segunda-feira, 2 de fevereiro de 2009

O Nascimento da Ciência Moderna (2)

«Vejo estes espaços medonhos do universo que me envolvem e encontro-me preso a um canto desta imensa vastidão, sem que eu saiba porque estou colocado neste lugar, e não noutro, nem por que razão este pouco tempo que me é dado para viver me é atribuído neste momento, e não noutro de toda a eternidade que me precedeu e de toda aquela que há-de vir depois de mim. Apenas vejo infinidades de todos os lados, que me envolvem como um átomo e como uma sombra que dura apenas um instante e nunca mais volta. Tudo quanto sei é que em breve devo morrer, mas o que mais ignoro é esta morte que não poderei evitar.
«Posso muito bem conceber um homem sem mãos, sem pés, sem cabeça. Mas não posso conceber o homem sem pensamento: seria uma pedra ou um bruto. O pensamento faz a grandeza do homem. O homem não passa de um caniço, o mais fraco da natureza. Mas é um caniço pensante». (Blaise Pascal)
O que os fundadores da ciência moderna, entre os quais Copérnico, Galileu, Kepler, Descartes e Newton, fizeram foi destruir um mundo e substitui-lo por outro. Ora, uma tal destruição implica necessariamente uma "reforma da nossa própria inteligência", para usar esta bela expressão de Espinoza, e a elaboração de um novo conceito de ciência, com o objectivo de substituir o ponto de vista natural e normalizado, geralmente identificado com o senso comum, por um outro ponto de vista, neste caso particular, pelo ponto de vista arquimediano, o da ciência universal: os neoplatónicos do Renascimento, em especial Ficino, Nicolau de Cusa e Giordano Bruno, muito antes de Copérnico ou de Galileu, foram os primeiros a abolir a dicotomia entre a Terra e o Céu que a cobria, promovendo o Sol à categoria de estrela nobre e dando-lhe um lugar nobre num universo eterno e infinito.
2. A Destruição do Cosmos. A dissolução do Cosmos significa a destruição da ideia de um mundo de estrutura finita, hierarquicamente ordenado e qualitativamente diferenciado do ponto de vista ontológico, e a sua substituição pelo conceito de um Universo aberto, indefinido e até infinito, unificado e governado pelas mesmas leis universais. Neste novo universo, todas as coisas, sejam celestes ou terrestres, pertencem ao mesmo nível do ser, contrariamente à concepção aristotélica tradicional que distinguia e opunha os dois mundos, o do Céu e o da Terra. Com a fusão das leis do Céu e da Terra, a astronomia e a física tornaram-se interdependentes, unificaram-se e uniram-se. Esta grande unificação implicou o desaparecimento da perspectiva científica de todas as considerações baseadas no valor, na perfeição, na harmonia, na significação e no desígnio. Tais considerações desapareceram no espaço infinito do novo universo, onde uma geometria se fez realidade e no qual as leis da física clássica encontraram valor e aplicação.
A destruição do Cosmos é fundamentalmente a perda do centro pela Terra e, como se tornou evidente no decorrer da revolução científica, a perda do privilégio do Homem, ou seja, a perda do lugar privilegiado do homem no cosmos. Blaise Pascal resume a última implicação da destruição do Cosmos nesta frase enfática: "O silêncio eterno destes espaços infinitos apavora-me". Ou, por outras palavras, a perda pela Terra da sua posição central e singular no mundo implicou a perda pelo homem da sua posição privilegiada no drama teocósmico da Criação. Doravante, o homem deixa de ser a figura central desse drama e é obrigado a sair da cena. A astronomia de Copérnico inicia esta destruição, embora permaneça prisioneira da concepção de um universo finito e ordenado: Copérnico deu o primeiro passo, detendo o movimento da esfera das estrelas fixas, mas hesitou em dar o segundo passo que seria dissolver essa esfera estelar num espaço ilimitado. O seu universo continua a ser um mundo ordenado e finito, cujo limite está fixado pela esfera das estrelas fixas. Thomas Digges levou a astronomia copernicana mais longe, substituindo o mundo fechado e finito pelo universo aberto, substituindo o diagrama copernicano do mundo por outro diagrama, no qual as estrelas se encontram distribuídas por toda a página, tanto acima como abaixo da linha com a qual Copérnico representou a ultima sphera mundi. Até mesmo Johannes Kepler que fez a astronomia de Copérnico funcionar negou a infinidade do novo universo, por aceitar uma epistemologia empirista, sujeita às leis da óptica: os limites da astronomia são ditados pela visão e, por isso, não pode conceber coisas que desmintam as leis da óptica. (Kepler desconhecia o telescópio, posteriormente utilizado por Galileu.) Para Kepler, o mundo é uma expressão de Deus, simbolizando a Trindade e materializando na sua estrutura uma ordem e uma harmonia matemáticas. Embora aceite a nova astronomia, Kepler retém a metafísica aristotélica, alegando que não "é bom para o viajante perder-se naquele infinito". Deste modo, Kepler é levado a rejeitar e a refutar a concepção infinitista do universo, isto é, a hipótese da distribuição uniforme das estrelas no espaço, afirmando que o princípio da razão suficiente impede Deus de escolher uma estrutura adequada, portanto, geométrica, para um mundo infinito.
Porém, como já vimos, Giordano Bruno, um dos alvos da crítica de Kepler, tinha desenvolvido a teoria do universo descentralizado, infinito e infinitamente povoado por outros seres inteligentes: em nome da movimento da Terra em torno do Sol, Bruno defende que "o mundo é infinito e, por conseguinte, não existe nele nenhum corpo ao qual coubesse simpliciter estar no centro, sobre o centro, na periferia ou entre esses dois extremos do mundo". Tal como Nicolau de Cusa ou mesmo Lucrécio, Bruno regozija-se com a infinidade do mundo. O deslocamento da Terra do centro do mundo não é visto como uma degradação, mas como uma perfeição da obra criada por Deus. Com efeito, na filosofia de Bruno, o princípio da razão suficiente, posteriormente tematizado por Leibniz, reforça e suplementa o princípio da plenitude: a obra de Deus deve conter tudo o que é possível, isto é, inumeráveis seres individuais, inumeráveis Terras, inumeráveis astros e sóis, afim de ser perfeita e digna do Criador. Isto significa que Deus precisa de um espaço infinito para nele colocar o mundo infinito, isto é, o universo com dimensões infinitas e os seus inumeráveis mundos, um universo que não pode ser objecto dos sentidos, mas apenas do pensamento. A possibilidade implica a realidade. Esta concepção de Bruno contrasta fortemente com aquela que foi definida mais tarde por Pascal, a de um universo mudo e aterrorizante, ou mesmo com a da filosofia científica moderna, a de um mundo desprovido de sentido, do qual resultam o niilismo e o desespero. A sua concepção do espaço infinito foi adoptada e aperfeiçoada por Henry More e Isaac Newton (1643-1727).
Ora, uma tal revolução intelectual, pensada através do conceito de ruptura epistemológica de Gaston Bachelard, não tem nem pode ter "precursores". A sua novidade é radical e Galileu foi um dos seus principais protagonistas, na medida em que se colocou, sem qualquer ambiguidade, ao nível do ponto de vista arquimediano. Caverni e Duhem julgaram poder encontrar os precursores de Galileu em Buridano, Oresme ou mesmo no seu mestre Filão, os chamados "precursores parisienses de Galileu", mas este princípio de continuidade é cabalmente desmentido pelos estudos de E. Cassirer, A. Koyré e de T.S. Kuhn. Se há algum precursor, este só pode ser Arquimedes e o seu mestre Platão. (CONTINUA com o título "O Nascimento da Ciência Moderna 3".)
J Francisco Saraiva de Sousa

