terça-feira, 6 de novembro de 2007

Orçamento de Estado e Sociedade de Risco

Prós e Contras, o programa de Fátima Campos, tratou hoje (5 de Novembro de 2007) d' «As Contas dos Portugueses», mais especificamente do orçamento de Estado para o próximo ano, defendido pelo Ministro das Finanças, F. Teixeira dos Santos, e «contrariado» (sic) por Mira Amaral.
Como seria de esperar, o Ministro das Finanças mostrou mais uma vez a sua mestria e grande competência, mostrando não só domínio absoluto dos assuntos, sempre no quadro de uma política socialista preocupada com a justiça e o combate à pobreza, como também soube deixar os seus «adversários» sem argumentos. A prova disso está no facto de ter contado com o apoio quase incondicional de Artur S. Silva, um homem acima de qualquer suspeita e que não teme dizer as verdades, algumas das quais pouco agradáveis aos participantes da plateia, que defenderam «interesses corporativistas», metabolicamente reduzidos, como costumamos dizer, contra o interesse nacional.
Mais uma vez o governo apresenta o orçamento adequado ao momento: portanto, um bom orçamento de Estado que, se for como os anteriores, promete resultados positivos muito acima das expectativas definidas. Mira Amaral acabou por reconhecer o realismo do orçamento e, com excepção de um ou outro detalhe técnico, foi obrigado a mostrar mais concordância do que discórdia. O défice parece estar bem controlado e a economia portuguesa pode começar a crescer muito mais depois da estagnação a que a condenaram as políticas dos governos anteriores, a começar pelo governo de Cavaco Silva, como lembrou Artur S. Silva (Montepio). Um problema aflorado com insistência foi o das desigualdades sociais descomunais que se verificam em Portugal, o que exige do governo uma maior preocupação com a redistribuição da riqueza, sobretudo um maior apoio aos mais desfavorecidos.
Como o tempo escasseia, gostava de associar este breve comentário com o conceito de sociedade de risco elaborado por Ulrich Beck (1986). Apesar de ser uma das maiores obras de sociologia e de grande teoria social nos últimos tempos, «A Sociedade de Risco: Para uma Nova Modernidade» permanece uma obra relativamente desconhecida em Portugal, a não ser dentro de um pequeno circulo de especialistas. Por isso, pretendo começar a torná-la conhecida de modo gradual, dada a sua complexidade intrínseca e a enorme quantidade de assuntos tratados, na sequência deste último debate de «Prós e Contras». De facto, um orçamento de Estado pode ser visto como uma tentativa de controlar ou, pelo menos, minimizar os efeitos dos riscos imprevisíveis que, num mundo global, aparecem muito associados à globalização: um acontecimento global ocorrido numa zona distante pode ter efeitos ao nível local, sem que possa ser previsto com antecedência.
Os teóricos sociais têm oposto ao modelo clássico de sociedade industrial, aquele que foi pensado por Marx, Weber e Aron, entre outros, novos modelos de sociedade capazes de pensar a sociedade actual que supostamente substituiu a sociedade industrial e, nesta tarefa, foram praticamente forçados a entrar no debate Modernidade/Pós-Modernidade. Ora, o modelo proposto por Ulrich Beck tem o mérito de superar esse falso debate: se ao modelo de sociedade industrial estava associado a reflexibilidade simples (ortodoxa), o modelo de sociedade de risco associa-se à modernidade reflexiva que significa a possibilidade de uma (auto)destruição criativa para toda uma era: aquela da sociedade industrial. Portanto, a modernização reflexiva significa a autoconformação com os efeitos da sociedade de risco que não podem ser tratados e assimilados no sistema da sociedade industrial. As ameaças produzidas pela sociedade industrial tomam corpo na sociedade de risco e a incerteza está na ordem do dia.
Contudo, o contributo mais significativo da obra de Ulrich Beck reside no seu conceito de individualização paradoxal: a desintegração das certezas da sociedade industrial e a compulsão para procurar e inventar novas certezas para si e para os outros que não as possuem, mas também as novas interdependências, até mesmo globais. Isto significa que a individualização e a globalização são dois lados do mesmo processo de modernização reflexiva. Muitos são os teóricos sociais que incidem a sua atenção neste aspecto: Anthony Giddens, Jürgen Habermas, Scott Lash e Zygmunt Bauman que fala mesmo em sociedade individualizada. Por nossa parte, pensamos que a sociedade que se constrói silenciosamente pode ser vista como uma sociedade metabolicamente reduzida que, ao libertar os seres humanos das formas sociais da sociedade industrial, fomentando o impulso social de individualização que, em si mesma, é uma poderosa força de dependência, ameaça a própria cultura e a continuidade da civilização Ocidental.
De facto, Beck tem razão quando fala da «ausência de classes» e de outras formas sociais clássicas na sociedade de risco. Isto não significa que as classes não existam, porque continuam a existir. Significa que essas considerações passam para segundo plano. O indivíduo ocupa o primeiro plano e, quando julga poder decidir por si próprio, vê-se completamente sozinho e sujeito a um mercado de trabalho que nada lhe garante. As desigualdades sociais acentuam-se e o desemprego é sempre uma ameaça na vida das pessoas. Ninguém está livre da pobreza radical.
Em face deste auto-risco permanente, torna-se necessário pensar profundamente a sociedade em que vivemos e tentar minimizar os seus riscos. Uma política socialista deve identificar os riscos e tentar resolvê-los. É certo que, segundo Beck, nenhuma instituição pode controlar os riscos, mas, como somos herdeiros de Marx, devemos sonhar sempre para a frente e não cruzar os braços, como se nada pudéssemos fazer para evitar a catástrofe. Ao orçamento de Estado falta o ideal (Hegel), o sonho (Bloch), uma perspectiva de futuro. Mas, sem conhecermos a realidade, não podemos transformá-la (Lucien Sebag). Cabe à Filosofia assumir a sua tarefa, em vez de se perder em devaneios gratuitos: pensar a sociedade e a política.
J Francisco Saraiva de Sousa

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