domingo, 1 de fevereiro de 2009

Capitalismo e Nascimento da Ciência Moderna

«A filosofia está escrita nesse livro imenso que está sempre aberto diante dos nossos olhos, quero dizer, o Universo, mas só podemos compreendê-lo se nos dedicarmos primeiro a compreender a sua língua e a conhecer os caracteres com que está escrito. Está escrito na linguagem matemática e os seus caracteres são triângulos, círculos e outras figuras geométricas, sem o recurso aos quais é humanamente impossível compreender uma palavra. Sem eles, é uma divagação vã num labirinto obscuro». (Galileu Galilei)
«As matemáticas escrevem-se para os matemáticos». (Copérnico)
«Se não puderes medir, o teu conhecimento é deficiente e insatisfatório». (Lord Kelvin)
A Física pode ser definida como a "ciência da medida", isto é, como a ciência que exprime em números tudo aquilo que estuda. A definição de uma grandeza física deve prover um conjunto de regras para a calcular em termos de outras grandezas que possam ser medidas. Assim, por exemplo, quando o momento linear é definido como o produto da massa pela velocidade, a regra para o calcular está contida na definição, sendo apenas necessário saber como medir a massa e a velocidade. Ora, esta aliança entre a física e a matemática está na base da física matemática moderna e, como tal, constitui uma invenção relativamente recente: a filosofia matemática da natureza data dos séculos XVI e XVII e deve-se a Copérnico (1473-1543) e a Galileu Galilei (1564-1642), cujo precursor foi o seu mestre Arquimedes (287-212 a.C.), o philosophus platonicus segundo a tradição doxográfica, fundador da estática enquanto ciência do equilíbrio. Copérnico e Galileu foram influenciados pelo neoplatonismo florentino que defendia o estilo matemático do pensamento (magia matemática), o culto do Sol, ideia subjacente à noção copernicana de um sistema construído sobre o Sol central (heliocentrismo), e a perfeição de um mundo infinito. Ambos abraçaram a epistemologia platónica, rompendo não só com a epistemologia aristotélica mas também com a física e a metafísica de Aristóteles.
A Física abrange diversos ramos e disciplinas, entre os quais destacamos o mais famoso, a mecânica, que estuda as relações entre força, matéria e movimento. A mecânica compreende a dinâmica, que estuda o movimento e as forças que o causam, a estática, que trata de casos especiais em que a aceleração é nula, e a cinemática, que lida unicamente como o movimento, matematicamente falando. A dinâmica moderna cobre quase toda a mecânica e o seu fundador foi, num primeiro momento, Galileu Galilei. É esta fundação, mais precisamente a revolução científica, bem como o conceito de ciência nela implicada, que iremos estudar. A revolução científica dos séculos XVI e XVII, à qual estão ligados os nomes de Copérnico, Galileu, Descartes, Kepler e Newton, entre tantos outros, implicou uma mutação intelectual radical, da qual a ciência física moderna e a filosofia moderna são, ao mesmo tempo, os frutos e as expressões. O princípio de continuidade defendido por P. Duhem é cabalmente desmentido pelos estudos histórico-filosóficos de A. Koyré, T.S. Kuhn e H. Butterfield.
1. Teorias da Revolução Científica. A revolução científica dos séculos XVI e XVII constitui talvez a maior revolução intelectual consumada, embora ainda não tenhamos uma teoria cabal desta grande mutação intelectual que se inicia durante o Renascimento e que se prolonga até ao século XVIII, pelo menos até Kant. Geralmente, os seus estudiosos têm dado mais atenção à revolução copernicana e ao renovar da astronomia: a substituição da astronomia de Ptolomeu (século II d.C.) pela astronomia copernicana, substituição consumada por Kepler (1571-1630) graças às observações cuidadosas e fidedignas acumuladas por Tycho Brahe (1546-1601). Mas esta é uma mutação radical que se reflecte em diversos níveis do conhecimento e da vida cultural e social. Foram propostas, pelo menos, três teorias fundamentais para explicar esta mutação intelectual.
