«A história dos homens é a história dos seus desentendimentos com deus, nem ele nos entende a nós, nem nós o entendemos a ele». (José Saramago, Caim)
«A história de toda a sociedade até aos nossos dias mais não é do que a história da luta de classes». (Marx/Engels, Manifesto do Partido Comunista)
«A miséria religiosa constitui ao mesmo tempo uma expressão da miséria real e um protesto contra a miséria real. A religião é o suspiro da criatura oprimida, o sentimento de um mundo sem coração e a alma de situações sem alma. É o ópio do povo. /A abolição da religião enquanto felicidade ilusória dos homens é uma condição para a sua felicidade real. O apelo para que abandonem as ilusões a respeito da sua condição é o apelo para abandonarem uma condição que precisa de ilusões. A crítica da religião é, pois, a crítica embrionária do vale de lágrimas de que a religião é a auréola. /A crítica colheu das cadeias as flores imaginárias, não para que o homem suporte as cadeias sem capricho ou consolação, mas para que lance fora as cadeias e colha a flor viva. A crítica da religião liberta o homem da ilusão, de modo que pense, actue e configure a sua realidade como homem que perdeu as ilusões e reconquistou a razão, a fim de que ele gire em torno de si como seu verdadeiro sol. A religião é apenas o sol ilusório à volta do qual gira o homem enquanto não circula em torno de si próprio». (Karl Marx)
Com este post dou início a uma série de análises críticas do último romance publicado por José Saramago - Caim. Este primeiro post será constituído pelos comentários que fiz aqui - na caixa de comentários - à medida que lia a obra: vou apresentá-los sem tentar fazer uma análise mais coerente do texto de Saramago. A leitura é um processo activo e em andamento: as perplexidades do leitor também merecem atenção. Os comentários foram agrupados em doze parágrafos numerados, dos quais o sétimo pode ser dispensado por incidir sobre um assunto relativamente marginal à análise da obra de Saramago.
1. O momento de decepção. Estou a ler José Saramago. Tomei a deci-são de o ler ontem (21 de Outubro) à noite, vesti-me e fui comprar alguns livros de Saramago. Estou concentrado no Caim e, de momento, estou decepcionado com a obra, como se estivesse a ler uma "historinha" escrita por uma "velha ama" que tem por hábito contar histórias às suas crianças antes de adormecerem. À primeira vista, falta-lhe aparentemente espessura, densidade filosófica; é muito literal, pouco profundo, muito imediatista, muito pobre em termos de pensamento filosófico. Como crítica da religião, a obra parece ser uma regressão total: Saramago escreve como se estivesse do lado de fora da crítica da religião e do seu rigor metodológico. Até agora só encontrei uma frase com valor crítico - aquela que aparece em epígrafe, mas não vejo como a posso fundamentar e explicitar recorrendo ao resto da obra povoada de masturbações, de sexo ardente e de projecções de sémen. Porém, mantenho uma abertura total de espírito, porque acho graça ao modo como o espírito burguês é recuado no tempo ou como o Caim é ainda nosso contemporâneo. Este expediente de fazer Caim viajar no tempo é frutífero como recurso narrativo, mas penso que Saramago não soube tirar proveito integral dele, talvez porque tenha levado Deus muito a sério, como se ele tivesse sido - ou ainda fosse - uma "pessoa" que intervém de modo imoral e cruel na história do homem, sem se preocupar com o seu futuro: Saramago não compreende como funciona a ideologia religiosa ou, pelo menos, parece não estar interessado nesse funcionamento ideológico: Deus não é mau; os homens é que são maus, embora Caim seja o mais honesto e o mais humano dos homens. Como escreve Saramago: «Apesar de assassino, caim é um homem intrinsecamente honesto, os dissolutos dias vividos em contubérnio com lilith, ainda que censuráveis do ponto de vista dos preconceitos burgueses, não foram bastantes para perverter o seu inato sentido moral da existência, haja vista o corajoso enfrentamento que tem mantido com deus, embora, forçoso é dizê-lo, o senhor nem de tal se tenha apercebido até hoje, salvo se se recorda a discussão que ambos travaram diante do cadáver ainda quente de abel».
