quinta-feira, 10 de maio de 2012

Nicolai Hartmann: Ontologia e Biologia Molecular

Esquema da Biologia Molecular
«A nossa época está em vésperas de uma nova metafísica, diferente, é certo, da antiga, de uma metafísica que se tornou nossa e muito modesta e que renuncia à especulação, mas que no entanto, em virtude dos problemas que aborda, é uma metafísica autêntica». (Nicolai Hartmann)

A filosofia contemporânea anunciou a morte da metafísica. No entanto, três dos maiores filósofos contemporâneos construíram sistemas metafísicos: Samuel Alexander, Nicolai Hartmann e Alfred North Whitehead. Em Portugal, é possível obter uma licenciatura de Filosofia sem nunca se ter estudado o pensamento metafísico e ontológico destes autores. Não admira que os nomes de outros filósofos ligados à Filosofia do Ser sejam completamente desconhecidos: R. Le Senne, Louis Lavelle e Paul Häberlin, entre tantos outros, foram rasurados dos currículos nacionais de filosofia. (A filosofia portuense situa-se claramente nesta corrente do pensamento metafísico contemporâneo: o criacionismo de Leonardo Coimbra é a sua figura filosófica mais desenvolvida.) Os cursos de filosofia são, pelo menos em Portugal, mentiras institucionais. A palavra "metafísica" foi forjada por Andrónico de Rodes, quando, ao colocar em ordem as obras de Aristóteles, deu esse título a uma delas: «a obra que vem depois da física». A palavra "meta-física" - a obra que se segue à física - adquiriu mais tarde um outro sentido: o sentido de um "mais além" dos domínios da física. E, em certos círculos intelectuais, uns obscuros, outros super-iluminados, foi definida como tentativa de levar a um "mais além", mediante um salto de imaginação que abandona todo o argumento controlável. Ora, a palavra "metafísica" é utilizada pelos filósofos já referidos para designar a teoria do ente enquanto ente, isto é, a teoria do ser, desenvolvida com meios racionais, sem no entanto os limitar aos procedimentos das ciências da natureza. Hartmann traça uma distinção clara entre metafísica e ontologia: a ontologia trata da estrutura e da essência do ser, enquanto a metafísica elucida proposições de existência, isto é, juízos sobre a existência dos entes. Assim, de acordo com esta distinção, o problema do conhecimento é um problema metafísico: o que está em causa no problema do conhecimento é a pergunta pela existência do que é em si. Mas há uma outra diferença entre ontologia e metafísica: além de investigar problemas singulares, a metafísica procura esboçar uma visão total da realidade. A ressurreição da metafísica de que fala Peter Wust (1921) mais não foi - no caso de Hartmann - do que o renascimento da ontologia: a ideia directriz da sua obra é a independência da teoria do conhecimento em relação à ontologia. Em Platos Logik des Seins (Lógica do Ser em Platão), Hartmann (1909), ainda sob a influência do neokantismo da Escola de Marburgo, fundada por Hermann Cohen, afirma a prioridade do conhecimento sobre o ser: «O ser não descansa em si mesmo; o pensamento é quem o faz surgir» (Cohen). Abandona esta posição quando publica Grundzüge einer Metaphysik der Erkenntnis (Fundamentos de uma Metafísica do Conhecimento) em 1921, onde defende a independência do objecto em relação ao sujeito. Hartmann rejeita assim o ponto de vista idealista a favor de uma doutrina realista que marcou profundamente o realismo hipotético de Konrad Lorenz, cuja convicção fundamental é a de que «tudo isso que o nosso aparelho cognitivo - moldado no decurso da evolução filogenética - nos comunica corresponde aos dados reais do mundo extra-subjectivo». 

