quinta-feira, 19 de fevereiro de 2009

Filosofia da Ciência de G. Bachelard (2)

«A ciência, soma de provas e de experiências, soma de regras e de leis, soma de evidências e de factos, tem pois necessidade de uma filosofia de dois pólos. Mais exactamente ela tem necessidade de um desenvolvimento dialéctico, porque cada noção se esclarece de uma forma complementar segundo dois pontos de vista filosóficos diferentes». (Gaston Bachelard)
A análise espectral revela a identidade na "inversão", a qual se apoia num certo número de pares de categorias filosóficas, em que cada termo pode ser, alternadamente, dominante ou dominado. Estes pares de categorias filosóficas, tais como sujeito-objecto, abstracto-concreto ou dado-construído, constituem o "conteúdo" aparente das teorias filosóficas do conhecimento e todos eles têm por correlação e por cimento a categoria filosófica universal e absoluta da Verdade, que se apresenta como o conceito do seu acordo e que, por isso, fecha o espaço da filosofia. Ora, esta categoria, que leva a pensar que a conclusão do processo de conhecimento é sempre, por princípio, possível ou realizado, impede a compreensão da história efectiva do conhecimento científico: as suas rupturas, mutações, reorganizações, insucessos, contradições, perturbações, cismas e riscos. Por isso, a epistemologia, pelo facto de ser histórica, deve prestar mais atenção ao Erro, ao insucesso, às hesitações, do que à Verdade: o espaço da filosofia da ciência é um espaço aberto e não sistemático. Ao "privilegiar" mais o Erro do que a Verdade, a filosofia da ciência de G. Bachelard aproxima-se do falsificacionismo ou refutabilismo de Karl Popper, mas, como demonstrou Imre Lakatos, dado ser convencionalista, a metodologia popperiana é absolutamente alheia ao universo bachelardiano. Para Bachelard, a ciência contemporânea rectifica e normaliza o conhecimento científico, eliminando toda a possibilidade de um regresso a noções erradas e transformando a forma realista em forma racionalista, e o tecido da sua história é "o tecido temporal da discussão": o progresso da ciência é o progresso da sua racionalidade e "a história das ciências é a história das derrotas do irracionalismo". O refutabilismo é, nesta perspectiva, uma epistemologia unitária, portanto, uma filosofia de filósofos, e, como tal, está deslocada em relação ao eixo, isto é, em relação à prática científica efectiva. A actividade racionalista da ciência contemporânea exige, pelo contrário, uma filosofia aberta, plural e dialogada. Popper fecha o espaço filosófico, preenchendo-o com uma teoria unitária do conhecimento, o racionalismo crítico, que capta de uma só vez e num só golpe a totalidade em marcha e incompleta da história das ciências. Contra o carácter unitário de uma tal filosofia da ciência e da sua noção de ciência como "esclarecimento do senso comum", Bachelard afirma que a filosofia só pode ajudar a ciência na sua luta contra as intuições primeiras quando renunciar ao real imediato, opondo-se radicalmente à opinião: "A opinião pensa mal: ela não pensa: traduz necessidades em conhecimentos. Ao designar os objectos pela sua utilidade, coíbe-se de os conhecer. Nada se pode fundar a partir da opinião; é necessário, antes de mais, destruí-la. Ela constitui o primeiro obstáculo a ultrapassar".
Ora, a filosofia do não de Bachelard é uma filosofia aberta e uma filosofia aberta é "a consciência de um espírito que se constrói no trabalho sobre o desconhecido, buscando no real aquilo que contradiz conhecimentos anteriores": a polémica bachelardiana não só reconhece que a filosofia está em atraso em relação à ciência, como também detecta que os cientistas não professam sempre a filosofia "adequada" à sua própria ciência, já que recorrem à filosofia dos filósofos quando reflectem sobre a sua prática científica. Para pensar o porquê desta intervenção da filosofia dos filósofos na filosofia dos cientistas ou, como lhe chamou Louis Althusser, da filosofia espontânea dos cientistas, Bachelard elabora um complexo sistema de novos conceitos. O primeiro conceito construído por Bachelard, aquele que sustém o edifício, é o de obstáculo epistemológico. Este conceito designa os efeitos na prática dos cientistas, da "relação imaginária" (Althusser) que o cientista mantém com a ciência que exerce. Bachelard interessou-se mais pelo seu efeito único do que pelo seu mecanismo: ao contrário da categoria do não, a noção de obstáculo epistemológico pretende preencher a ruptura entre o conhecimento comum e o conhecimento científico, de modo a restabelecer a continuidade ameaçada pelo progresso revolucionário dos conhecimentos científicos. Se admitirmos que o conhecimento científico só pode progredir pelas suas próprias reorganizações racionais, mediante a actividade racionalista, então o obstáculo epistemológico aparece sempre que uma organização do pensamento existente, científico ou não, se encontra em perigo. Para Bachelard, a filosofia dos filósofos é, pois, o veículo e o suporte dos obstáculos epistemológicos, visto que é ela que estrutura a relação do cientista com a sua prática científica. A razão evoluída exige a ultrapassagem desses obstáculos que entravam a relação correcta dos cientistas com as ciências que praticam. É certo que a actividade científica consiste em "saber formular problemas", mas, como os problemas não se formulam a si próprios, o cientista deve, antes de tudo, apreender o sentido do problema, mediante a conversão à filosofia adequada, o racionalismo aplicado articulado com o materialismo técnico: "Para um espírito científico, todo o conhecimento é uma resposta a uma questão. Se não houver questão, não pode haver conhecimento científico. Nada é natural. Nada é dado. Tudo é construído".