2. Onde está o marxismo? Não detecto aparentemente nenhuma afini-dade estrutural entre Saramago e o marxismo: a sua posição é a de um homem crente que se zangou com Deus, não a de um crítico materialista e ateu da ideologia religiosa. A tal frase que referi colide com a ideia fundamental do marxismo, que, como já mostrei noutros posts, não é um ateísmo, pelo menos do ponto de vista estritamente teórico, mas uma teoria que, na medida em que a religião existe como obstáculo, se vê forçada a lutar contra ela, não para matar as pessoas que têm crenças religiosas ou para as forçar a renunciar a essas crenças, mas para descobrir o que essas crenças encerram de positivo, de modo a procurar novas formas de entendimento e de esclarecimento. Para o marxismo, o ateísmo é uma ideologia religiosa que se articula com uma determinada perspectiva do humanismo. É por isso que Marx não criticou a ideia de Deus, nem negou ou afirmou a sua existência: a redução da história dos homens a um diálogo-confronto dos homens com Deus é uma concepção absolutamente estranha ao marxismo. A ausência ou a fragilidade simulada de conhecimentos filosóficos faz de Saramago um narrador dotado de grande sensibilidade metafísica: a sua aparente ingenuidade, a sua aparente infantilidade, são intelectualmente desconcertantes.
3. "A maligna natureza do sujeito". Eis outra noção desconcertante de Saramago, mas de grande profundidade filosófica. De que sujeito? Do sujeito humano-criatura ou do Sujeito-Deus-criador do mundo e do homem? Trata-se no texto sobre a adoração do bezerro de ouro do sujeito humano, mas também e primordialmente do Sujeito divino. Insinua-se aqui uma ambiguidade que é, à primeira vista, desconcertante, como se Saramago aceitasse a noção de que a história do homem é uma história da maldade depois da queda ou da expulsão do paraíso, mas esta noção não rompe cabalmente com o cristianismo e, a partir dela, Deus pode ser ilibado da crueldade que lhe atribui Saramago. No entanto, no romance de Saramago, surge a crítica da ideia de obediência: Deus testa as suas criaturas para ter a prova da sua obediência, isto é, da sua fé. Mas as criaturas bíblicas revelam alguma resistência, o que significa que Deus - talvez ciente dessa resistência devida à liberdade humana - é forçado a testá-las constantemente. A interpretação literal e irónica dos textos bíblicos justifica-se pelo facto de Saramago pretender indiciar essa resistência dos sujeitos humanos ao domínio de Deus. Seguindo esta via de leitura atenta é possível talvez confiar, isto é, fiar em Saramago.
4. O poder do homem e o "sentido moral da existência". A noção de poder de Saramago aparece representada pelos palácios e pelas exibições de Deus diante dos auditórios dos homens, e revela-se sempre que utiliza uma linguagem mais adequada aos tempos de miséria, usando termos muito modernos, tais como desemprego, crise, operário, ocioso, etc. O poder está muito localizado, como se Saramago desconhecesse a hegemonia. No entanto, nas relações Deus-homens revela-se uma hegemonia. Por enquanto, ainda não descobri todas essas conexões, mas estou com o espírito aberto e medito. Há uma tese interessante que Saramago formula logo no início da sua narrativa: Caim matou Abel por não poder matar Deus. Caim é um herói humano condenado por Deus a errar pelo mundo: a sua luta contra a arbitrariedade e a imoralidade do poder de Deus é permanente. É preciso matar Deus e, deste modo, conquistar definitivamente a emancipação do homem. Começo a entrar no espírito da obra, mas é provável que o resultado final desta análise não coincida com a própria leitura que Saramago faz da sua obra. Mas eu sou filósofo e não escrevo romances. A morte de Abel, em vez da morte do Senhor, permite a Saramago fazer uma incursão metafísica quando se interroga sobre o "objectivo final" ou "razão última" da aventura humana. A Igreja Católica já deu a sua resposta: a reprodução da espécie, isto é, fazer filhos, sem no entanto responder claramente porquê e para quê. A outra resposta - diametralmente oposta - foi dada por Caim e não é nada optimista. Mas não vou revelar já a minha leitura: a surpresa encontra-se revelada nos últimos parágrafos.