É muito difícil resumir em poucas palavras a ontologia de Nicolai Hartmann. O meu primeiro contacto com a Ontologia de Hartmann (cinco volumes) foi mediado por Konrad Lorenz, no decurso do meu primeiro ano de Medicina: o realismo hipotético de Lorenz e a epistemologia evolutiva de Donald Campbell permitiram-me fazer uma leitura neuro-lógica da teoria kantiana do ser, tal como a interpretou Heidegger na sua obra Kant e o Problema da Metafísica. A ontologia completa de Hartmann desenvolve-se em três partes: a primeira, Zur Grundlegung der Ontologie (1933), estabelece os fundamentos desta ciência; a segunda, Möglichkeit und Wirklichkeit (1938), ocupa-se da teoria da modalidade; e a terceira, Der Aufbau der realen Welt (1940), a mais importante, ocupa-se da construção da própria ontologia. Esta construção assume a forma de uma teoria geral das categorias, destinada a esboçar o perfil da "fábrica do mundo real". (Os dois últimos volumes são dedicados à filosofia da natureza.) Influenciado por Aristóteles, Kant e Hegel, bem como pela fenomenologia, Hartmann elaborou uma filosofia do ser, para combater o predomínio do positivismo, subjectivismo, mecanicismo e materialismo no campo de batalha filosófica, cujos aspectos originais são os seguintes: a distinção entre o ser real e o ser ideal, a teoria do resto ininteligível e a doutrina do espírito objectivo. Para Hartmann, as questões fundamentais do campo de investigação filosófica são de natureza ontológica: todo o pensamento teórico coloca a questão do ente enquanto ente. O pensamento que pensa algo em vez do nada conjura já a questão do ser, cujo transfundo metafísico não pode ser iludido pelas ciências da natureza. Hartmann critica a metafísica antiga pelo seu duplo-desvio: pretender oferecer uma solução definitiva para aquilo que não tem solução e, deste modo, construir sistemas fechados. Metafísico significa irracional e a irracionalidade equivale a incognoscibilidade. É certo que cada ser-em-si é cognoscível, mas isso não significa que não haja para nós o incognoscível, de resto bem evidenciado nas contradições que surgem quando tentamos resolver determinados problemas. O que importa no plano filosófico não são os sistemas mas os problemas. Supondo a unidade do mundo como algo dado, os sistemas metafísicos antigos estabelecem a priori alguns princípios, a partir dos quais edificam os seus sistemas do mundo mediante a dedução. O método adequado é precisamente o inverso: a philosophia prima só pode ser philosophia ultima, porque a ratio cognoscendi caminha em direcção oposta à da ratio essendi. Com esta crítica da metafísica antiga, Hartmann define a metafísica não como uma ciência, mas sim como uma conexão de interrogações para as quais não há respostas, pelo menos respostas definitivas, porque, ao longo da história da filosofia, os mesmos problemas voltam a surgir de novo sem terem recebido uma solução: o trabalho mais importante do filósofo é, pois, a colocação do problema, a qual pressupõe sempre uma mistura peculiar de conhecido e de desconhecido numa atitude de busca permanente. Os conceitos fundamentais da teoria do conhecimento de Hartmann são os de ser-em-si e de transcendência. Do ponto de vista fenomenológico, o