para se preparar para o futuro, enviava os seus filhos a estudar em Inglaterra. No seu romance Uma Família Inglesa (1868), Júlio Dinis esboça a morfologia social do Porto Oitocentista, distinguindo três regiões, a oriental ou bairro brasileiro, a central ou bairro portuense, e a ocidental ou bairro inglês: «O bairro ocidental é o inglês, por ser especialmente aí o habitat destes nossos hóspedes. Predomina a casa pintada de verde-escuro, de roxo-terra, de cor de café, de cinzento, de preto... até de preto! - Arquitectura despretensiosa, mas elegante; janelas rectangulares; o peitoril mais usado do que a sacada. - Já uma manifestação de um viver mais recolhido, mais íntimo, porque o peitoril tem muito menos de indiscreto do que a varanda. Algumas casas ao fundo dos jardins; jardins assombrados por acácias, tílias e magnólias e cortados de avenidas tortuosas; as portas da rua sempre fechadas. Chaminés fumegando quase constantemente. Persianas e transparentes de fazerem despertar curiosidades. Ninguém pelas janelas. Nas ruas encontra-se com frequência uma inglesa de cachos e um bando de crianças de cabelos loiros e de babeiros brancos». Na década de 80 do século XIX, havia no Porto 14 jornais diários e 80 não diários. A qualidade da imprensa portuense era superior à da imprensa lisboeta, porque era na imprensa do Porto que escreviam os grandes escritores nacionais. Os jornais portuenses deste período eram de grande audiência: o trissemanário O Comércio (1854), que em 1856 passa a diário com a designação O Comércio do PortoO Comércio do Porto (desde 1856); A Palavra, do visconde de Samodães, jornal católico e ultraconservador; A Grinalda, jornal literário; O Primeiro de Janeiro (1868) que, a partir de 1872, teve agência telegráfica; A Actualidade (1874), jornal dirigido por Teófilo Braga; Revolução Social (1887), o primeiro jornal portuense anarquista; e, para finalizar esta lista lacunar, Jornal de Notícias (1888). Quando apareceram, alguns destes jornais tinham, em média, quatro páginas, embora a maioria tivesse apenas duas páginas, onde se publicavam anúncios e notícias nacionais e estrangeiras, com recurso inicial a desenhos tipográficos. (:::/:::)