5. O segredo de Caim-Deus. Já ganhei avanço crítico na leitura atenta do Caim de José Saramago e estou a gostar do modo como o estou a ler: a história humana de Caim e do pacto secreto estabelecido entre Caim e Deus. A crítica que os padres e os teólogos dirigem a Saramago é simplesmente o resultado de má-fé e de ignorância activa, bem como aquela que lhe é feita pelos pseudo-intelectuais invejosos - os tugas burrecos. O sentido literal não é relevante; o que interessa é o sentido humano da história do homem - a "instrutiva e definitiva história de caim" (Saramago), aliás uma história dialéctica, no sentido de resultar de uma discussão entre Deus e os homens. Adão, Eva, Caim, Abel, Set, Abraão, Isaac e por aí fora são seres humanos que conquistaram "voz própria", isto é, autonomia em relação a Deus. Um país hipócrita como Portugal nunca está preparado para ser confrontado com leituras críticas da Bíblia: o tuga típico é invejoso, ignorante, oportunista, malicioso e mais medroso do que Eva que teve coragem para seduzir o Querubim, provocando-lhe o desejo carnal. Antes de terem comido do fruto da árvore do conhecimento e de conhecerem o bem e o mal, Adão costumava dizer a Eva: "Vamos para a cama". E "os solitários ocupantes do paraíso terrestre", quais "pobres órfãos abandonados na floresta do universo" (Saramago), fornicavam com prazer e gostavam de repetir esse comércio sexual, não para fazer filhos, como desejava o Senhor, mas para desfrutar dos prazeres carnais - a grande marca da humanidade ancestral.
6. A Inflexão hermenêutica. A tensão habita a minha leitura, mas vis-lumbro na estrutura da narrativa e na temporalidade que a suporta uma via de reconciliação possível entre Saramago e o marxismo. É claro que deveria recorrer a outras obras do Prémio Nobel da Literatura (1998), mas vou resistir a tal tarefa, fazendo a filosofia funcionar na escassez de palavras edificantes do narrador chamado Saramago: a peça, o mecanismo central do funcionamento da ideologia religiosa encontra-se no tirar a prova - a obediência cega a Deus, isto é, à ideologia eterna que, inscrita num aparelho e nas suas práticas, interpela os homens concretos como criaturas sempre-já sujeitas, sujeitadas, subjugadas e submissas ao outro Sujeito, único e central, que é Deus - Aquele que diz ser o senhor, isto é, "eu sou aquele que é". Por enquanto, torna-se evidente que o primado do eterno presente - as mudanças súbitas de presentes por parte de Caim conduzidas a maior parte das vezes pelo jumento - permite a Saramago trazer a história bíblica de Caim até aos nossos tempos modernos, mas suspeito que, em termos filosóficos, não se trata aqui de mera magia do narrador, porque há nesse modo de temporalização uma filosofia da história subjacente e implícita, de cunho marcadamente pessimista. Para Saramago, a história do homem entendida como discussão entre os homens e Deus é uma única e mesma "catástrofe": quer olhe para trás (passado) ou para a frente (futuro), Caim testemunha a mesma catástrofe, a mesma tempestade, da qual Deus é o principal e, em última análise, o único responsável.