conhecimento é uma relação entre o sujeito e o objecto: sujeito e objecto, separados um do outro nesta relação, pertencem à essência do conhecimento. Mas esta relação é também uma correlação, no sentido em que o sujeito só é sujeito para um objecto e o objecto só é objecto para um sujeito. Esta correlação não é reversível, porque ser sujeito é algo completamente distinto de ser objecto: a função do sujeito consiste em apreender o objecto, a do objecto em ser apreendido pelo sujeito. Para apreender o objecto, o sujeito precisa de sair para fora da sua própria esfera e de invadir a esfera do objecto, de modo a recolher as suas propriedades. O sujeito não arrasta o objecto para dentro da sua esfera, como é evidente: ele retém apenas uma imagem do objecto, que permanece transcendente relativamente ao sujeito. Esta imagem é objectiva, na medida em que leva em si os traços do objecto. A transferência das propriedades do objecto para o sujeito implica o predomínio do objecto sobre o sujeito: o objecto em si mesmo - o ente - existe independentemente do sujeito cognoscente e é anterior a ele, o que significa que, segundo Hartmann, a essência do conhecimento consiste não na produção de um objecto, mas na sua apreensão. A ideia de verdade implica uma relação de coincidência ou concordância entre o objecto em si e a imagem apreendida pelo sujeito. Hartmann define o conhecimento como um acto transcendente. Um acto transcendente não é apenas aquele acto que se desempenha na consciência, como por exemplo pensar, representar ou recordar, mas também o enlaçamento da consciência com aquilo que subsiste independentemente dela, precisamente o ser-em-si que existe independentemente da consciência e que não é somente ser-para-nós. O conhecimento tem a vantagem de ser o único acto transcendente puramente captador: a relação do sujeito com o objecto é receptiva, no sentido em que o sujeito - isto é, a imagem do objecto apreendida pelo sujeito - é determinado pelo objecto. Ao destacar a conduta receptiva do sujeito perante o objecto, Hartmann não está a negar a espontaneidade do sujeito no conhecimento: o que ele afirma é que esta espontaneidade - não sendo uma actividade orientada para o objecto - se esgota na síntese da imagem do objecto. O sujeito é receptivo perante o objecto e activo perante a imagem do objecto. A identidade suposta pela ideia de verdade como concordância entre a imagem e o objecto não pode ser total, porque subsiste aquilo a que Hartmann chama o transobjectivo ou, como lhe chamo, o excesso de objecto: a parte do objecto que não foi transferida para a imagem mas que é todavia cognoscível. Há, portanto, uma "fronteira de objecção" que separa o objecto conhecido do transobjectivo: o esforço do sujeito consiste em fazer recuar o mais possível este limite provisório imposto ao seu conhecimento. Porém, além desta fronteira de objecção, há um outro limite, o limite do transinteligível, constituído por tudo o que escapa à investigação racional. Atrás da fronteira da objecção ergue-se uma outra fronteira, desta vez definitiva e intransponível: a "fronteira da cognoscibilidade", «atrás da qual se abriga o irracional». Hartmann converte assim a fenomenologia em saber do não-saber.