As categorias positivas que possibilitam o reconhecimento dos obstáculos epistemológicos e o respeito pelas rupturas epistemológicas e reorganizações do pensamento científico, são apresentadas segundo uma concepção inédita da dialéctica. Em Bachelard, a dialéctica designa a realidade do trabalho científico: o processo de ajustamento recíproco da teoria e da experiência, da matemática e da experiência depurada. O pensamento científico contemporâneo é profundamente dialéctico, não no sentido de suprimir o dualismo inscrito na história da ciência, mas no sentido de procurar uma conciliação, mais precisamente um compromisso. A realidade científica aparece sempre como o ponto de afluência de duas perspectivas filosóficas, uma rectificação empírica unida a uma precisão teórica: "A geometria não-euclidiana não é feita para contradizer a geometria euclidiana. Ela é antes uma espécie de factor adjunto que permite a totalização, o acabamento do pensamento geométrico, a absorção numa pangeometria. Constituída à orla da geometria euclidiana, a geometria não-euclidiana delineia de fora, com uma luminosa precisão, os limites do antigo pensamento". A dualidade que se manifesta na realidade, tal como a dualidade onda e corpúsculo, exige uma espécie de polarização epistemológica. Isto significa que, se a ciência contemporânea se ocupa da "verdadeira síntese das contradições metafísicas", a filosofia da ciência deve ser vista como uma filosofia dispersa, como uma filosofia distribuída: "Uma só filosofia é insuficiente para dar conta de um conhecimento preciso". Embora possa ser exposto numa filosofia particular, um conhecimento particular não pode fundar-se numa filosofia única: o seu progresso implica aspectos filosóficos variados e complexos. A polaridade epistemológica demonstra que cada uma das doutrinas filosóficas, nomeadamente o empirismo e o racionalismo, é o complemento efectivo da outra, ou seja, uma acaba a outra, embora o sentido do vector epistemológico vá sempre do racional ao real. A dialéctica científica é, pois, pensamento da complementaridade (Ferdinand Gonseth): o seu progresso faz-se no sentido de um racionalismo aplicado crescente, eliminando o realismo inicial. Ora, dado recusar todo o ponto de vista fixo e unitário mediante a rejeição prévia do par sujeito-objecto, Bachelard é obrigado a pensar este ajustamento, não como adequação, mas sim como processo histórico que se realiza mediante movimentos sucessivos e descontínuos de aproximações racionais cada vez mais precisas à realidade construída. O reconhecimento da historicidade do objecto da epistemologia, o crescimento do conhecimento científico, impõe uma nova concepção da história das ciências: "A consciência de modernidade e a consciência de historicidade são rigorosamente proporcionais". A história epistemológica é, para Bachelard, uma dupla-história: uma história sancionada, a história do científico da prática científica, e uma história caduca, a história das intervenções do não-científico na prática científica. Ambas exorcizam a "paleontologia de um espírito científico desaparecido": a história recorrente parte das certezas do presente e descobre, no passado, as formações progressivas da verdade. Ela é feita para tomar consciência da força de certas "barreiras que o passado do pensamento científico formou contra o irracionalismo".
A polémica bachelardiana contra as teorias filosóficas do conhecimento exige, pois, a rectificação da categoria filosófica de experiência pela apreciação crítica da função dos instrumentos na produção de conceitos científicos. Para Bachelard, os instrumentos científicos são "teorias materializadas". Um dos traços mais característicos das ciências contemporâneas é o facto de serem "artificialistas", isto é, de implicarem, como elemento essencial, uma técnica de produção dos fenómenos ou, como a designa Bachelard, uma fenomenotécnica, cujo estudo compete ao materialismo técnico. Dado não ser "realismo filosófico", o materialismo técnico "corresponde essencialmente a certa realidade transformada, rectificada, realidade que precisamente recebeu a característica humana por excelência, a marca do racionalismo". A noção de fenomenotécnica permite compreender a produção, não só como produção teórica de conceitos, mas também como produção material do objecto teórico, daquilo que já não pode ser designado por "dado", mas por "matéria". Antes de "olhar" é preciso "reflectir": "A observação científica é sempre uma observação polémica; ela confirma ou infirma uma tese anterior, um esquema prévio, um plano de observação; ela mostra, demonstrando; ela