7. Contra os críticos de Saramago. Falar de Saramago é quase tabu em Portugal e estou com os ouvidos entupidos, quer pelas falas dos amigos, quer pelos palpites de Lobo Xavier e de Pacheco Pereira na Quadratura do Círculo. Vou fazer algumas observações sumárias:
7.1. A crítica que Saramago faz dos textos bíblicos não é original, pelo menos à luz de uma leitura precipitada, nem sequer é a mais radical. Em Portugal, Guerra Junqueiro foi mais radical, pelo menos em A Velhice do Padre Eterno, mas também ele acabou por regressar ao seio do cristianismo com a sua doutrina do cristianismo eterno ou integral. Porém, uma leitura atenta da obra de Saramago - Caim - revela uma mensagem original.
7.2. Como criador Saramago tem todo o espaço de manobra para criar e recriar as suas figuras bíblicas: um romance não é uma obra de exegese, embora possa utilizar esses conhecimentos, mas uma criação literária autónoma, que deve ser avaliada como tal pela crítica filosófica e literária, até porque Saramago fornece indicações a esse respeito.
7.3. Estranho é o facto dos seus críticos fazerem crítica sem ter lido a obra: as críticas são dirigidas a um nada ideológico - o vazio noológico dos falsos-críticos - que simplesmente não está presente na obra de José Saramago. A própria interpretação de Saramago pode ser descartada, se for a que ele tem difundido através dos mass media.
7.4. Em Portugal, todos pensam que percebem de tudo, mas na hora da verdade são uns burrecos: o país está como está - na miséria e na pobreza - devido à burrice malévola dos tuga-burrecos. As pseudo-elites nacionais são abortos culturais, como se sabe ou devia ser sabido, e muito, muito, muito invejosas. Daí que não haja progresso e crescimento em Portugal, mas regressão pantanosa.
7.5. A leitura que faço aceita as regras de jogo estipuladas por Saramago como narrador. Vou jogar com essas regras e, se necessário, contra o seu principal jogador - o próprio Saramago, tentando uma reconciliação com o marxismo que, como se sabe, não permite deitar fora o livro que guarda os suspiros dos oprimidos. Este princípio colide com o que Saramago disse ou tem dito sobre Caim. Além da Bíblia imoral dos vencedores, há, como mostraram Ernst Bloch, Jürgen Moltmann, Leonardo Boff e Gustavo Gutierrez - a Bíblia dos pobres. Herdeira do pensamento utópico de E. Bloch, a teologia da libertação postula a união da escatologia e da política, da fé e da acção política, de modo a construir aqui e agora a sociedade da fraternidade humana através da praxis histórica transformadora. O marxismo é teoria crítica, mas não rompe com a tradição; pelo contrário, exige a sua realização plena através da luta contra a realidade social e política existente: a realização das promessas ainda não cumpridas a favor da emancipação do homem como possibilidade de uma acção antecipadora do reino de Deus, ligada estreitamente à esperança escatológica da Bíblia.
7.6. No mundo ocidental, talvez devido ao triunfo do neoliberalismo e do pensamento único, as pessoas estão a ficar muito pouco receptivas à crítica: querem abolir a crítica, querem silenciar as vozes dissonantes, em nome da trivialidade, da frivolidade e da mediocridade metabólica. A crítica incide basicamente sobre conteúdos objectivos de conhecimento e situações injustas, mas nas actuais circunstâncias de eclipse da crítica os anti-críticos devem ser alvo privilegiado da crítica: os burrecos devem ser silenciados, porque a sua existência é inútil, gratuita e desperdiça energia. Eles não distinguem entre a sua pessoa e as suas opiniões e, quando as últimas são criticadas, reagem brutalmente como se estivessem a ser alvo de um ataque mortal. Ora, isto é sintoma de regressão cognitiva e talvez de perturbações mentais difusas: o animal metabolicamente reduzido não foi talhado para pensar. 