A ontologia de Hartmann - que estuda a parte cognoscível do ser - assenta numa observação fundamental: o ser aparece com duas dimensões, a dimensão das quatro esferas do ser, que se distinguem claramente entre si, e a dimensão dos níveis do ser, que correspondem a cada uma das esferas. Hartmann distingue duas esferas primárias do ser, a do ser real e a do ser ideal, e duas esferas secundárias, a esfera do conhecimento e a esfera lógica. A esfera do conhecimento e o modo real do ser relacionam-se de modo tão íntimo como a esfera lógica e o modo ideal do ser. O ser ideal é tão em-si como o ser real, e, tal como este último, pode ser conhecido, sendo o conhecimento a apreensão ou a captação de algo que é em-si. As espécies mais conhecidas do ser ideal são o reino das essências, o reino dos valores e o reino do ser matemático. Embora apareça como estrutura fundamental no real, o mundo das essências não se esgota nesta circunstância, porque há conteúdos do ser ideal que não estão realizados ou efectivados, como por exemplo os espaços com mais de três dimensões. Além disso, há ser real não submetido às leis do ser ideal: o a-lógico, o contrário ao valor e o realmente contraditório. Todo o ser ideal é geral, dando-se em formas, leis e relações. E, quando comparado com o ser real, ele é inferior, ao contrário do que defende Platão. O ser ideal não se identifica com o racional, porque, no seu âmbito, há - como já vimos - o irracional. O facto do transinteligível subtrair-se aos preconceitos idealistas atesta a falsidade do próprio idealismo. À esfera do ser real correspondem quatro níveis ou estratos do ser: matéria, vida, consciência e espírito. À esfera do conhecimento ou gnoseológica correspondem, de modo quase paralelo, a percepção, a intuição, o conhecer e o saber. E à esfera lógica correspondem os níveis do conceito, juízo e raciocínio. Estes níveis do ser são determinados pelas categorias ou princípios do estrato correspondente. Hartmann distingue dois tipos de categorias: as categorias modais e as categorias fundamentais, que, não constituindo um sistema como sucede nas filosofias de Kant e de Alexander, se apresentam soltas num quadro de antíteses do ser. (Hartmann vai buscar à Metafísica e à Física de Aristóteles o termo aporética para designar o conjunto dos problemas insolúveis: «Ela - a aporética - examina e sonda o dado, verifica as contradições que nele estão contidas e dá-lhes o vigor do paradoxo que está ligado a todo o antagonismo na realidade».) Dos doze pares conceptuais analisados por Hartmann destacamos os pares antitéticos forma-matéria, interior-exterior, determinação-dependência e qualidade-quantidade. A sua exposição das categorias culmina na formulação de numerosas leis categoriais, as mais importantes das quais são a lei da força (o inferior é mais forte do que o superior) e a sua antítese, a lei da liberdade (o estrato superior é autónomo, porque é mais rico em determinações específicas do que o estrato inferior). É certo que cada um dos estratos superiores se eleva sobre um estrato inferior, mas as suas relações não são sempre as mesmas. Assim, por exemplo, o estrato orgânico constitui uma "super-formação" do corpóreo-espacial da matéria, sobre o qual se elevam, por sua vez, os níveis da consciência e do espírito como "supra-construções" relativamente - e cada vez mais - independentes da vida, no sentido de não se reproduzirem neles todas as categorias do estrato imediatamente inferior. A teoria dos integrões de François Jacob tem afinidades com a ontologia diferencial de Hartmann. O aspecto mais original da teoria dos modos de ser de Hartmann reside na afirmação de que a análise modal das quatro esferas do ser conduz a resultados diversos. Há, em cada esfera, modos diferentes do ser, modos esses que se dividem em absolutos (realidade e irrealidade) e relações (possibilidade, impossibilidade e necessidade). A contingência é um modo negativo, contrário à necessidade, e a necessidade absoluta é também contingência absoluta. A possibilidade ocupa um lugar de destaque na análise modal. Para Hartmann, no ser só é possível aquilo cujas condições são todas elas reais, donde resulta que tudo o que é possível é, ao mesmo tempo, real e necessário, e tudo o que é negativamente possível é irreal e impossível. No entanto, os modos não são idênticos, porque a implicação não é identidade. A distinção entre possibilidade positiva e possibilidade negativa repousa na lei actual da possibilidade disjuntiva, a qual possui validez no ser real, em oposição ao ser lógico. Os momentos do ser são determinados pelo par essência-existência: o ser-assim (Sosein), o que algo é, e o ser-aí (Dasein), que algo é, os quais aparecem como diferentes nas duas esferas primárias do ser. O ser-aí e o ser-assim ideais só podem ser conhecidos a priori, ao passo que o ser-aí real só pode ser a posteriori. Não sendo possível equiparar o ser-assim ao ser ideal e o ser-aí ao ser real, não pode haver nenhuma distinção absoluta entre estes dois momentos do ser, cuja diferença só subsiste em relação à totalidade do universo e do ente singular.