O vintismo promoveu a publicação abundante de periódicos nas colónias portuguesas. Como já vimos, no Brasil, antes da revolução de 1820, a imprensa periódica desenvolveu-se, dando origem à Gazeta do Rio de Janeiro e à Idade de Ouro do Brasil. A Gazeta do Rio de Janeiro apareceu a 10 de Setembro de 1808 e era publicada todas as quartas-feiras e sábados, por ordem e sob a direcção e inspecção do governo: cada número avulso custava 80 réis e a assinatura por semestre era de 3$800 réis. A partir de 1 de Julho de 1821 passou a sair três vezes por semana - às terças, quintas e sábados, e, de 1821 em diante, denominou-se apenas Gazeta do Rio, que, depois da independência do Brasil, era encimada pelas armas imperiais brasileiras. Em 1828, a Gazeta do Rio foi substituída pelo Diário do Governo. Em 1808, começou a ser publicado na Baía o segundo periódico brasileiro: Idade de Ouro do Brasil, que, sendo bissemanal e de pequeno formato, se tornou logo órgão oficial do governo. A Coroa Portuguesa impediu severamente o estabelecimento de tipografias no Brasil, para evitar a propagação de ideias «contrárias ao interesse do Estado». Esta repressão - bem visível no edital de 30 de Janeiro de 1809 do intendente-geral da Polícia da corte do Rio - atrasou o desenvolvimento intelectual e literário do Brasil, sem no entanto conseguir evitar a influência das ideias da Revolução Francesa sobre as elites urbanas brasileiras. Com a mudança da corte para o Brasil, a Impressão Régia estabeleceu-se na cidade do Rio de Janeiro, por Decreto de 13 de Maio de 1808, com o material tipográfico, de origem inglesa, que fora num dos navios da esquadra real. Foi nesta tipografia régia que se imprimiu a Gazeta do Rio de Janeiro: os originais eram sujeitos a exame meticuloso e nenhuma publicação podia ser feita sem ter sido antes submetida à censura da Intendência da Polícia. Não admira que, em 1808, tenha aparecido em Londres o Correio Braziliense, o primeiro periódico brasileiro, redigido em português por Hipólito José da Costa: o primeiro número desta publicação mensal saiu a 1 de Junho de 1808 e a colecção completa tem 28 volumes: a sua principal intenção era lutar pela independência do Brasil. Tanto o Correio Braziliense como O Investigador Portuguez em Inglaterra, outro periódico impresso em Inglaterra, eram muito lidos. O segundo periódico publicado no Rio de Janeiro foi O Patriota, e um terceiro, saído no mesmo ano de 1813, foi O Popular. Só a partir de 1821 - já depois da revolução de 1820 - é que foram publicados diversos jornais de qualidade, entre os quais se destacam O Amigo do Rei e da Nação e O Conciliador do Reino Unido, ambos de José da Silva Lisboa, e o Diário do Rio de Janeiro. A suspensão da censura prévia em Agosto de 1821 deu aso à intensificação do movimento jornalístico: os jornais alcançaram uma mais larga expansão e um maior efeito na opinião pública, exercendo uma profunda influência na preparação da independência do Brasil. Dos jornais fundados nessa altura merecem especial destaque a Sabbatina Familiar dos Amigos do Bem Comum, o Despertador Brasiliense, O Bem da Ordem, O Constitucional e o Reverbero Constitucional Fluminense. Depois da independência, o jornalismo brasileiro entrou num período de grande desenvolvimento e de notável expansão, como demonstraram Licurgo Costa e Barros Vidal na sua obra História e Evolução da Imprensa Brasileira. Nas colónias ultramarinas portuguesas, o desenvolvimento da imprensa começou após a revolução de 1820. Este desenvolvimento sofreu algumas quebras impostas pelo desenrolar do próprio processo revolucionário português, mas continuou sempre em progresso constante depois de 1834, atingindo uma expansão notável na Índia Portuguesa, em Macau, em Moçambique e em Angola: «No segundo quartel do século XIX até fins do terceiro foi a Índia Portuguesa, de todos os nossos territórios ultramarinos, que registou maior desenvolvimento jornalístico. Os periódicos eram notáveis, não apenas pelo elevado número e qualidade literária, como também pelo seu nível técnico, pois a indústria tipográfica atingira naquela província grande desenvolvimento e perfeição. Igualmente em Macau se assinala poderoso movimento periodístico, embora inferior ao da Índia» (Tengarrinha, 1965). Em Goa, surgiram a Gazeta de Goa (1821-26), um periódico político, e, mais tarde, a Crónica Constitucional de Goa (1835-36), que eram órgãos oficiais, como o Diário do Governo. Em Macau, a imprensa estreou-se com a Abelha da China (1822), cujo primeiro número apareceu em 12 de Setembro de 1822, sendo sucedida pela Gazeta de Macau (1824), Crónica de Macau, Português na China (1833-43), Farol Macaense (1841-42), Aurora Macaísta (1843-44) e tantos outros jornais. Também se publicaram em Goa o Constitucional de Goa (1935), a Índia Imparcial (16 de Agosto de 1843 a 9 de Fevereiro de 1844), o Correio de Nova Goa (1844) e a Abelha de Bombaim (1808-1861). Os governos ultramarinos editavam os seus próprios Boletins. Tanto quanto sei, o primeiro Boletim Oficial surgiu, em 1837, na capital indiana, com o título Boletim Oficial do Governo da Índia. O segundo Boletim Oficial ultramarino apareceu, em 1842, na província de Cabo Verde, com o título Boletim Official do Governo Geral da Província de Cabo Verde. Em 1845, apareceu o Boletim Official do Governo de Angola, e, quase dez anos mais tarde, em 