8. A noção de tempo, a viagem no tempo. Já fiz referência à noção de temporalidade que estrutura a narrativa de Saramago: as súbitas mudanças de presente permitem a Caim viajar no tempo, ora para a frente - presente por vir - ora para trás - presente passado. A unidade da narrativa é garantida pelo facto de Caim mudar de presente, o que faz dele a figura central do romance - e da história do desentendimento entre Deus e os homens - como testemunha ocular e, em casos importantes, como quando impede que Abraão matasse o seu filho Isaac, participativa, da intervenção de Deus nos assuntos humanos. Ora, os críticos não compreenderam esta estrutura temporal da narrativa e, por isso, dizem disparates, alegando que Saramago fica prisioneiro do sentido literal dos textos bíblicos, descontextualizando a acção das figuras bíblicas e descurando as interpretações simbólicas. Em termos teológicos, Saramago distancia-se claramente da exigência de desmitologização dos textos bíblicos: a hermenêutica existencial de Rudolf Bultmann é-lhe completamente estranha, até porque o seu programa de desmitologização lhe soa talvez a desteocratização da Bíblia. Para Bultmann, a verdade e a novidade do cristianismo reside nesse paradoxo mediante o qual a transcendência de Deus se faz presente, como chamamento de salvação, no homem Jesus Cristo. As religiões místicas introduzem Deus nos acontecimentos ou nos signos objectivos deste mundo, liquidando assim a sua transcendência, enquanto o humanismo religioso liberal o identifica com o âmbito da abertura do homem. Ora, para Bultmann, só o cristianismo, centrado no paradoxo de Cristo, permite que Deus seja transcendente e o homem, puramente humano, postulando a unidade de ambos em Cristo. Assim entendida a novidade do cristianismo, torna-se possível proclamar e realizar a palavra salvadora - como transcendência interior e como libertação do mundo e abertura à esperança - no âmbito da própria vida humana. Saramago não só não acredita na salvação, mesmo na sua forma secularizada como realização de uma sociedade fraterna, como também desconfia do sentido político desta viragem teológica. Na sua perspectiva, desmitologizar a Bíblia significa desteocratizá-la e desteocratizar a Bíblia significa humanizá-la, com o objectivo de apagar todos os vestígios literais da responsabilidade de Deus pela história cruel da humanidade e do seu descuido pelo futuro do homem. Daí que Saramago procure recuperar e reanimar o sentido literal historicizado da Bíblia para acusar e condenar Deus. Isaac detectou a essência da lógica da intervenção divina na história dos homens quando disse a Abraão: «Pai, a questão, embora a mim me importe muito, não é tanto ter eu morrido ou não, a questão é sermos governados por um senhor como este, tão cruel como baal, que devora os seus filhos» (Saramago).
9. O final do romance. O final do romance de José Saramago é descon-certante, mas dotado da grandeza de todo o pensamento original: já sabia que era desconcertante, mas estava com esperança de encontrar no texto uma outra orientação hermenêutica mais positiva. Caim mata um a um - com excepção de Noé - os escolhidos de Deus, contrariando o projecto divino de iniciar uma segunda humanidade. Depois do dilúvio, da humanidade resta apenas Caim que discute com Deus, uma discussão que continua, sem sabermos se terá um fim. No entanto, Deus não mata Caim, condenando-o à morte natural. Matar Deus foi, para Caim, matar os seus escolhidos: engravidou as noras de Noé, como se estivesse a ajudar a aumentar a nova humanidade, mas acabou por matá-las, incluíndo a mulher de Noé. A propagação da espécie, quer seja por imposição do cio, quer seja por simples apetite, é vista como uma compensação dos mortos perdidos na guerra. Quando disse «Crescei e multiplicai-vos», Deus impôs ao homem a necessidade de fazer filhos para alimentar as guerras com novos combatentes e para «suprir as perdas em mortos e feridos que sofriam os exércitos próprios e alheios» (Saramago), mas este pensamento perde-se aparentemente com o final desconcertante. Caim encontrou o sentido da sua vida matando Deus, isto é, contrariando o seu projecto: Matar Deus como sentido último da história? Mas se matar Deus é dizer não à reprodução, então a consumação do ateísmo seria um suicídio colectivo - a morte voluntária da humanidade, tal como fez Noé quando se lançou às águas negras e profundas do dilúvio, mas com esta diferença: Noé suicida-se para não ter de enfrentar a ira de Deus e responder pelo fracasso da missão que lhe fora atribuída, enquanto o homem finalmente liberto se suicida para se livrar de vez do domínio cruel de Deus. Com efeito, homem e Deus pertencem-se um ao outro: a morte de um é a morte do outro. Onde há homens há Deus e onde há Deus há homens: a emancipação humana do domínio de Deus só pode ser consumada na morte voluntária. Esta é a mensagem pessimista de Caim!