Para substituir o dualismo kantiano do fenómeno e da coisa-em-si, Hartmann estratifica o mundo real em quatro camadas constituídas pelo inorgânico, o orgânico, o psíquico e o espiritual. Os dois primeiros estratos diferem dos dois últimos: a vida assenta na matéria e o espírito tem necessidade da psique para se desenvolver num organismo vivo. Mas há um fosso entre a matéria e a vida, por um lado, e entre a psique e o espírito, por outro lado, porque os dois últimos não contêm nem processo vital nem elementos materiais. Os estratos inferiores são os mais fortes, mas, devido ao seu novum, os estratos superiores gozam de uma autonomia e de uma liberdade maiores, o que permite a realização de valores mais elevados. Na ontologia de Hartmann, o espírito é apenas um estrato do real. Como vimos, o ser espiritual encontra-se separado do ser anímico, sobre o qual se eleva: o nível de consciência que corresponde ao ser anímico abrange também os animais, não sendo aí que reside a novidade categorial do homem. O estrato espiritual constitui um estrato fechado do ser e articula-se em três formas do ser: o espírito pessoal, o espírito objectivo e o espírito objectivado. As duas primeiras formas do ser espiritual são espírito vivo, ao passo que a terceira forma é, de certo modo, espírito morto. O espírito é real e individual, e a sua existência é temporal. A temporalidade do espírito é, portanto, a do mundo. No entanto, o espírito possui categorias e traços próprios: o espírito que está em processo, é, ele próprio, processo. Não sendo substância, o espírito tem que se identificar consigo mesmo. Não sendo espaço, o espírito está vinculado ao espaço e encontra-se no mundo real, do qual depende, embora esta sua dependência seja a de um ser que domina as potências que manipula. O espírito individual caracteriza-se pela consciência espiritual, sendo o único sujeito propriamente dito: a sua consciência é excêntrica e, por isso mesmo, consciência do objecto. O espírito inscreve-se na "actualidade" da conexão da vida e, como pólo da diversidade destas conexões, constitui a pessoa: a personalidade é o carácter categorial fundamental do espírito individual, cujo traço primeiro reside na sua capacidade de auto-constituir-se ou de auto-realizar-se de modo espontâneo. O outro traço específico do espírito individual é a transcendência dos seus actos: a pessoa humana está em situação, tal como o animal, mas, graças à sua consciência do objecto, pode modificar o meio através da acção e transcender-se nos seus actos, de modo a viver por cima de si e a referir-se a algo superior. O espírito individual é, por essência, expansivo e livre. Uma propriedade fundamental da vida espiritual é a desprendibilidade dos conteúdos - objectos intencionais - em relação à pessoa. Tudo aquilo que de uma pessoa se objectivou numa expressão já não pode ser retido por ela: os produtos objectivados viajam de pessoa para pessoa, e este é - seguramente - o fenómeno fundamental do espírito objectivo. Todos estes conteúdos objectivos - direito, moral, linguagem, fé, religião, saber, arte - constituem o campo do espírito histórico: a historicidade mostra que eles não se esgotam em puros conteúdos, na medida em que estão sujeitos ao viver, devir e morrer, traços estes que constituem uma esfera particular do ser. O espírito objectivo não se identifica com nenhum dos indivíduos que formam uma colectividade nem tão-pouco com a sua soma. Hartmann distancia-se de Hegel quando afirma que o espírito objectivo não é uma substância ou mesmo um universal. Dando-se no seio de uma colectividade, o espírito objectivo - único, individual, histórico e autónomo - é toda a vida espiritual na sua totalidade real e efectiva tal como se desenvolve através dessa colectividade humana. A relação entre espírito objectivo e espírito individual é uma relação de reciprocidade: o indivíduo cresce dentro do espírito objectivo e o espírito objectivo é vivo nos e através dos indivíduos. De acordo com a lei da tradição, o espírito objectivo não se herda; ele transmite-se, e o seu conteúdo não se esgota em nenhuma das suas representações. Em virtude disso, o espírito objectivo desfruta de uma mobilidade própria: a sua consciência não está nele próprio, já que ele não é uma consciência plural ou uma pessoa plural, nem tão-pouco um espírito inconsciente ou supraconsciente, mas nas pessoas individuais que vivem em comunidade. Ora, dado o carácter inadequado da consciência dessas pessoas, o espírito objectivo é sempre um espírito incompleto, que, numa comunidade hierarquizada, tende a ser representado pela consciência representadora do indivíduo que a dirige. O espírito individual e o espírito objectivo exteriorizam-se e objectivam-se, de modo a constituir o espírito objectivado. O estudo do espírito objectivado coloca problemas extraordinariamente difíceis, que Hartmann tenta solucionar quando aborda temas como a estética, a história, a ciência e outros campos da cultura, os quais permitem elucidar o modo como o espírito objectivado se desprende do espírito vivo. Aqui direi apenas que, lá onde aparece o espírito objectivado, o espírito cultural, temos sempre duas camadas: a formação real sensível, como camada sustentadora, e o conteúdo espiritual. (A sociologia em profundidade de Georges Gurvitch é também herdeira do pensamento filosófico de Hartmann!)