1854, surgiu o Boletim Official do Governo de Moçambique. Os Boletins Officiais dos Governos das províncias de São Tomé e Príncipe e da Guiné apareceram, respectivamente, em 1857 e 1880. (Infelizmente, não tenho informação disponível sobre Timor, que também teve o seu Boletim Oficial.) O primeiro diário publicado nas colónias portuguesas foi o Heraldo, de Goa, cujo primeiro número surgiu a 22 de Janeiro de 1900. Em Moçambique, apareceram diversos periódicos, entre os quais se destacam a Imprensa (1870 a 15 de Março de 1873), o Jornal de Moçambique (1873), a África Oriental (1876), A Verdade (1871), O Gato (1880-82), o Imparcial (1885), o Distrito de Lourenço Marques (1885) e Moçambique (15 de Dezembro de 1888 a 1 de Janeiro de 1889). Além destes periódicos, foram publicados em Moçambique o diário Notícias (1937), o Jornal do Comércio, Lourenço Marques Guardian e o Jornal, bem como os seguintes semanários: Lusitânia, Miragem, Brado Africano, Oriente de África, União, Democracia, O Emancipador, Rádio Moçambique e Gazeta da Relação. Sem uma análise detalhada dos conteúdos destes periódicos moçambicanos, não podemos avaliar o seu enquadramento ou alinhamento político e literário. Mas suspeito que, nas suas páginas, se encontram as ideias germinais da independência de Moçambique e da democracia para Moçambique: o convívio próximo dos portugueses de Moçambique com os "ingleses" da Rodésia e da África do Sul, bem como com os brasileiros que lá viviam, alimentou desde cedo o desejo de seguir o mesmo rumo destas duas ex-colónias inglesas. Angola iniciou a sua imprensa com a Aurora, um semanário literário (1855). Seguiu-se mais tarde um periódico já de carácter noticioso, Colonização da África Portuguesa (1866). Outros periódicos angolanos que merecem ser referidos são o Comércio de Luanda (1867), a Verdade Imparcial (1888), o Cruzeiro do Sul (1873), o Farol do Povo (1883) e o Futuro de Angola (1882). Em 1937, existiam em Angola, além do Boletim Oficial, A Pátria, A Província de Angola, Diário da Manhã, Diário de Luanda, O Comércio e Angola Desportiva. Mas o mais importante é que os jornais não surgiram apenas nas capitais coloniais. Assim, por exemplo, apareceram em Quelimane, o Africano (1877) e Muem Exi (1889), que era um jornal republicano. Além destes periódicos, foram publicados, na Zambézia, o Correio da Zambézia (1877-87), em S. Tomé e Príncipe, o Equador (1860), em Bolama, a Fraternidade (1889), e, na província de Cabo Verde, a Cidade da Praia (1880), O Praiense (1889) e a Praia (1889). Das colónias ultramarinas portuguesas Guiné foi aquela que mais se atrasou no desenvolvimento da imprensa: o seu primeiro jornal independente, A Fraternidade, data já de 1883. Convém assinalar que, em Lisboa, se organizou o semanário Marinha e Colónias (1856-1857) e que, em Margão, apareceu o Ultramar em 6 de Abril de 1859. Com os públicos-leitores de jornais das colónias ultramarinas, a esfera pública portuguesa amplia-se à escala mundial: graças à revolução de 1820, liderada pela burguesia portuense, ela tornou-se uma esfera pública mundial. As leis sobre a imprensa, o ensino e os sufrágios que, em Portugal, restringiam o acesso à esfera pública, não tinham o mesmo vigor nas colónias que na metrópole, até porque por cada quilometro de distância de Lisboa se ganha um grau de liberdade. Assim, quanto mais distante estiver de Lisboa, mais liberdade desfruta uma cidade para definir a sua própria abertura ao mundo: o facto dos portugueses radicados nos territórios ultramarinos serem mais letrados, mais cultos e mais endinheirados do que os portugueses metropolitanos, associado ao facto de estarem ligados em grande medida ao funcionalismo público das administrações coloniais, justifica provavelmente a maior audiência e o maior âmbito de influência dos jornais ultramarinos, cujos públicos-leitores não se restringiam às camadas superiores e médias da burguesia, incluindo também a pequena burguesia ilustrada e o sector educado do operariado, como já sucedia no Porto e em Lisboa mas não na província. Os portugueses que viviam nas possessões ultramarinas eram mais civilizados, progressistas e cultos do que os portugueses que viviam na metrópole. Os públicos regionais dos jornais ultramarinos eram, portanto, mais amplos do que os públicos regionais do Porto e de Lisboa, para já não falar da província, onde predominava uma maior taxa de analfabetismo. Além disso, estavam libertos da repressão exercida por Lisboa: as ideias novas circulavam facilmente nas malhas arteriais e capilares das redes de contactos com territórios estrangeiros e seus habitantes. Em 1885, Brito Aranha fez o seguinte balanço do jornalismo nas colónias ultramarinas portuguesas: «No espaço de cinquenta anos contaram-se 150 jornais mais ou menos nas províncias ultramarinas, dos quais 70 pertenciam à Índia Portuguesa, 15 à Índia inglesa, 40 às quatro províncias da África portuguesa (19 em Angola) e 24 em Macau e nas possessões asiáticas da Grã-Bretanha, onde há famílias portuguesas. Alguns desses jornais da Índia, e especialmente os que se ocupavam da literatura, tiveram vida muito curta. Os mais antigos jornais de Nova Goa, em 1885, eram o Boletim do Governo, com 48 anos de publicação, e o Ultramar, com 27. Em Luanda, o Boletim, que contava 40 anos, e o Mercantil, que contava 15 anos. E em Macau o Boletim com cinquenta anos».