10. A morte voluntária do homem é a morte de Deus. O romance de José Saramago termina com este derradeiro diálogo entre Caim e Deus: «Onde estão Noé e os seus, perguntou o senhor, Por aí, mortos, respondeu caim, Mortos, como, mortos, porquê, Menos Noé, que se afogou por sua livre vontade, aos outros matei-os eu, Como te atreveste, assassino, a contrariar o meu projecto, é assim que me agradeces ter-te poupado a vida quando mataste abel, perguntou o senhor, Teria de chegar o dia em que alguém te colocaria perante a tua verdadeira face, então a nova humanidade que eu tinha anunciado, houve uma, não haverá outra e ninguém dará pela falta, Caim és, e malvado, infame matador do teu próprio irmão, Não tão malvado e infame como tu, lembra-te das crianças de sodoma, Houve um grande silêncio, Depois caim disse, Agora já podes matar-me, Não posso, palavra de deus não volta atrás, morrerás da tua natural morte na terra abandonada e as aves de rapina virão devorar-te a carne, Sim, depois de tu primeiro me haveres devorado o espírito, A resposta de deus não chegou a ser ouvida, também a fala seguinte de caim se perdeu, o mais natural é que tenham argumentado um contra o outro uma vez e muitas, a única coisa que se sabe de ciência certa é que continuam a discutir e que a discutir estão ainda, A história acabou, não haverá nada mais que contar». No suicídio colectivo da humanidade reside o núcleo essencial da mensagem do Caim de José Saramago. Não haverá nova humanidade: Saramago não acredita na possibilidade de realização plena de uma sociedade fraterna. O fim da história só pode ser consumado com a morte voluntária do homem. A história como desentendimento entre o homem e Deus chegará ao fim com a morte do último homem e o suicídio de Deus. Enquanto essa morte essencial e livre - absolutamente aniquiladora - não ocorrer, a história continuará a ser crime, conflito, guerra, exploração, injustiça, crueldade, enfim violência gratuita. Só podemos matar Deus cometendo o suicídio, porque, sem criaturas subjugadas ao seu domínio, Deus deixa de reinar e também ele será forçado a suicidar-se. Ora, esta não é a ideia marxista do cumprimento da modernidade: a emancipação como morte consciente e voluntariamente enfrentada é de facto uma ideia que colide com o optimismo de Marx e a sua fé num para além da história. Caim é um assassino, Deus é um assassino, e, sendo assim, Caim devia ter saído da barca de Noé e ter-se suicidado perante Deus. Como não o fez, a discussão - a dialéctica antropo-teológica da guerra e da crueldade - continua até aos tempos modernos.
11. Destruição de Sodoma. Até parece ser uma ideia estranha esta que atribuo ao Caim de Saramago, mas não é nada estranha. O jumento leva Caim a viajar no tempo, ora indo para atrás, ora indo para a frente: o homem que matou o irmão com a intenção de matar o pai - Deus - é omnipresente, participando em todos os acontecimentos como testemunha ocular da inveja que Deus sente pelos homens. Mas há um acontecimento marcante: a destruição de Sodoma. Os homens que fazem sexo com outros homens não fazem filhos: os seus prazeres carnais não agradam a Deus, porque este precisa que os homens façam filhos, de modo a garantir a «continuidade biológica» da humanidade e assim a governação divina da «vida íntima dos seus crentes» (Saramago). As gerações que morrem natural ou violentamente para prazer do senhor devem ser substituídas por novas gerações: a diversão do senhor precisa de novas vítimas. Atribuo importância a este episódio, porque ele permite nas suas diversas recapitulações chegar à conclusão exposta nos dois parágrafos anteriores. Para Saramago, não fiar em Deus é, em última análise, não fiar no homem: à liquidação da esperança na chegada de um futuro inteiramente novo que não seja "uma sucessão de cópulas bem sucedidas" (Saramago) corresponde um pessimismo total. A história está condenada a ser um desentendimento entre pai e filho e o comércio sexual entre eles - como sucedeu entre Noé e o seu filho mais novo - conduz a nova maldição, a nova destruição. A humanidade nasceu do comércio sexual entre o pai e o seu filho: é incesto, é pacto maligno entre eles, é discussão.