6 comentários:

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Afinal, antecipei a publicação deste segundo post da série dedicada à revolução científica. :)

Denise disse...

Olá F!
Estou a gostar da sua trajectória e das ramificações que vai sugerindo pelo caminho.
Aguardo a parte 3 :-)

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Olá Denise

Sim, o desenvolvimento das ramificações será tratado isoladamente noutros posts. É difícil seguindo a ordem da escrita, sobretudo num blog, dar conta deles. Contudo, precisava de uma nova história do mundo ocidental escrita em função de outra grelha de leitura. Pascal não concebia o homem sem pensamento, mas este é nos nossos dias uma realidade: o animal metabolicamente reduzido.

O objectivo seria ir até à revolução da relatividade e da física quântica, mas para isso teria de fazer pesquisa fundamental. Vou ver se consigo, pelo menos, esboçar uma linha de desenvolvimento, porque a outra foi aberta por Hegel e Marx que procuraram livrar-nos do desespero e do niilismo: ausência de sentido.

Denise disse...

Sim, compreendo a dificuldade em articular linhas que são convergentes mas que reclamam a sua autonomia...
Fiquei curiosa relativmente à abordagem da f. quântica e da relatividade.
E não se contradiga: o metabolicamente reduzido é um animal, não um homem ;-)

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Ya, é mesmo e somente um animal.

Vou tentar falar da relatividade, logo que termine esta série e conclua as outras anteriores. O mais difícil aqui no blog é não ter acesso às equações: isso dificulta muito a exposição de certos temas. É mais fácil manipular equações do que traduzir em linguagem simples o que elas identificam. Só o grande professor sabe fazer isso quando ensina as suas matérias, mas o professor já é no nosso tempo uma figura morta! :(

Denise disse...

Eu, assumidamente menina de letras, acho fascinante o mundo das equações que entendo apenas como significantes sem lhes atingir o significado... tal como Poesia Concreta ou, como Álvaro de Campos dizia,

O Binómio de Newton é tão belo como a Vénus de Milo.
O que há é pouca gente para dar por isso.

óóóó — óóóóóóóóó — óóóóóóóóóóóóóóó
(O vento lá fora.)



Sim, há muitos professores mas poucos Professores. No entanto, não creio que o Professor seja uma figura morta. Talvez rara; em vias de extinção. Mas morta não.