A fertilidade das imprensas coloniais portuguesas só pode ser justificada pela longa distância que separava as colónias da capital do Império: o espírito português desabrocha quando não tem Lisboa por perto. Os portugueses foram mais felizes nas colónias do que na metrópole: longe do raio de acção de Lisboa, eles são capazes de construir países desenvolvidos, diante dos quais a capital-metrópole se envergonha do seu espírito saloio e ladrão. Com efeito, não foi a entrada na União Europeia que modernizou Portugal, mas sim o retorno dos portugueses depois da descolonização: os chamados retornados sabem como Portugal era miserável, triste, pobre e analfabeto antes da sua chegada. Os portugueses de Moçambique chamavam "chouriços" aos portugueses metropolitanos que desembarcavam no aeroporto e no porto de Lourenço Marques, e, já depois do regresso a Portugal, continuaram a usar esse termo para designar os portugueses feios e sujos que encontraram por cá. Moçambique e Angola eram regiões mais desenvolvidas e civilizadas do que a "santa terrinha", designação pejorativa dada pelos portugueses moçambicanos e angolanos à "metrópole". Em 1975 ou 1976, para espanto dos retornados, os portugueses-chouriço não tomavam banho, não tinham cuidados de higiene, não sabiam o que era a Coca-Cola, a Fanta ou o Seven-Up, mal sabiam falar e escrever bem português, dizem que, nalguns sítios, iam para a escola descalços e rotos, não tinham casas-de-banho em muitas casas rurais e suburbanas, não tinham iogurtes para comer, enfim os retornados devem ter penado muito para aprender a lidar com esta gente feia e suja, saída de um cenário ranhoso de Fellini. Como é que o Porto conseguiu lidar com a proximidade perigosa de Lisboa? Ainda não sei responder cabalmente a esta pergunta. Penso que, durante o período colonial, o Porto comerciava com as colónias, enquanto Lisboa se contentava a distribuir os rendimentos sacados às colónias, iludindo-se com as suas próprias fantasias de grandeza. Se assim for, e julgo que as mercadorias exportadas do Porto para as colónias está aí para o confirmar, o Porto desfrutou de autonomia ao longo do tempo, autonomia que perdeu gradualmente depois do 25 de Abril, sobretudo a partir dos governos centralizadores de Cavaco Silva. (Cavaco Silva foi mais centralista do que Salazar! Roubou-nos os bancos, a sede de grandes empresas, e a imprensa periódica!) Privada das riquezas coloniais, Lisboa começou a explorar o próprio país, concentrando na sua área todos os fundos comunitários. Depois de ter perdido as colónias, Lisboa pensou que podia continuar a alimentar as suas fantasias de grandeza "chulando" os alemães e os holandeses. A actual crise económica revela as vigarices e os jogos corruptos do Estado Português: as elites portuguesas do poder perderam sempre-já a vergonha, porque tanto fingem ser aquilo que não são, como também são submissas em relação às elites europeias, estendendo facilmente a mão à esmola europeia e candidatando-se à "chulice". Todo o mal de Portugal tem uma única origem: a "capital" que engorda sempre os mesmos à custa do emagrecimento e do empobrecimento do país. Lisboa é de tal modo idiota que ainda não compreendeu a imagem que dela fazem os europeus do Norte. Nas conversas privadas, "Lisboa" significa "corrupção" e "vigarice". Mas esta imagem já se encontra no passado próximo e longínquo: há documentos de embaixadores e de cônsules de todos os tempos que são deveras humilhantes para os governantes portugueses, tratando-os sistematicamente como "idiotas culturais", isto é, como pessoas burras e incultas que podem ser enganadas com facilidade, desde que se conheçam os seus pontos fracos. Refiro estes documentos para dizer que não é o povo português que envergonha Portugal; são as elites do poder sediadas em Lisboa que envergonham os portugueses e o país. Como dizem os estrangeiros esclarecidos: Lisboa, a cidade que dá abrigo a Ali