quinta-feira, 7 de agosto de 2008

Condição Humana e Psiquiatria Interpessoal

Harry Stack Sullivan definiu a psiquiatria de modo a distanciar-se do modelo pulsional de Freud e, ao mesmo tempo, a avançar com um modelo relacional: "O campo da psiquiatria é o campo das relações interpessoais; uma personalidade nunca pode ser isolada do complexo das relações interpessoais nas quais a pessoa vive e tem o seu ser". Com esta definição de psiquiatria, Sullivan abraça a concepção da condição humana defendida por Rousseau, Hegel e Marx, segundo a qual a natureza humana só pode ser realizada no relacionamento, na interacção e na participação com os outros. Em oposição à concepção individualista de Freud e de Hobbes, Sullivan procura a realização humana no estabelecimento e na manutenção de relações com os outros: o homem individual é inconcebível, porque não há natureza humana fora da sociedade, como o demonstra facilmente a fenomenologia da experiência infantil. Sem a mãe ou outro substituto maternal para lhe satisfazer as necessidades, o bebé é inconcebível. A própria natureza prematura (Portmann) e incompleta (Bolk) do ser humano leva-o a estabelecer relações com os outros e é somente no campo destas interacções que o homem se torna humano.
As pessoas são motivadas por necessidades e Sullivan distingue duas categorias amplas de necessidades: as necessidades de satisfação e as necessidades de segurança. Ambas as categorias são relacionais: operam no campo interpessoal e estão intrinsecamente ligadas às relações entre o self e os outros. As necessidades de satisfação incluem as necessidades ligadas à regulação química da interacção entre o organismo e o ambiente, as necessidades de contacto emocional com os outros e as necessidades ligadas ao exercício livre de capacidades e funções, tais como o jogo e a auto-expressão. Como ser prematuro e não-completo, o bebé não pode satisfazer as suas próprias necessidades e, por isso, precisa de outras pessoas para cuidar das suas necessidades. O teorema da ternura é a expressão usada por Sullivan para explicar a maneira pela qual a expressão das necessidades do bebé induz à integração de uma interacção com a mãe que lhe presta assistência e cuidados maternais: o bebé expressa a sua necessidade, a qual desperta na mãe uma necessidade complementar que a impele a cuidar do seu filho. As necessidades de satisfação funcionam como tendências integradoras que sofrem diversas transformações durante o curso do desenvolvimento. O fracasso na satisfação destas necessidades interpessoais pode resultar na solidão, a mais dolorosa das experiências humanas.
Contudo, o fluir da vida e a integração bem-sucedida das situações é constantemente ameaçada pela ansiedade que, no bebé, é idêntica ao medo. A ansiedade não tem nada a ver com o bebé em si: este limita-se a captá-la nas pessoas que o rodeiam. Sullivan usa a expressão ligação empática para designar este processo de transmissão da ansiedade. Quando capta a ansiedade na sua mãe, o bebé fica muito aflito e muito ansioso, criando mais ansiedade na sua figura maternal que, por sua vez, cria mais ansiedade na criança. A primeira discriminação aprendida pelo bebé é entre estados não-ansiosos e estados ansiosos. Para Sullivan, a presença ou a ausência de ansiedade maternal é o factor que determina a presença ou a ausência de ansiedade no bebé e, no caso de estar presente na relação mãe/bebé, o seu poder pode acompanhar toda a vida deste novo ser vivo. Esta primeira discriminação é denominada boa mãe e má mãe, respectivamente: ambas são personificações compostas, a primeira por experiências tenras e não-ansiosas com todos os outros significativos (Mead) que interagem com a criança, e a segunda por experiências ansiosas com esses outros significativos. O começo da autoconsciência coincide com a precipitação desta primeira discriminação entre tensões e euforia (boa mãe) e períodos recorrentes aterrorizantes de ansiedade (má mãe), que são «percebidos» inicialmente como dois estados de ser difusos e indiferenciados, nos quais as imagens do self e as imagens dos outros estão unidas. Isto significa que o bebé não tem qualquer existência psicológica antes do seu «enquadramento» nas interacções com aquelas pessoas que cuidam das suas necessidades. A criança descobre-se a si mesma, bem como o objecto, através de um processo de desenvolvimento complexo, gradual e dependente do amadurecimento das suas capacidades cognitivas, no decorrer do qual se forma o self considerado como uma organização complexa da experiência derivada das interacções da criança com os outros significativos: "O sistema do self (...) é uma organização da experiência para evitar estados crescentes de ansiedade" (Sullivan).
Com a primeira experiência de ansiedade, a necessidade de segurança torna-se a preocupação predominante das capacidades em desenvolvimento do bebé e continua a ser assim durante toda a sua vida. Para controlar a ansiedade da mãe e, portanto, a sua própria ansiedade, a criança começa a desenvolver um conjunto complexo de processos que exigem a configuração constritiva das suas experiências e o bloqueio do acesso à consciência de certas dimensões nocivas destas experiências. O amadurecimento das capacidades cognitivas permite à criança começar a antecipar e a ligar o seu comportamento ao estado afectivo da mãe e, com base na primeira organização da experiência fundada na distinção entre má mãe e boa mãe, a criança aprende a organizar a sua experiência em função da área do comportamento que conta com a aprovação da mãe e da área do