Cidade do Porto: Massarelos |
1. Hoje foi dia de estudar o pai da psiquiatria americana: Benjamin Rush (1746-1818). Concordo com o seu amigo Jefferson: os seus tratamentos da loucura eram demasiado cruéis e condenáveis: aparelhos como o tranquilizador ou o girador são aparelhos de tortura. Mas o que me chamou a atenção foi a sua teoria da lepra da negritude dos escravos. A cor negra é uma doença que, segundo Rush, pode ser tratada. Em termos ideológicos, Rush diz o seguinte: o negro pode ser um empregado doméstico aceitável do ponto de vista médico, embora deva ser alvo de segregação sexual para impedir a transmissão de uma doença hereditária temida. Os brancos não devem tiranizá-los - os negros - e não devem casar com eles: a doença poderá ser curada no futuro.
2. Negando as diferenças entre doenças do corpo e doenças da mente, Benjamin Rush abusou da metáfora médica para medicalizar a vida social: o Pennsylvania Hospital foi a materialização da ideologia psiquiátrica que fez do desvio social uma doença mental.
3. Infelizmente, Portugal é um país entregue aos burros: O Bode Expiatório da psiquiatria institucional foi sempre o Homossexual. O auto de 1723 relata um caso que ocorreu em Lisboa, cuja sentença foi a flagelação e dez anos de serviço nas galés. A homossexualidade era tratada como um delito e o delito como uma heresia: o castigo era a relaxação - queima na fogueira - ou flagelação - açoitamento - e as galés. A chamada libertação dos loucos não ocorreu em Lisboa, mas sim no Porto: o Hospital Conde de Ferreira protagoniza esse movimento em Portugal, embora usasse ainda alguns instrumentos de tortura. Porém, ainda não temos uma história da loucura em Portugal.
4. A masturbação foi outra prática sexual condenada e punida pela Psiquiatria Institucional: a ideologia psiquiátrica da masturbação é deveras bizarra. Porém, ainda hoje os pacientes que se masturbam compulsivamente nas enfermarias são objecto de um tratamento clássico: as mãos são amarradas às grades da cama. Mas como devem ter reparado falei de masturbação compulsiva: o que quer dizer que há formas patológicas de masturbação. Devemos criticar a violência psiquiátrica sem deitar fora a Psiquiatria.
5. Enfim, concordo com a crítica da violência psiquiátrica levada a cabo pela Antipsiquiatria, mas também condeno os excessos deste movimento, em especial a política do orgasmo. Chegou a hora de mandar à merda o orgasmo. Descarta-te do sexo e cultiva a tua mente! Todos os movimentos de emancipação sexual fracassaram. Hoje sabemos que o sexo não liberta; pelo contrário, escraviza, destruindo a mente, a vida pessoal e social e a saúde mental e física.
6. A teoria da negritude de Benjamin Rush parece ser um disparate e assim é. Mas faz algum sentido no contexto americano oitocentista. Com efeito, por volta de 1792, começaram a surgir zonas brancas no corpo de um escravo negro chamado Henry Moss, que, no espaço de três anos, ficou completamente branco. Ele era portador de uma doença hereditária chamada vitiligo: uma doença não-contagiosa em que ocorre a perda da pigmentação natural da pele, tanto nos negros como nos brancos. (Rush desconhecia que a perda de pigmentação pode ocorrer nos brancos.) Ora, quando soube disso, Rush pensou que a cor biologicamente normal do negro era uma doença que, no caso de Moss, tinha sido curada de modo espontâneo. Daí que tenha sugerido que a cor negra era resultado do sofrimento de lepra pelos seus ancestrais africanos. Ora, nalguns casos, em especial entre os habitantes das ilhas de lepra do Pacífico Sul, a lepra é acompanhada pela cor negra da pele.
J Francisco Saraiva de Sousa
14 comentários:
O que é o horizonte? Da psiquiatria fui conduzido até à Filosofia do Espaço e da espacialidade da existência humana. Descobri um texto de Van Peursen sobre o horizonte, onde destaca o duplo aspecto do horizonte: «ser limite inalcançável e espaço para avançar». Um mundo sem horizonte é impossível: o horizonte traz o homem para o centro do mundo, permite-lhe encontrar-se no mundo como em sua casa, transforma o mundo numa espécie de concha protectora e engloba o espaço em redor do homem para formar um mundo circundante finito.
A língua portuguesa - com a sua anterior ortografia - é extremamente filosófica: as diversas etimologias alemãs do espaço e suas regiões podem ser traduzidas facilmente em língua portuguesa, quase sem perda de conteúdo. Aliás, a língua portuguesa é um depósito rico em palavras ligadas ao espaço, tanto no sentido literal como no sentido figurado dessas palavras. Há, portanto, uma filosofia do espaço na língua portuguesa. Porém, os utentes da língua portuguesa não possuem bom desempenho linguístico: os portugueses estão a assassinar a língua portuguesa, como se vivessem num mundo sem fundo e sem solo seguro. Vejo-os por isso como alienados mentais que perderam o contacto com o solo.