12. Job. Todos os "presentes" visitados por Caim revelam o sentido infame desse pacto entre Deus e os homens, entre Deus e Caim e entre Deus e o diabo: o sentido da aliança que o episódio de Job - que, apesar do sofrimento, continua a ser fiel ao senhor - ajuda a clarificar. Convém relembrar o episódio mais originário: Deus criou o homem e deu-lhe liberdade. Ao matar Abel por ciúme, Caim exerceu plenamente o poder que lhe foi conferido pelo senhor: a liberdade para matar. No último capítulo do romance, Caim mata um a um os membros da família de Noé, escolhida por Deus para repovoar a terra com uma segunda humanidade. Caim que começou por matar o seu irmão por culpa de Deus, mata por fim, mesmo depois de ter impedido que Abraão matasse o seu filho numa das suas viagens no tempo, a família de Noé para impedir a realização do projecto divino. Tal como a força bruta dos seus "anjos-operários", o poder humano de matar e de enfrentar consciente e voluntariamente a sua própria morte assusta Deus, porque escapa ao seu controle. Se o homem e Deus se pertencem um ao outro, não há outra saída - e isto se quisermos eliminar Deus e consumar definitivamente o ateísmo - a não ser matar os homens, fomentando o terror ou, de preferência, enfrentando consciente e voluntariamente a nossa própria morte: a morte de um é a morte do outro. Foi por isso que Deus não matou Caim, pondo-lhe na testa o sinal, não só da sua condenação por ter assassinado Abel, mas também e fundamentalmente da sua protecção: «Então não serei castigado pelo meu crime, perguntou caim, A minha porção de culpa não absolve a tua, terás o teu castigo, Qual, Andarás errante e perdido pelo mundo, Sendo assim, qualquer pessoa me poderá matar, Não, porque porei um sinal na tua testa, ninguém te fará mal, mas, em pago da minha benevolência, procura tu não fazer mal a ninguém, disse o senhor, tocando com o dedo indicador a testa de caim, onde apareceu uma pequena mancha negra, Este é o sinal da tua condenação, acrescentou o senhor, mas é também o sinal de que estarás toda a vida sob a minha protecção e sob a minha censura, vigiar-te-ei onde quer que estejas, Aceito, disse caim, Não terias outro remédio» (Saramago). Aqui reside a parte substantiva do pensamento de Saramago, que, nesta lógica teológica e teocrática da história, é ele próprio, tal como Caim, prisioneiro do ciclo infernal e cruel da história do homem, que é também a história de Deus. Só há uma saída para escapar definitivamente ao domínio infame e malvado de Deus: o suicídio. Assumir a incumbência da morte voluntária é dizer não à continuidade do jogo divino-diabólico que move a história. Hegel tinha-nos ensinado que o suicídio era a realização e a manifestação mais autênticas da liberdade individual absoluta, mas Saramago prega uma finta a Hegel quando, recusando que a história tenha chegado ao seu fim com a Revolução Francesa e a realização da liberdade, insinua que a libertação final e derradeira do homem implica a morte conjunta de Deus e do seu duplo - o homem. A leitura está concluída, mas será necessário confrontá-la com outros livros de Saramago para afinar os seus conceitos nucleares.
J Francisco Saraiva de Sousa