sábado, 1 de novembro de 2008

Filosofia e Etologia Cognitiva

«Defined briefly, cognitive ethology refers to the comparative, evolutionary, and ecological study of animal thought processes, beliefs, racionality, information processing, and consciousness. Cognitive ethology can trace its beginnings to the writings of Charles Darwin, an anecdotal cognitivist, and some of his contemporaries and disciples. Their approach incorporated appeals to evolutionary theory, interests in mental continuity, concerns with individual and intraspecific variation, interests in the mental worlds of the animals, close associations with natural history, and attemps to learn more about the behavior of animals in conditions that are as close as possible to the environments in which natural selection has occurred or is occurring». (Allen & Bekoff)
O behaviorismo (John Watson, B.F. Skinner) defende que só podemos estudar cientificamente o comportamento objectivamente observável, donde resulta que a introspecção, a tentativa de examinar os nossos próprios pensamentos e sentimentos, é um método irremediavelmente defeituoso e inseguro, portanto destituído de utilidade para a análise científica. Em termos simples e literais, os behavioristas afirmam que não podemos prever nem planear nada, porque todos os nossos pensamentos sobre o que podemos fazer ou deixar de fazer são meras ilusões: os comportamentos que parecem resultar de alguma decisão consciente têm causas antecedentes, as quais, uma vez compreendidas, permitem predizer o comportamento sem levar em conta a preocupação pela intervenção de pensamentos ou sentimentos. Os estudos realizados em função desta abordagem, actualmente denominada heterofenomenologia (Daniel Dennett), não analisam o comportamento animal e humano como fonte de informação sobre o pensamento animal, mesmo quando muitos tipos de comportamentos, em especial os dos carnívoros sociais, sugiram a presença de pensamentos e sentimentos. Donald R. Griffin chamou tabu behaviorista à opinião científica dominante que proíbe considerar as experiências conscientes dos animais e dos homens. A etologia cognitiva visa abandonar o behaviorismo tout court, não tanto pelo facto de minimizar o valor dos animais vivos, mas sobretudo pelo facto de conduzir a uma visão científica da realidade incompleta e, portanto, enganosa. Segundo N. Tinbergen, a etologia encara o comportamento animal e humano em função da evolução, da adaptação (função), da causação e do desenvolvimento. E, neste sentido, a etologia cognitiva constitui uma importante extensão da etologia vista como "ciência integrativa" (Thorpe): ela explicita os "estados internos dos animais", fornecendo hipóteses adicionais susceptíveis de comprovação empírica e recorrendo a uma abordagem interdisciplinar que, além da psicologia comparativa e da etologia, integra a filosofia (Allen & Bekoff).
De um modo geral, a filosofia da mente desenvolveu as suas teorias antropocentricamente e, somente nalguns casos pontuais, estas teorias foram aplicadas secundariamente ao estudo de questões formais relativas à mentalidade animal. As teorias antropocêntricas afirmam que alguns organismos, pelo menos os humanos, podem ser descritos como tendo estados ou processos mentais. Alguns cientistas (B.B. Beck, G.G. Gallup, B.T. Gardner, R.A. Gardner, J. van Lawick Goodall, N.K. Humphrey, A. Jolly, O. Koehler, D. Premack, T.A. Sebeok, E. Linden) alargaram essa abordagem ao estudo da mente do símio, donde surgiu um conjunto de teorias primatocêntricas. Donald R. Griffin, o pioneiro na investigação da ecolocalização dos morcegos, criou o campo de investigação a que chamou etologia cognitiva, sem o qual o estudo comparativo do comportamento animal (etologia) fica incompleto, e, talvez sob a influência de Thomas Nagel (What is it like to be a... (bat)?), num diálogo