Babá e os 40 ladrões, é a desgraça de Portugal. Victor de Sá analisou a remodelação ministerial (20 de Abril) operada poucos meses antes da revolta popular de 1836, chamando a atenção para o carácter oligárquico e ditatorial do gabinete ministerial presidido pelo duque da Terceira. Retomo aqui esta análise para tipificar a corrupção política que atravessa toda a história de Portugal. O presidente do Ministério, que acumulava a pasta da Guerra, tinha integrado no seu morgadio, em 1834, pela apresentação de um simples requerimento e sem qualquer prova, o convento de Alverca e respectivo território. O duque da Terceira auferia honorários como presidente do Conselho e como ministro da Guerra, como conselheiro de Estado, como marechal-general do Exército, como membro do Supremo Conselho Militar, como governador da Torre de Belém e como caseiro-mor da rainha. Além disso, tinha recebido cem contos de réis pela sua fidelidade à causa de D. Pedro. A acumulação de ordenados e pensões é, pois, uma prática habitual em Portugal. Agostinho José Freire, ministro do Reino e autor da lei das indemnizações, acumulava os ordenados de director do Colégio Militar, de conselheiro de Estado e de ministro. José da Silva Carvalho, ministro da Fazenda e responsável pela supressão ruinosa do papel-moeda, recebeu a título de ministro honorário 10 346$666 réis, fortuna esta que acumulava com os ordenados na sua qualidade de ministro efectivo, de presidente do Supremo Tribunal de Justiça e de conselheiro de Estado. As suas manobras financeiras valeram-lhe a alcunha de José do Chapelório. Manuel Gonçalves de Miranda, ministro da Marinha, recebeu 50 000 cruzados como pensão de ministro honorário desde 1823 até 1835. Joaquim António de Aguiar, ministro da Justiça, foi o único a não ser acusado de acumulações e prebendas. O conde de Vila Real, ministro dos Estrangeiros, era extremamente dócil à influência política, económica e financeira que a Inglaterra já exercia sobre Portugal desde as invasões francesas. O gabinete ministerial do duque da Terceira - a vitória da facção conservadora do liberalismo - exemplifica até à exaustão o padrão letal da prática governativa portuguesa - corrupção, jogos financeiros que arruínam o país, subserviência em relação às potências estrangeiras, estupidez, perda periódica de soberaniainsensibilidade social, desprezo pelo povo, instrumentalização do Estado em benefício pessoal e privado, acumulação de privilégios, cunhismo, falta de transparência, mentira institucionalizada, flexibilidade ideológica, oportunismo político, ausência de renovação, uso do Estado para favorecer grupos privados, histeria, falta de ética, imobilidade social e política, estagnação, exploração do povo, perseguição da oposição, institucionalização do crime de colarinho-branco, promiscuidade entre os negócios públicos e privados, monopolização do poder, tentação totalitária permanente, difamação pública dos opositores, etc. - que resiste ao espírito de mudança das revoluções sociais: não há revolução que lhe ponha termo e o 25 de Abril acabou por ser capturado pelo poder conservador - isto é, corrupto e antidemocrático - que domina Portugal desde a sua fundação. A história de Portugal pode ser vista como uma sucessão de tentativas fracassadas de instaurar a verdadeira democracia: tanto a revolução liberal de 1820 até à implantação da república como a revolução dos cravos do 25 de Abril foram duas experiências abortadas. Em Portugal, a grande transformação ainda não foi operada: ela exige sangue, a liquidação das chamadas elites nacionais e um novo regime de propriedade. Sem a realização de uma revolução sangrenta Portugal não tem futuro numa Europa envelhecida e condenada à morte. Sim, a Europa está cancerosamente moribunda, sem juventude e sem vigor, incapaz de se defender da invasão de um exército jovem proveniente do Norte de África ou de qualquer outro lugar do mundo bárbaro.