hierarquiza as aparências; ela transforma o imediato; ela reconstrói o real após ter reconstruído os seus esquemas". A passagem da observação à experimentação torna o conhecimento mais polémico, porque o fenómeno observado passa a ser "escolhido, filtrado, depurado, vazado no molde dos instrumentos, produzido no plano dos instrumentos". Quando se confronta com o problema desta intervenção material dos instrumentos na produção dos conceitos, a filosofia dos filósofos pensa-a como "mediação" não essencial e classifica-a pela categoria geral e vaga de "método experimental", especificação para "uso dos cientistas" da categoria filosófica de experiência. Isto significa que a filosofia dos filósofos é incapaz de compreender que, doravante, um conceito deve integrar na sua unidade de conceito as condições da sua realização. A noção de método e a categoria filosófica de experiência são definitivamente solidárias do par conceptual abstracto-concreto. Ora, a prática da fenomenotécnica consiste precisamente em constituir pares entre o abstracto e o concreto, por meio do afinamento de instrumentos teoricamente definidos e da montagem de aparelhos técnicos segundo programas de realização racional ou de realização do matemático: a fenomenotécnica reforça o que transparece sob o que aparece e instrui-se pelo que constrói. Assim, os "objectos da ciência", longe de serem pobres abstracções extraídas da riqueza do concreto, são os produtos teoricamente regrados e materialmente ordenados de um trabalho teórico e técnico que lhes confere toda a riqueza das determinações do conceito e toda a sensibilidade das precisões experimentais. São, portanto, objectos "abstractos-concretos": "A razão taumaturga traça os seus quadros sobre o esquema dos seus milagres. A ciência suscita um mundo, não mais por um impulso mágico, imanente à realidade, mas antes por um impulso racional, imanente ao espírito. Após ter formado, nos primeiros esforços do espírito científico, uma razão à imagem do mundo, a actividade espiritual da ciência moderna dedica-se a construir um mundo à imagem da razão. A actividade científica realiza plenamente conjuntos racionais". Esta revolução epistemológica deriva da microfísica e requer a substituição da fenomenologia por uma numenologia, isto é, por uma organização de objectos de pensamento: "Os objectos de pensamento tornam-se, por consequência, objectos de experiências técnicas, num puro artificialismo da experiência".
Bachelard assinala a ruptura epistemológica, operada pelo novo espírito científico, entre o conhecimento comum e o conhecimento científico, determinando a constituição deste "tecido de erros resistentes" com que as novas ciências "rompem". Deste modo, Bachelard detectou a relação imaginária que o cientista mantém com a sua própria prática científica e, para demolir esta relação mediada pela filosofia dos filósofos, ensaiou duas vias: uma via pedagógica que, pondo em causa o ensino científico e filosófico, reclama uma reforma radical do ensino, e a via da psicanálise do conhecimento objectivo, cuja função é defender os cientistas das miragens filosóficas e ajudá-los na transparente filosofia da sua prática científica real. Ambas as vias não se excluem; pelo contrário, são "complementares". Denunciá-las como vias psicologistas é esquecer que Bachelard foi o primeiro filósofo da ciência a descobrir o carácter social do conhecimento, mais precisamente a chamar a atenção para a organização social da ciência contemporânea: o aparecimento do "teórico não solitário" corresponde ao surgimento da "cidade teórica" e da "sociedade técnica". A "socialização" da ciência, exemplificada a partir da socialização dos químicos, implica uma nova noção de objectividade científica: "Objectividade racional, objectividade técnica e objectividade social, eis três caracteres doravante fortemente ligados. Se esquecermos um só que seja dos caracteres da cultura científica moderna, entramos no domínio da utopia". Immanuel Kant defendeu a ideia de que a natureza conforme a conhecemos, com a sua ordem e as suas leis, é o resultado das actividades de assimilação e de ordenação da nossa mente: "O nosso entendimento não deriva as suas leis da natureza, mas impõe leis à natureza". Nesta fórmula está resumida a ideia que o próprio Kant baptizou como a sua revolução copernicana. Afirmar que o cosmos traz a marca da nossa mente é o mesmo que acentuar a função activa do observador humano, ao mesmo tempo que ajuda a solucionar o problema humano originado na revolução de Copérnico pelo afastamento do homem da posição central que ocupava no universo físico: Kant não só mostra que a nossa posição no cosmos é irrelevante, como também nos ensina que podemos continuar a dizer que o universo gira à nossa volta, visto que somos nós que criamos, pelo menos em parte, a ordem nele descoberta, e produzimos o conhecimento que temos do universo. Bachelard não se afasta muito deste racionalismo kantiano: "O espírito pode mudar de metafísica; mas não pode passar sem metafísica". Uma forma elegante de dizer que a arte da descoberta é, de certo modo, um acto de criação teórica e técnica. (FIM da série.)
J Francisco Saraiva de Sousa