A biologia molecular surgiu da descoberta da estrutura em dupla hélice do ADN realizada por James D. Watson, Francis Crick e Maurice Wilkins em 1953. E, pouco tempo depois desta descoberta imensa, James Watson publicou a sua obra Molecular Biology of the Gene, cuja terceira edição (1976) aprofunda o capítulo sobre as origens virais do cancro e acrescenta dois novos capítulos, um dedicado à essência do ser eucariótico e outro ao controle da proliferação celular. A ontologia do mundo orgânico de Hartmann foi elaborada antes da emergência do paradigma da biologia molecular. A biologia molecular interpreta os fenómenos que se desenrolam no seio dos organismos vivos em função das estruturas e das interacções funcionais que se manifestam entre os constituintes macro-moleculares da célula. Esta noção de biologia molecular é suficiente para a apresentar não tanto como uma nova ciência ou uma nova disciplina mas sobretudo como um novo paradigma científico (no sentido de Thomas Kuhn) que orienta toda a pesquisa nos domínios da fisiologia celular, da genética, da bioquímica, da virologia, da imunologia e da microbiologia, para só referir estes campos disciplinares das ciências biológicas. A revolução molecular na biologia resultou da conjugação das duas correntes principais da biologia molecular - a corrente estrutural, originada nas tentativas pioneiras de W. T. Astbury em desvendar a ordenação, essencialmente cristalina, de estruturas proteicas, e a corrente informacional, ligada à genética molecular e derivada, em grande medida, de um estudo de Fred Griffith publicado em 1928, divisão esta que levou Kendrew a falar de "duas" biologias moleculares - e da sua fusão com a bioquímica. A extensão já longa deste estudo não permite esboçar aqui a história do desenvolvimento da biologia molecular: o dogma central da biologia molecular - a informação genética é transmitida dos ácidos nucleicos às proteínas e não no sentido inverso - foi formulado em 1958 por Crick no decurso do período dogmático do desenvolvimento da biologia molecular. Se aceitarmos a periodização proposta por Stent - período romântico, iniciado por volta de 1935 com as primeiras reflexões de Delbrück sobre as novas tarefas da genética; período dogmático (1953-63), dominado por James Watson e Francis Crick e pela enunciação do dogma central, bem como pelos trabalhos de François Jacob e Jacques Monod sobre o ARN mensageiro e o operão; e período académico, posterior a 1963, marcado pela estabilização do quadro da investigação molecular, verificamos que o nascimento da biologia molecular ocorreu não só no campo das descobertas científicas, mas também no campo de batalha filosófica, no qual se distinguiram os nomes de Theodosius Dobzhansky, G. Montalenti, Ernest Boesiger, Gerald M. Edelman, Peter Medawar, June Goodfield, John C. Eccles, William H. Thorpe, Donald T. Campbell, Morton Beckner, Dudley Shapere, Henry Skolimowski, Charles Birch, Bernhard Rensch, Karl R. Popper, G. Ledyard Stebbins, Francisco J. Ayala, Jacques Monod, François Jacob, Jean-Pierre Changeux, Jacques Ruffié, Stephen Jay Gould, Erwin Schrödinger, Konrad Lorenz, Ludwig von Bertalanffy, Macfarlane Burnet, Edward O. Wilson, Salvador Luria, Ernst Mayr, George G. Simpson, R. C. Lewontin, Hans Jonas, J. E. Lovelock e Christian de Duve, entre tantos outros. O que mais impressiona nestas controvérsias científico-filosóficas é o facto dos seus intervenientes - filósofos e cientistas da vida - estarem preocupados com questões epistemológicas e ontológicas. Bio-epistemologia e bio-ontologia são dois empreendimentos filosóficos que não podem ser dissociados um do outro. Louis Althusser acusou a biologia molecular, pelo menos a interpretação filosófica de Monod, de estar demasiado próxima do mecanicismo, e David Bohm estranhava o facto de que, precisamente quando a física começou a distanciar-se do mecanicismo, a biologia se aproximou dele. Predomina, pelo menos entre alguns filósofos e cientistas, a noção de que a biologia molecular implica o triunfo do mecanicismo sobre o vitalismo, do reducionismo sobre o holismo (a biologia do organismo de Simpson ou a teoria geral dos sistemas de Bertalanffy, por exemplo), as duas grandes teorias da esfera orgânico-vital criticadas e superadas pela teoria da estratificação do ser real de Hartmann. Lorenz realizou uma interpretação filogenética da teoria das esferas do ser de Hartmann, mostrando que a sua ordem dos estratos é aquela da sua sucessão na história geológica e na evolução da