1.1. A primeira teoria explica esta revolução pela transformação completa e radical de toda a atitude fundamental do espírito humano: o seu traço fundamental reside na substituição de uma vita contemplativa (theoria) por uma vita activa. Geralmente, os defensores desta teoria tendem a destacar o papel de Bacon (1561-1626). Para Bacon, conhecer é poder. Isto significa que o conhecimento da natureza é virtualmente o domínio da natureza. A moderna ciência da natureza dirige-se não a um conhecimento teórico, mas a uma acção: ciência e técnica estão intimamente ligadas. A tendência mecanicista da física clássica é explicada por este desejo de dominar e de agir do homem moderno. A física de Galileu, de Descartes ou de Hobbes é uma sciencia activa que visa tornar o homem "senhor e dono da natureza" (Descartes). Leroy e Borkenau explicaram o nascimento da ciência e da filosofia cartesianas pelo aparecimento de uma nova forma de empresa económica: a manufactura. Esta perspectiva não implica que a ciência clássica seja obra de artesãos, técnicos ou engenheiros: ela foi desenvolvida efectivamente por teóricos e filósofos. Apesar disso, Hannah Arendt ou mesmo Bergson têm razão quando a consideram como uma aplicação à natureza das categorias do pensamento do Homo faber: "Não foi a razão, mas um instrumento feito pela mão do homem, o telescópio, que realmente mudou a concepção física do mundo", isto é, o que levou os fundadores, em especial Galileu e Descartes, ao novo conhecimento "não foi a contemplação, nem a observação, nem a especulação, mas a entrada em cena do homo faber, da actividade de fazer e de fabricar" (H. Arendt).
1.2. A segunda teoria insiste sobretudo na luta de Galileu contra a autoridade e contra a tradição de Aristóteles e da Igreja, destacando o papel da observação e da experiência na elaboração da nova ciência da natureza. Esta teoria não é incompatível com a primeira, mas convém, neste momento, distinguir entre a "filosofia espontânea dos cientistas" (Althusser), tal como se revela depois do positivismo, uma degenerescência do impulso da revolução científica, e a filosofia da ciência: o discurso da experiência no sentido da "pergunta colocada à natureza" (Galileu) não é "real". As experiências relatadas por Galileu ou por Pascal não foram efectivamente realizadas e, se tivessem sido realizadas, os resultados desmentiriam as novas teorias. A teoria matemática precede a experiência e as experiências referidas pelos fundadores foram experiências de pensamento. Como observou H. Arendt, a moderna reductio scientiae ad mathematicam anulou o testemunho da observação da natureza a curta distância pelos sentidos e esta anulação está claramente presente na obra de Giordano Bruno (1548-1600), que, acompanhando Nicolau de Cusa, defendeu os conceitos de universo infinito e de infinidade de mundos, povoados por outros seres inteligentes. De facto, esta perspectiva teórica da revolução científica pode ser esclarecida pela distinção que Kuhn estabelece entre "ciências clássicas" e "ciências baconianas": as primeiras protagonizaram a revolução científica, pelo menos nos seus primeiros momentos heróicos. A. Koyré e H. Butterfield têm razão quando afirmam que a filosofia de Bacon foi, em termos da nova ciência, uma espécie de "embuste". As descobertas experimentais desempenharam um papel pouco relevante na revolução científica.
Em 1610, a Igreja Católica entrou oficialmente na luta contra o copernicianismo e os copernicanos deixaram de ser rotulados de infiéis e ateus e passaram a ser formalmente acusados de heréticos. Em Roma, Giordano Bruno foi queimado vivo na fogueira da Inquisição. Em 1616, o obra de Copérnico e todas as obras que afirmassem o movimento da Terra em torno do Sol foram colocadas no Índex, os copernicanos católicos foram expulsos e as suas opiniões condenadas e, em 1633, Galileu foi preso e obrigado a retractar-se. De facto, a Igreja tinha "razão" ao proceder deste modo, porque o copernicanismo era potencialmente destrutivo de toda uma forma ou estilo de pensamento, mas a sua reacção