intenso com a filosofia da mente, colocou no seu centro a consciência animal, mediante o recurso à terminologia lógica de M. Bunge. Griffin critica severamente a concepção cartesiana, alargada ao homem pelo behaviorismo, de que os animais são meros mecanismos ou robots que não pensam, e o solipsismo de espécie que vê o homem como a única criatura consciente do universo. Contra esta atitude derrotista, que nega a existência e a importância das experiências mentais, Griffin defende que a consciência animal pode ser cientificamente estudada, sem romper com o materialismo redutivo ou emergente (Churchland, Bunge, Armstrong): nenhum processo imaterial ou sobrenatural intervém na pequena fracção de acontecimentos cerebrais humanos ou animais que produzem, como efeitos, pensamentos e sentimentos subjectivos conscientes. No fundo, Griffin rejeita dois traços importantes do fisicalismo, a sua consistência e o facto dele fazer desaparecer a mente, mas retém o seu terceiro traço: à luz da teoria evolucionista, a matéria, e sobretudo os processos químicos, existiram antes dos processos mentais, aceitação que não representa uma ruptura definitiva com a teoria fisicalista.
Ora, esta é apenas uma das soluções dadas ao problema cérebro/mente, aquela que é considerada estar mais de acordo com a concepção científica do mundo. Depois de Descartes, a filosofia abriu-se a quatro possibilidades (J. Beloff, J.R. Smythies): (1) Aceitar a dicotomia cartesiana como essencialmente válida, defendendo o dualismo que pode ser de dois tipos ou intensidades: (a) um que permite uma interacção causal bidireccional entre os acontecimentos físicos e os acontecimentos mentais, a forma forte do dualismo interaccionista, e (b) outro que permite que os acontecimentos mentais sejam efeitos mas nunca causas, a forma débil de dualismo. (2) Reconhecer as entidades mentais como reais (Berkeley) e considerar as entidades materiais como uma abstração conveniente. (3) Reconhecer as entidades materiais como reais e descartar as entidades mentais como abstrações. Finalmente, (4) afirmar que certos acontecimentos são ao mesmo tempo mentais e materiais, a hipótese de identidade (H. Feigl) ou teoria do duplo-aspecto. O fisicalismo (Smart) tem dominado ultimamente e a teoria da identidade tem recebido uma diversidade de designações: interaccionismo emergente (Sperry), panpsiquismo identitário (Rensch), biperspectivismo (Laszlo), naturalismo biológico (Searle) ou materialismo emergentista (Bunge). A maioria dos filósofos defendeu, de algum modo, o dualismo interaccionista que foi brilhantemente tematizado por Descartes e, mais recentemente, retomado pelo último C.S. Sherrington, W. Penfield, John C. Eccles e, de certo modo, Karl Popper (teoria dos 3 mundos). O fisicalismo ou materialismo afirma que só existe o mundo físico que pode ser estudado pela ciência, mas tem sido completamente incapaz de explicar como a junção dos elementos físicos pode formar um organismo biológico funcional e, num nível superior, um ser consciente. Esta dificuldade do fisicalismo revela que se trata de um mero programa de investigação e não de um resultado: o mundo parece ser mais do que aquilo que pode ser compreendido pela física. Eccles faz três importantes críticas às teorias materialistas que pretendem estar de acordo com as leis da natureza no seu estado actual: 1) nas leis da física ou das ciências que dela derivam, a química e a biologia, não há qualquer referência à consciência ou ao espírito; 2) todas as teorias materialistas do espírito contradizem a evolução biológica da consciência; e 3) o seu postulado central afirma que os acontecimentos que têm lugar no aparelho neural do cérebro proporcionam uma explicação necessária e suficiente das acções e da experiência consciente de um ser humano. Revendo o argumento de Haldane, Popper mostra que o