comportamento que torna a mãe mais ansiosa. Sullivan usa a expressão good-me para designar a área da experiência que evoca mais ternura e menos ansiedade na mãe, tornando a criança também menos ansiosa, e a expressão bad-me, para referir a área da experiência que provoca mais ansiedade na mãe, tornando a criança também mais ansiosa. Not-me é a expressão usada para designar as áreas da personalidade que evocam intensa ansiedade na mãe e, através da ligação empática, criam intensa ansiedade no bebé. As experiências good-me são acompanhadas por um senso de segurança e de relaxamento, as experiências bad-me evocam ansiedade crescente e as experiências not-me envolvem intensa ansiedade. O sistema do self utiliza esta organização rudimentar da experiência para controlar a ansiedade, tentando limitar a consciência ao conteúdo da experiência good-me, e, à medida que a criança amadurece, começa a utilizar um jogo complexo de processos, as chamadas operações de segurança, entre as quais se destacam a evocação de outros fictícios e as interacções paratáxicas, cujo funcionamento consiste em distrair a atenção do ponto de ansiedade, levando-a para outro conteúdo mental mais fora de perigo e mais seguro, de modo a dar um senso ilusório de poder.
Na teoria interpessoal de Sullivan, a vida é vivida na dialéctica entre a necessidade de satisfação e a necessidade de segurança. As experiências que requerem necessidades de satisfação são essencialmente "sem self" e, por isso, não exigem nenhuma autoreflexão, auto-engrandecimento ou auto-organização específica. A vida fundada na satisfação de necessidades flui tout court. Porém, a ansiedade interrompe constantemente este fluxo da vida e, devido ao nosso terror fóbico da ansiedade, um legado da primeira infância, a ansiedade desperta a necessidade de segurança. A busca de segurança é levada a cabo e mediada pelas operações do self, o qual dirige a atenção para longe da ansiedade que emerge no fluxo da vida ao criar um senso ilusório de poder e de controle sobre a vida. Todas as operações de segurança começam com o senso do self e o poder do self transmite um senso de falso domínio: as mais diversas formas de operações do self reflectem a qualidade narcisista e fantástica que possibilita ao self reduzir a ansiedade. Cada um de nós é possuído por um self que se estima e se aprecia e que se abriga do questionamento e da crítica e se expande por aprovação, sem levar em conta os nossos desempenhos objectivamente observáveis. O objectivo central da busca de segurança é apoiar e proteger este "self apreciado". Segurança significa, em última análise, ausência de ansiedade.
Isto significa que existe uma tensão contínua entre a busca de satisfações e a busca de segurança: a primeira conduz a integrações simples e construtivas com os outros e ao exercício gratificante das funções, enquanto a segunda leva à desintegração, a integrações não-construtivas com os outros e à fantasia e à ilusão autoconcentradas. Todas as situações interpessoais tendem a gerar conflito entre a pulsão para reafirmar a importância do self e a pulsão que procura satisfação através da cooperação. A busca de segurança tende a expulsar a busca de satisfação. Esta última é relativamente marginal: a nossa atenção é dominada predominantemente pelo prestígio, pelo status e pela importância que as outras pessoas pensam que merecemos. A busca de segurança constitui o princípio motivacional privilegiado da maioria das pessoas. A saúde mental pode ser medida em termos de equilíbrio entre a busca de satisfação e a busca de segurança. A ansiedade sobre a ansiedade está no centro da psicopatologia e constitui o princípio organizacional básico do self, o qual opera somente na necessidade de segurança, com base no princípio de que a ansiedade tem de ser reduzida ou evitada a todo o custo e que o poder, o status e o prestígio são, aos nossos olhos e aos olhos dos outros, o caminho mais amplo e seguro para a segurança. Na teoria de Sullivan, o self desempenha uma função negativa e de preservação: protege o resto da personalidade da ameaça de ansiedade e preserva o senso de segurança no qual as satisfações e os prazeres podem ser desfrutados. Está organizado em torno das configurações relacionais: forma, configura e distorce as suas próprias experiências, comportamentos e auto-percepções para manter e conservar a melhor relação possível com os outros significativos.
J Francisco Saraiva de Sousa

4 comentários:

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Hoje estou a viver um dilema entre a necessidade de satisfação e a necessidade de segurança: o corpo inclina-se na direcção da satisfação e o self aconselha a segurança. E lembrei-me de Sullivan e fiz o post! Deste modo, reduzi a ansiedade! :(

André LF disse...

Olá, Francisco! Gostei muito do tema escolhido.
Não sabia que você estava em férias.
Aproveite este tempo para descansar um pouco :)
Um abraço!

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Olá André

Aqui estão quase todos de férias e a fazer praia. Eu também estou de férias, mas vou espreitando o computer.

Abraço!

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

O post está concluído. Evitei sistematizar a teoria do desenvolvimento de Sullivan, para não dificultar a compreensão da sua teoria interpessoal da psiquiatria. Os conceitos fundamentais foram explicitados e desenvolvidos. Abstive-me de criticar o modelo relacional no destaque que dá à "adaptação", de resto severamente criticado por Marcuse e Fromm.

Continuação de boas férias e apareçam sempre... :)