contra a nova ciência realizou-se durante a Contra-Reforma, portanto, mais como uma reacção contra a Reforma protestante do que pelo conhecimento pleno das implicações revolucionárias do copernicanismo. Muito antes da Igreja Católica ter tomado esta decisão oficial, a doutrina de Copérnico já era atacada por Lutero e por Calvino, mediante a alegação de que desmentia a Sagrada Escritura. Com a teoria de Copérnico, o mundo fechado cedia o seu lugar a um universo aberto: não somente um universo cognitivo mas também um novo universo social, onde o homem perdeu o seu lugar e a sua posição privilegiada na "criação": a sua alienação do mundo coincide com o subjectivismo da filosofia moderna e a racionalidade instrumental (Horkheimer & Adorno).
1.3. Nenhuma das teorias anteriores é completamente verdadeira ou completamente falsa: cada uma delas acentua traços importantes da nova ciência da natureza, embora não sejam necessariamente os traços mais marcantes. A. Koyré elaborou uma terceira teoria que afirma que a atitude intelectual da ciência clássica se caracteriza por dois traços que se completam um ao outro, a saber: a destruição do cosmos e, consequentemente, o desaparecimento na ciência de todas as considerações baseadas nessa noção de um mundo finito, nomeadamente o princípio aristotélico da teleologia (1), e a geometrização do espaço, isto é, a substituição da concepção de um espaço cósmico qualitativamente diferenciado e concreto, o espaço da física pré-galilaica, pelo espaço homogéneo e abstracto da geometria euclidiana (2). Isto significa que a ciência clássica fundada por Galileu e Newton pode ser caracterizada por duas características: a matematização (geometrização) da natureza e, por conseguinte, a matematização (geometrização) da ciência. Esta última característica deve-se mais a Descartes do que a Galileu ou mesmo a Newton.
Ora, o Renascimento trouxe consigo a ascensão da burguesia e, portanto, a ascensão de uma economia de mercado, na qual o valor qualitativo dos produtos do trabalho humano se evapora cada vez mais no valor quantitativo de troca desses produtos no mercado. A mercantilização de todos os homens e de todas as coisas transforma as qualidades do trabalho e dos seus objectos em magnitudes abstractas, expressáveis em números. Este interesse mercantil acentua-se com o desenvolvimento da manufactura. Aqui reside o interesse pelo cálculo e pelo domínio contável da realidade. Esta base económica da formação do cálculo matemático contribuiu decisivamente para o prestígio dos números, que na Idade Média foram considerados somente de um modo mágico, como mística aritmética. Podemos dizer que não há uma matemática medieval, embora os árabes tenham introduzido a álgebra e o número zero já fosse conhecido. A Península Ibérica que iniciou o movimento das descobertas geográficas auto-excluiu-se do processo capitalista: os seus livros de contabilidade limitavam-se a anotar as dívidas. A época do florescimento matemático desenvolveu-se em França, onde a relação entre a matemática e a economia burguesa foi particularmente estreita e evidente. A captação dos objectos da natureza numa ordem matemática está associada ao surgimento de uma economia de mercado. Este "factor extra-lógico" ajuda a compreender os traços destacados por Koyré da revolução intelectual do século XVII, levando em conta os traços acentuados pelos outras duas teorias expostas. A relação entre a matemática e a economia de mercado não é uma relação simples, mas uma relação complexa e mediatizada, sem a compreensão da qual não podemos explicar integralmente a revolução científica e as reacções cépticas e/ou adversas que produziu até aos nossos dias. A filosofia da matemática, pelo menos na sua versão logicista, é incapaz de explicar a relação entre a matemática e a realidade, talvez por ser demasiado platónica e por desprezar a sua associação com a economia de mercado, de resto revelada pela teoria de Marx. (CONTINUA com o título "O Nascimento da Ciência Moderna 2".)
J Francisco Saraiva de Sousa