vida. Hartmann rejeita tanto o mecanicismo, que acusa de negar a autonomia do orgânico em relação ao estrato inorgânico, como o vitalismo, que acusa de ser antropomórfico, no sentido de interpretar os «processos orgânicos por analogia com a teleologia humana», procedendo como se nos «órgãos, células ou inclusivamente partes da célula, residisse uma consciência capaz de propor e perseguir fins», em nome de um nexus organicus entendido como uma terceira forma de determinação específica do mundo da vida, completamente distinta do nexo causal e do nexo final. (Convém lembrar que o estrato do ser orgânico é ele próprio estratificado: a sua hierarquia de complexidade vai dos átomos, através de moléculas, células, tecidos, órgãos, indivíduos, populações específicas, comunidades e sistemas ecológicos compreensíveis, até o total domínio do orgânico e seus ambientes no espaço e no tempo. A Hipótese Gaia de J. E. Lovelock encara a biosfera como um mecanismo de regulação automática com capacidade de manter saudável o nosso planeta, controlando o meio químico e físico.) O aspecto central desta dupla-crítica de Hartmann reside no facto de afirmar a impossibilidade de deduzir dos sistemas inferiores os traços dos sistemas de um nível de integração superior ou de encarar uma totalidade num dos seus sub-sistemas. Ao interpretar a ontologia diferencial de Hartmann - a estratificação do ser real - em função do esquema da evolução filogenética, Lorenz é levado a identificar as suas leis especiais do organismo com as propriedades emergentes, sem romper com a lei do novum. Samuel Alexander e C. Lloyd Morgan desenvolveram de modo independente um do outro a concepção da evolução emergente. Embora incluam os níveis inferiores, os níveis superiores da hierarquia ou da grande cadeia do ser (Arthur O. Lovejoy) têm conceitos peculiares a si próprios e não interpretáveis em termos dos níveis inferiores. Chamam-se emergentes às propriedades ou fenómenos que aparecem nos níveis superiores de integração e que não são previsíveis ou interpretáveis nos graus inferiores. Hartmann não negou a pertinência da análise redutiva, isto é, da extensão das categorias do estrato inferior para o estrato superior: o que ele defendeu é que essa análise não esgota o conhecimento do estrato superior. O modelo geométrico de redução e emergência proposto por Medawar ou a teoria da redução científica de Karl Popper demonstraram a incompletude essencial da análise redutiva: a violência feita a um fenómeno desde baixo (Hartmann). (O vitalismo faz violência sobre um fenómeno desde cima.) Aquilo que Hartmann não conseguiu realizar plenamente - a definição do nexo orgânico - foi realizado por Monod na sua obra Le Hasard et la Nécessité, onde esboça uma ontologia do ser vivo em função de duas propriedades: a invariância reprodutiva e a teleonomia, com a primeira a preceder a segunda. A biologia molecular lança-nos um outro desafio, o desafio da falência do paradigma universal da física e da emergência do paradigma biológico, que Skolimowski definiu nestes termos enfáticos: «A arquitectura da Física significa o triunfo do simples e do redutível. A arquitectura da vida humana significa o triunfo do complexo e do irredutível». Apesar de todo o seu trabalho girar em torno da nova racionalidade biológica, Skolimowski procura ir mais além daquilo a que Lewontin chamou a ideologia do ADN e a que ele próprio chamou a ideologia da ciência moderna, na direcção da ideia central da irredutibilidade dos sistemas complexos e hierárquicos à sua base física. À luz do próprio processo de evolução, a racionalidade biológica não pode ter a última palavra: Skolimowski está mais ou menos consciente disso quando afirma ser necessário introduzir na nossa linguagem conceitos abertos, conceitos de crescimento e conceitos normativos. A complexidade da racionalidade biológica não nos permite avançar mais, bastando referir que o próprio Monod estabeleceu duas fronteiras do desconhecido, cada uma delas situada numa das extremidades da evolução, a origem dos primeiros sistemas vivos e o funcionamento do sistema mais intensamente teleonómico que jamais surgiu, o sistema nervoso central do homem, ao mesmo tempo que propõe uma ética do conhecimento aliada a uma certa ideia de socialismo: «A antiga aliança rompeu-se. O homem sabe, finalmente, que está só na imensidade indiferente do universo, donde emergiu por acaso. Nem o seu destino nem o seu dever estão escritos em parte alguma. A ele cabe escolher entre o Reino e as trevas». 