Em construção lenta. J Francisco Saraiva de Sousa

8 comentários:

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Era Portuguesa em vez de Portuense: não adianta mudar agora, porque a pesquisa depende do título inicial.

Neocopinos disse...

Segue um texto sobre Salazar que saiu na Folha de S.Paulo (29-03-12). Não é para publicar como comentário. É só para o sr. dar umas gargalhadas...

Salazar vive

Não é só o Brasil que enfrenta problemas para lidar com seu passado recente. Portugal também tem dificuldades com relação à memória histórica.

António de Oliveira Salazar governou Portugal como primeiro-ministro por 36 anos, de 1932 a 1968. Ele se aproximou do poder bem antes, quando se tornou ministro das Finanças, em 1928.

Em 1968, sofreu uma hemorragia cerebral depois de cair da cadeira. Seu sucessor, Marcelo Caetano, vivia preocupado com a possibilidade de que ele se recuperasse e começasse a questionar por que não estava mais no comando.

Salazar está de volta aos noticiários. O município de Santa Comba Dão, ao norte da cidade de Coimbra (centro de Portugal), onde ele nasceu em 1889 e onde está sepultado, decidiu estabelecer uma "marca Salazar" para promover os produtos agrícolas locais. O primeiro será uma nova marca de vinho regional chamada Memórias de Salazar. O prefeito João Lourenço, do Partido Social Democrata (PSD), disse que a intenção não era "alicerçar-se no saudosismo nem nas romarias da saudade".

O líder da seção local da União de Resistentes Antifascistas Portugueses (Urap) tem opinião diferente. António Vilarigues afirma que aqueles que desejam reviver o nome de Salazar não reconhecem "a trágica realidade do regime salazarista, responsável pela detenção e morte de milhares de cidadãos portugueses, e pelo início de uma terrível guerra colonial que durou 13 anos e forçou a emigração de milhões de pessoas".

Essa não é a primeira vez que Salazar ressurge como causa de controvérsia pública. Em 2007, a rede de TV portuguesa RTP recebeu uma reprimenda quando Salazar foi escolhido como "o maior português de todos os tempos" em uma pesquisa de opinião encomendada por ela. Logo surgiu a informação de que o resultado era improcedente devido a votos repetidos.

Em 25 de abril, fará 38 anos que jovens oficiais das Forças Armadas derrubaram o regime ditatorial criado por Salazar. Ao contrário do Brasil depois de sua era militar, em Portugal o rompimento com o passado foi claro. Caetano foi preso e exilado. Depois de uma acirrada disputa ideológica, surgiu um novo sistema político que tornou Portugal muito mais europeu e pôs fim a envolvimentos ultramarinos que duraram 500 anos -e dos quais o Brasil é a mais duradoura e importante criação.

A entrada de Portugal na União Europeia não teria sido possível sem o fim de tudo aquilo que Salazar representou. Os políticos portugueses são acusados pela péssima situação financeira em que o país se encontra, e com razão. Mas a presente crise não deveria servir como desculpa para a nostalgia quanto ao passado ditatorial.

KENNETH MAXWELL escreve às quintas-feiras nesta coluna.

Tradução de PAULO MIGLIACCI

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Thanks! Ya, Salazar voltou a desfazer tudo e adicionou mais de 40 anos de estupidez. Infelizmente, ainda há saudosistas salazarentos! O interior-centro é um problema.

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Bah, estou tramado. Para explicitar a minha argumentação, preciso de mais espaço e já estou cansado: os portugueses chocam-me pela sua corrupção descarada.

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Eu sou mesmo assim: agora estou a ler as obras de Fernandes Tomás e mais tarde desejo editar um estudo sobre o seu pensamento político e a defesa da democracia alargada. Ele defendeu o direito de voto das classes trabalhadoras. Tem discursos onde a teoria do contrato se aproxima de Rousseau. Interessante o homem!

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

«O povo existe. O que é preciso é educá-lo. Porém, aqui urge não nos iludir com o lema, porque a educação dum povo faz-se conferindo os direitos públicos a esse mesmo povo. Ele aprende usando, e só assim». Sampaio Bruno

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

O Porto é uma nação! Basta estudar os portuenses ilustres para entrar no mundo civilizado. Na frase citada anteriormente, Bruno capta uma noção nuclear da esfera pública: educar o povo para a cultura, em vez de rebaixar a cultura a uma cultura popular de massas.

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Odeio o rebaixamento da cultura: prefiro viver num mundo de imbecis a viver num mundo massificado sem cultura superior. E sinceramente não gosto da cultura popular.