materialismo é auto-anulável, porque não pode ser sustentado por um argumento racional, argumento que é racional através de princípios lógicos considerados pelo próprio materialismo como uma ilusão ou uma ideologia. Diante da fragilidade do materialismo, alguns etólogos, em especial W.H. Thorpe, preferiram olhar noutra direcção, a de Eccles e de Popper, que já tinha sido vislumbrada em 1930 por H.S. Jennings, negando a derivação da unicidade do nosso self da nossa dotação genética ou da nossa experiência acumulada. Aliás, o fisicalismo é, como viu Popper, incompatível com a liberdade humana e Adorno soube mostrar que o materialismo marxiano é negativo: a sua realização é, ao mesmo tempo, o fim do próprio materialismo. De certo modo, a rejeição das diversas versões fisicalistas acaba por reforçar uma velha ideia filosófica: a consciência não é redutível a algum fenómeno pertencente a um nível inferior. A mente não é um mero órgão que se possa identificar com o cérebro, como fez Armstrong. A tentativa de criar uma biologia do espírito (Changeux) fica seriamente comprometida.
Alguns filósofos destituídos de conhecimentos empíricos e filosóficos fecham-se no cepticismo auto-antropocêntrico quanto à natureza ou até quanto à existência de mentes ou experiências diferentes da sua, o chamado problema das outras mentes (Dennett, Nagel). Esta discussão não se justifica, porque vivemos num mundo social onde interagimos constantemente com os outros, a partir de uma linguagem partilhada e de um acervo completo de conhecimentos e de experiências que nos foi legado pelos nossos antepassados. Mais importante do que esta discussão onerosa é procurar compreender os outros e, particularmente, a mente de outros animais, com os quais partilhamos a Terra, numa atitude de responsabilidade acrescida (Jonas). Após 20 anos de pesquisa empírica no domínio da cognição animal, David Premack enunciou a hipótese de que existem, pelo menos, três tipos de mentes: (1) Um tipo de mente, provavelmente partilhado pela maioria das espécies não-primatas, encontra-se especializado nas imagens, embora não possua códigos abstractos e linguagem e seja incapaz de reconhecer representações de acções e de realizar atribuições sociais. (2) Outro tipo de mente, a mente dos humanos, possui imagens, um código e linguagem (Herder, Humboldt, Karl Bühler, Noam Chomsky, John Austin, Mikhail Bakhtin, Émile Benveniste, Ernst Cassirer, Karl Popper, Edward Sapir, B. Lee Whorf, John Lyons, Heidegger). (3) O terceiro tipo de mente é o do chimpanzé: é uma mente que, além das imagens, possui capacidade de representação abstracta. O ensino da linguagem a este último tipo de mente não lhe confere uma linguagem humana, mas parece potenciar a sua capacidade para resolver problemas abstractos. Isto significa que a linguagem não é o único traço que separa a mente humana da mente do chimpanzé, embora ambas tenham de analisar os mundos físico e social e representá-los mentalmente. Estes resultados parecem ser demasiado "magros", talvez porque nos anos 70 os cientistas esperavam que Washoe atingisse os mais elevados níveis da oratória gestual. Como isso não aconteceu, instalou-se uma terrível desilusão. Porém, estas experiências revelaram aspectos importantes da mente do chimpanzé e abrem uma nova via para aceder à mente do homem. Falar com um chimpanzé não é, como observou Linden, o mesmo que ordenar a um cão que vá buscar o jornal. Cabe à etologia cognitiva revelar os mais diversos universos mentais dos animais e estudá-los numa perspectiva comparativa, de modo a iluminar a mente humana: "Eu não só estou vivo, como também consciente de estar vivo. Além disso, sei que não ficarei vivo para sempre, que a morte é inevitável. Possuo os atributos da autoconsciência e da consciência da morte" (Theodosius Dobzhansky).
J Francisco Saraiva de Sousa