Kierkegaard qualificou a angústia de "vertigem da liberdade". Ora, se vivesse num outro país, escreveria uma obra intitulada Sein und Raum para mostrar - entre outras coisas, claro! - que toda a angústia se compreende a partir da angústia arquétipa: o medo de cair numa profundidade sem limites, a vertigem do abismo.
Marx usou muitas metáforas espaciais, das quais a mais famosa é a tópica da base e da superstrutura. Porém, o "materialismo" pode ter ocultado a riqueza do seu pensamento: "O Capital" deve ser relido à luz do sentido das palavras alemãs. "Grundlage" significa, em português, "base": o espacial brinda a base para a compreensão do mundo espiritual. A loucura dos portugueses reside no facto de terem tentado construir um país sem base, sem solo firme e seguro: eles extraviaram-se e o extravio é a forma típica de uma existência frustrada, como demonstrou Binswanger.
Ora, se soubermos ler a "geografia" do Capital de Marx, a sua teoria do espaço e do tempo, podemos realizar uma crítica mais poderosa do capitalismo, articulando economia e psiquiatria. "Homeless": eis a palavra inglesa que significa em português "sem-abrigo". Porém, antes do seu sentido sociológico, temos de explicitar o seu sentido ontológico que nos reconduz à espacialidade da existência humana. O Marx Oculto que procuro é aquele que me permite pensar a antropologia como ontologia fundamental.
Estive a reler as conferências de Michel Foucault no Japão e os diálogos que travou com os homens japoneses da literatura: apreciei a atitude dos japoneses que fingiram não ter escutado o que Foucault disse sobre a filosofia, levando-o para o terreno da sexualidade. De certo modo, eles disseram-lhe o seguinte: Se não é filósofo, é pelo menos homossexual e, neste domínio da transgressão literária, Genet foi mais longe. Foucault não gostou e ripostou que Genet permitiu que o seu teatro fosse comercializado num determinado espaço parisiense com a figura de um homem-actor nu.
Porém, embora reconheça que a imagem de um homem nu é mais transgressora do que a imagem de uma mulher nua, não compreendi as razões desse diferencial de transgressão: Foucault não foi claro nesta matéria. Há uma ligação entre homem nu e homossexualidade, mas esta ligação não é suficiente para justificar a proibição da nudez masculina.
Freud interpretou a homofobia como "homossexualidade reprimida" e esta interpretação foi corroborada por um estudo experimental: os homens homófobos reagem eroticamente a estímulos-cenas homossexuais. No entanto, a proibição da nudez masculina e o medo da homossexualidade devem ser interpretados de uma forma mais radical: a heterossexualidade compulsiva pode ser o resultado de uma produção social repressiva. A heterosocialização restringe o campo de possibilidades sexuais do homem.
E, para demolir o mito da heterossexualidade compulsiva, basta pensar na imagem do clitóris como pénis. Através dela, a ideologia heterossexista diz aos homens o seguinte: olha para o clitóris como um substituto do pénis. Porém, ao falar assim, a ideologia heterossexista reconhece que o homem é potencialmente homossexual.
O clitóris-pénis tem um duplo-aspecto-efeito: masculiniza a mulher e intimida o homem ou faz dela um homem e agrada ao impulso homossexual do homem. Porém, a experiência pode ser frustrante: o homem amigo do clitóris pode partir e ir à procura do pénis. Isso sucede em Itália e em Portugal.
A transgressão das normas de género masculino pelos homens gay não é suficiente para justificar a homofobia. Primeiro, porque as normas de género masculino variam de cultura para cultura. Segundo, porque, face à evidência empírica disponível, o que incomoda o homófobo não é tanto a violação das normas, mas o facto dela despertar o seu desejo homossexual reprimido. A evidência diz-nos que o homófobo é uma bicha frustrada.
Em Portugal, com os "filósofos" que temos, é impossível fazer o elogio da Filosofia: Eles mataram a Filosofia. Porém, a Filosofia atravessa um mau momento em todos os países ocidentais: as modas parisienses desgastaram a pesquisa filosófica e quebraram a continuidade da pesquisa fundamental. É preciso repensar a filosofia nas suas conexões com a ciência e a política: o mito positivista deve ser desinstitucionalizado. A Filosofia é conhecimento: esquecer isso é reduzir a filosofia a nada ou - o que é pior - a algo inofensivo. O Império da Opinião deve ser demolido e os seus portadores eliminados.