J Francisco Saraiva de Sousa

10 comentários:

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Estava a pensar que, se submetêssemos os licenciados em filosofia a um teste sobre ontologia como teoria das categorias, eles chumbavam todos. Sintomático: não se aprende nada nos cursos de hoje. São todos burros diplomados.

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

O ensino em Portugal é uma vergonha!

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

A Filosofia - sim aquilo que não se aprende na universidade - é terrivelmente difícil.

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Ui, estou furioso com a estupidez diplomada nacional: bando de macacos idiotas!

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Bah, ainda falta muita coisa para concluir e apetece-me passar ao ataque. Não consigo estar a ser bem comportado durante muito tempo... :)

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

A imagem de que vivo num tempo de burros e na companhia de burros é cada vez mais nítida. Acho que vou defender uma sociedade esclavagista: estou farto de tanto gado inútil. Esta coisa de abrir tudo às massas está a destruir a cultura: cada macaco no seu galho. Já não dá para defender criaturas feias e maldosas.

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Bem, tenho consciência de que conduzi o leitor até ao limiar do abismo. Vivemos um período de esgotamento do projecto científico! Estamos insatisfeitos com os resultados e no entanto não sabemos como mudar de rumo. Entretanto, o homem está cada vez mais burro, o que não estimula a pesquisa fundamental...

ranieri ribas disse...

Estou a escrever sobre Hartmann, porém em outra paragem desolada (Brasil). Poderia repetir cada uma das suas palavras acerca do ensino de filosofia nesta terra Brasilis. A filosofia de Hartmann, porém, é de uma envergadura e de uma seriedade monolítica só comparável, neste século, à Husserl. Não se lê Hartmann porque sua obra exige demais de quem a estuda. Ademais, o heideggerianismo hegemônico sempre concebeu a ontologia de Hartmann como uma obsoleta categorização de entes.
Estou há seis anos escrevendo um trabalho hercúleo sobre biofilosofia, antropologia filosófica e humanismo no século XX. Leio seus artigos há uns quatro anos. Você é o único em língua portuguesa que estuda os mesmos temas e autores que eu.
Tenho vários livros de Hartmann em espanhol e inglês: autoexposição sistemática, nova ontologia, os cinco volumes da ontologia, os três volumes da ética em inglês, metafísica do conhecimento (dois volumes), mas não tenho o texto sobre biologia.
Onde você o conseguiu? Em que língua?
ranieri ribas

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

A "biologia" encontra-se na Fábrica do Mundo, um dos volumes da Ontologia, e nos dois volumes de Filosofia da Natureza.

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Algumas obras de Hartmann estão traduzidas em espanhol, francês e inglês.