4 comentários:

Fräulein Else disse...

Oi F.! Tudo bem? Já tinha saudades virtuais. :)
O que acha de tudo isto acerca da suposta acusação de Sócrates? Espero que não se venha a confirmar, pois seria o desastre neste país já muito débil politicamente. :(
N quero ser pessimista, mas julgo que esta crise económica global vai ser bastante devastadora por aqui... e que Fénix ressurgirá? :(

madalena madeira disse...

Olá f,

- Aspectos técnicos da adaptação do trabalho ao Homem – Ergonomia:
• Carga física do trabalho (força+distância movida) – produto obtido quando uma força vence uma resistência e produz um movimento, ou seja, quando move o seu ponto de aplicação, cujo valor é igual ao produto da força pela distância movida na direcção da força.

*Carga de trabalho (força) – custo da actividade de trabalho para um determinado indivíduo num momento preciso e em condições especificas, sendo que estas se encontram em permanente mudança.

• Sobre – esforços e sobrecargas posturais (dor) – estas dão-se quando a natureza das tarefas e as condições de realização impõem ao trabalhador a adopção de posturas penosas, condicionando uma sobrecarga biomecânica para as articulações (junta de dois ou mais ossos) e tecidos circundantes.

*Biomecânica – Aplicação das leis da Cinética e da Dinâmica aos seres vivos.
*Dinâmica – Parte da Mecânica que estuda as forças que produzem o movimento dos corpos.
* Cinética – Estudo da extensão das forças consideradas nos movimentos variados.
* Mecânica – Ciência das leis dos movimentos e do equilíbrio aplicados às máquinas.
As posturas penosas ou inadequadas determinam uma excessiva tensão em determinadas regiões corporais.
A postura é um factor importante no desenvolvimento das lesões músculo-esqueléticas ligadas ao trabalho (LMELT).

* Perturbação músculo-esquelética – ex.: cervicalgia.

- Patologias específicas associadas a movimentos repetitivos, à realização de força e/ou ausência de períodos e recuperação:
- Tenossinovite dos flexores ou extensores do antebraço e punho (flexão ou extensão extremas do punho, provocando a inflamação da bainha de um tendão);
- Tenossinovite estenosante Crepitante – (ex.: trabalho com tesouras) – Lesão músculo-esquelética cuja pressão localizada sobre determinados tecidos do corpo desencadeia o aparecimento dos tecidos moles, como por exemplo, quando existe compressão a nível digital por pregas de tesouras.
- Tendinite de Quervain (desvio radial ou cubital do punho);
* Tendinite – inflamação de um tendão;
- Lesões ao nível do ombro (flexão ou extensão dos ombros);
- Síndrome do Túnel Cárpico (flexão extrema do punho) – Síndrome caracterizado por sintomas secundários à compressão do nervo mediano, no canal cárpico (relativo ao punho), e que se manifesta por alterações da sensibilidade, dores paresia (paralisia temporária) da adução (movimento activo ou passivo que aproxima um membro do plano médio) do dedo polegar e atrofia (redução dos tecidos) da eminência ténar (relativo à palma da mão, músculo do polegar). Dificuldade em manter o cotovelo em extrema flexão;
- Síndrome do Túnel Cubital – (manutenção do cotovelo em extrema flexão);
- Síndrome do desfiladeiro torácico – (trabalhos que exigem que o trabalhador mantenha os membros superiores acima do ombro ou em movimentos repetitivos acima do nível do ombro). Os sintomas são dor no braço, mão, ombro e pescoço, devido a movimentos de abaixamento prolongado do ombro, transporte de cargas pesadas sobre o ombro.
- Epitrocleíte e Epicondilite (rotação do antebraço de modo repetitivo ou em carga).

* Tecido – parte sólida dos corpos organizados.
* O Síndrome do Túnel Cárpico – Afecta frequentemente os Técnicos de Informática, Escriturários…
* Tendinites – surgem após tarefas repetitivas e de carácter estático.

Espero q tenha interesse,
Madalena Madeira

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Oi Fraulein Else

Sim, a situação está muito estranha e surgiram novas chamadas "provas". Sinceramente, acho que a situação deve ser esclarecida e rapidamente. Penso que se passa algo muito estranho no poder estabelecido: as pessoas dizem que aqueles que ficaram ricos já nãp ligam ao povo; este que se lixe.

Oi Madalena

Obrigado pela texto, mas apenas vou tratar da revolução científica sem entrar em temas da biomecânica cujos conceitos deixou aqui. :)

Estive estes dias fora; agora vou tentar concluir o post.

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Bem, o segundo post desta série está quase concluído, mas só será editado depois do comentário sobre o programa Prós e Contras. :)