Os alemães têm produzido as melhores obras de Filosofia Médica. Hoje estive a ler algumas. Porém, o campo da Filosofia Médica é extremamente complicado. Sempre privilegiei a via que vai da patologia à fisiologia, mas neste momento vacilo: as teorias médicas disponíveis não captam a complexidade da biomedicina.
Steussloff & Gniostko (1968) escreveram uma obra monumental "A Imagem Marxista do Homem e Medicina", onde estabelecem como meta da medicina marxista o «homem social sadio». Ora, a medicina marxista é aqui pensada como antropologia. No entanto, acho ser possível questionar Marx sobre o problema do normal e do patológico: a minha intuição é que Marx concede prioridade ao patológico, até porque a sua "utopia social" é algo que ainda não foi realizado. Há portanto um repto marxista à abordagem de Comte.
De certo modo, Marx herda os problemas e as temáticas da medicina hipocrática e aprofunda-os. Ora, os princípios da medicina marxista permitem-nos detectar os erros das análises de Michel Foucault: o conceito de natureza não pode ser despachado. Direccionar o nosso olhar para a medicina permite-nos actualizar Marx. A Marxfobia é uma doença mental.
Só há um caminho para impedir a catástrofe: Usar a genética e a biomedicina para eliminar a maldade dos indivíduos de Direita.
O Jovem-Marx analisou conceitos-chave da Tradição da Medicina, em especial os conceitos de natureza e da relação do homem com outro homem que se comporta como "animal político". Deste modo, o seu Humanismo cristaliza-se a partir do Naturalismo.
Se a meta da medicina marxista é o homem social sadio, então podemos dizer que ela aprofunda a medicina hipocrática. A natureza pode eliminar o que torna a pessoa doente e restituir-lhe a saúde. Isto significa que a medicina grega é essencialmente formação do homem, é medicina antropoplástica, cuja arte terapêutica consiste no cuidado privado do corpo e num serviço público em prol da saúde denominado "politike". Com os novos progressos da medicina, é fácil recuperar estes conceitos gregos a partir da abordagem antropológica de Marx.
Ao esquecer a tradição marxista, a Esquerda europeia ficou sem orientação teórica e política. A Direita está a aproveitar essa amnésia da esquerda para destruir o Estado Social e o Serviço Nacional de Saúde. Marx continua a ser a luz que orienta práticas políticas de esquerda; sem ele, não há política de esquerda.
Sou mesmo teimoso e não desisto facilmente das tarefas que me proponho: Pensar a biomedicina de modo a elaborar uma nova Filosofia Médica e uma Teoria Geral da Medicina. Passei todo o dia a estudar a evolução das ideias biológicas e médicas, na tentativa de descobrir um fio condutor. Porém, já ao fim da tarde, a minha mente foi caçada por uma ideia: a do desaparecimento do normal e do patológico ou, pelo menos, a emergência de uma abordagem plural. Quando passamos do macroscópio ao microscópio, torna-se oneroso classificar as doenças: a revolução do objecto e da óptica - a biologia molecular - faz desaparecer a nosologia. No entanto, suspeito que podemos actualizar a medicina hipocrática a partir desta revolução sem precedente.
A Clínica surgiu no século XVII, fazendo o termo referência ao leito onde o doente repousa. Ora, o desenvolvimento das teorias médicas nos finais do século XIX e no decorrer do século XX tornou desnecessária a clínica.
Ao longo da história, a medicina produziu mais mortes do que "curas". A sua amplitude contrastava com a sua eficácia: muitas das pestes referidas pela história de Portugal foram crises de fome; as pessoas morriam de fome e não da peste. No entanto, nos conceitos da medicina hipocrática descobrimos ideias seminais que moldaram a evolução das ideias médicas.
Com a descoberta dos micróbios, o homem sentiu-se estranho num universo repleto de inimigos invisíveis. A bacteriologia levou à imunologia: a imunidade humoral é uma homenagem a Hipócrates.
"Abram os cadáveres": Esta palavra de ordem deu origem à anatomia e, posteriormente, à anatomia patológica. Logo aqui a medicina ocidental marca a diferença: a medicina chinesa é uma medicina sem anatomia. Porém, a dissecação dos cadáveres matou muitos "médicos" com a "picada anatómica". A ideia de infecção andava no ar, não podendo ser tematizada sem instrumentos.
O desenvolvimento da medicina foi bloqueado por diversas forças: a Igreja Católica tentou travar o uso dos cadáveres para a descrição anatómica e os "amigos dos animais" lutaram contra a experimentação animal sem a qual não haveria fisiologia. Porém, todos estes obstáculos foram superados e hoje todos beneficiam com o progresso da medicina. A história da anestesia pode ilustrar esta luta entre forças retrógradas e forças revolucionárias.
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