5 comentários:

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Bem, o post está concluido e a série dedicada à filosofia da ciência de Bachelard também chegou ao fim. Apesar de não pretender clarificar uma leitura integral da sua filosofia, acabei por a tornar implícita: o mola secreta que une os dois pólos da filosofia de Bchelard é o "espírito" que retemos da noção de "novo espírito científico", bem como a noção de imagens. Bachelard foi um humanista! :)

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Acrescentei, no último parágrafo, algumas considerações sobre Kant e a sua revolução copernicana, de modo a reatar com a série de posts dedicada ao nascimento da ciência moderna. :)

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Tive um pensamento terrivelmente verdadeiro quando pensava na pedagogia de Bachelard: a maior parte dos professores universitários portugueses são lixo e có-có a fingir que não é có-có, mas o cheiro a có-có não engana. As nossas universidades são mentiras! E isto a propósito de terem fechado aqui no Porto a Escola de Artes Soares dos Reis, de resto um belo edifício que guarda tesouros artísticos. E isto porquê? Porque já não há artistas e professores de artes: apenas malucos que julgam ser artistas. Os 30 Anos de democracia destruiram a educação em Portugal e as universidades foram tomadas por burrecos oportunistas, cujos disparates públicos revelam a sua incompetência e mediocridade viscerais. Ms não há ninguém inteligente para lhes dizer que são merde ambulante. :(

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

A reforma estrutural que Portugal precisa para sair das suas duas crises ou mais é afastar as moscas e substituí-las por pessoas idóneas e competentes. Sem mudança de moscas, la merde fica sempre intocada. A escola e a universidade não funcionam... O inferno está instalado! O caos! A queda acelerada do país no abismo da ingovernabilidade e da morte!

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Bem, vou dedicar os próximos posts a temas relacionados com a vitimização sexual e orientação sexual, bem como violência doméstica nos casais homossexuais e as suas famílias.