11 comentários:

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Este post aborda questões muito complexas e, por isso, foi necessário espírito de síntese. Outros desenvolvimentos deste tema serão apresentados noutros posts. Aqui fica apenas o repúdio pelo fisicalismo e seu reduccionismo ontológico.

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Outra ideia que fica é a injustiça que tem sido feita a Descartes, bem como à psicologia introspectiva (Bühler) e à negligência da abertura típica da linguagem humana.

Fernando Dias disse...

Este esaio está muito bom.
“o mundo parece ser mais do que aquilo que pode ser compreendido pela física”.
Claro!
Eccles adopta um dualismo que me parece inconsistente, e mesmo em relação a Dennett tenho algumas dúvidas.

Ryle e Wittgenstein não acreditavam que a investigação empírica conseguisse resolver problemas matemáticos ou quaisquer problemas filosóficos.

Apesar de Dennett ter dito que deve muito a Wittgenstein, e ter sido aluno de Ryle e W.V.O.Quine, acabou por perfilhar Quine e fazer uma jogada arriscada. O lance arriscado, o da adopção do naturalismo quinenano, consistiu em propor-se explicar a mente a partir dos dados empíricos do cérebro. E arriscou tudo ao dizer que a investigação empírica iria ajudar a filosofia a resolver os seus problemas conceptuais tradicionais. Dennett aceitou combinar filosofia com ciência física para aperfeiçoar, com dados empíricos, preconceitos filosóficos.

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Fernando Dias

Penso que temos ao nosso dispor todos os conhecimentos necessários para apresentar novas alternativas teóricas. Precisamos abandonar certos preconceitos negativos, em especial o fisicalismo, e retomar a filosofia que não deve ser escrava da ciência redutora. Estamos cansados da física que, em vez de resolver os seus problemas, quer conduzir os outros conhecimentos. Precisamos de rever também a ontologia que é diferencial e não apenas fisicalista. A melhor filosofia para o fisicalismo (M1) é o silêncio, porque sempre que falam em seu nome se desmentem: o mundo 2 é autónomo, bem como o 3, o 4, o 5, etc. :)

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Só uma conversão total ao fisicalismo, com o uso quotidiano da sua linguagem, lhe daria alguma credibilidade. Contudo, seria o fim da humanidade: a física não é suficiente!

Fernando Dias disse...

Claro que se mantivermos o paradigma conceptual fisicalista e a teoria da evolução pela selecção natural, “a matéria e sobretudo os processos químicos existiram antes dos processos mentais”. Mas se fizermos meditações ontológico/fenomenológicas de tipo sartriano acerca da consciência, o conceito de matéria pode já não ser tão consistente, o materialismo falha. A teoria do duplo aspecto poderá ser interessante, se bem que não a conheça.

Fernando Dias disse...

A mente não é nenhuma entidade espacial. Temos o sistema solar. E a consciência, vem do sistema solar? E o sistema solar de onde vem? E por aí fora até sobrar a consciência que indaga a existência da sua própria existência. Foi através da consciência que Sartre chegou à conclusão que a existência precede e governa a essência. E é daqui que nos vem a liberdade. É curioso que Dennett é um compatibilista, isto é, considera perfeitamente compatível o determinismo cósmico com a liberdade da consciência. Como o primado está na consciência, que é a mesma coisa que a existência, dado não haver existência sem consciência, ela só poderia ter liberdade total. [É. Acontece. Pura e simplesmente. É o melhor que podemos dizer com palavras]. Determinismo cósmico e consciência livre combinam-se.

Anabela Rocha disse...

Olá Francisco!
Não sei se nos conhecemos pesoalmente - a sua cara não me é estranha - mas de qualquer forma parabéns pelo seu blog.
Apesar de não dominar nem de perto nem de longe a maquinaria conceptual que você aqui utiliza, partilho muitas das suas referências e obssesões, em particular a de cruzar as sexualidades com a filosofia política.
Quanto a este post, veja o conceito de "companion species" da Haraway - talvez goste.
Bom trabalho!

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Fernando Dias

Tenho estado a pensar que a última versão da hipótese dos microsites de Eccles, baseada na estatística quântica, pode ser interessante, porque é mais difícil explicar como da matéria resulta o espírito do que compreender a interacção entre duas "entidades": o cérebro e a consciência. O interaccionismo é a melhor hipótese. Se aceitarmos a antecedência da matéria ou o seu primado sobre o espírito, esbarramos sempre nos dois horizontes de Monod: o surgimento da vida e o surgimento do espírito humano. O argumento do bisturi é forte: lesões produzem défices mentais, talvez devido à destruição dos sítios onde a mente interage com o cérebro e o corpo (Eccles).

Outra coisa interessante é que a filosofia de Sartre (existencialismo) está ligada ao darwinismo e pode ser vista como uma reacção filosófica ao darwinismo, como mostrou Jonas. A Crítica da Razão Dialéctica de Sartre inspira-se em Hobbes! A escassez...

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Olá Anabela Rocha

Sim, gosto de ler Haraway e vou ver. Logo que tenha tempo faço um link com o seu blogue! :)

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Anabela Rocha

De facto, mesmo ao nível da humanidade, existem pelo menos duas mentes, uma masculina e outra feminina. Já abordei diversas vezes o tema das diferenças sexuais e de género.