domingo, 7 de março de 2010

Wilhelm Dilthey: A Hermenêutica da Historicidade

Wilhelm Dilthey (1833-1913) consagrou a sua vida à tarefa de dar uma resposta à pergunta pelos fundamentos antropológicos da reflexão histórico-universal, tal como esta tinha sido elaborada pelos grandes historiadores da Universidade de Berlim: Ranke, Mommsen e Droysen. Em 1883, Dilthey publicou o primeiro volume da Introdução às Ciências do Espírito: Ensaio de uma fundamentação do estudo da sociedade e da história, onde esboçou uma crítica da razão histórica, concebida na proximidade da fundamentação gnoseológica das ciências da natureza levada a cabo por Locke, Hume e Kant: o objectivo de Dilthey era justificar filosoficamente os princípios da Escola Histórica, não a partir de um a priori rígido da faculdade de conhecer, mas mediante o sentido da «história evolutiva que parte da totalidade do nosso ser». À visão de conjunto de cada uma das ciências do espírito, segue-se uma ampla exposição da história da metafísica e da sua desintegração, que visa preparar o caminho para uma nova fundamentação das ciências do espírito. Porém, o segundo volume que seria dedicado à formulação desta nova fundamentação não chegou a ser publicado, porque o próprio Dilthey foi levado a transformar o empreendimento da fundamentação com base na «psicologia descritiva» e na gnoseologia da vida histórica no programa de pesquisa de uma hermenêutica da experiência histórica. A preocupação de Dilthey com a história da metafísica e da sua destruição justifica-se por dois motivos: primeiro, porque a metafísica desempenhou ao longo da história da filosofia a função de fundamentação, e segundo, porque a Modernidade, que culmina no nascimento da consciência histórica, implica o fim da metafísica. A destruição da metafísica começou no século XVII com o surgimento das ciências da natureza e a necessidade de elevar a natureza humana a princípio de compreensão da sociedade e da história. No século XVIII, este princípio da natureza humana foi substituído pela perspectiva histórico-universal, isto é, pela concepção da História Universal, cujo núcleo radica na ideia de evolução.
Ora, a descoberta da historicidade do ser humano implica o fim da metafísica e do seu ideal de uma estruturação lógica do universo fundada na ideia de Deus. Segundo Dilthey, este ideal da metafísica elevou-se a princípio da razão suficiente com Leibniz e realizou-se plenamente no sistema filosófico de Hegel. Dilthey condena o logicismo hegeliano, erguendo - acima dele e contra ele - a liberdade e a historicidade da vida: o que permanece da velha metafísica é o carácter meta-físico da nossa vida como experiência pessoal. Juntamente com a historicidade do ser humano, emerge a consciência da finitude e da relatividade de todas as manifestações históricas: tudo flui, nada permanece fixo. A concepção histórica do mundo ameaça conduzir ao relativismo ou à anarquia das convicções e, para evitar esta degeneração, Dilthey elabora o conceito de totalidade da vida que se manifesta nas vivências: a unidade da vida, que ocupa o lugar da razão universal de Hegel, é algo que se manifesta e se torna imediatamente presente nas vivências do sujeito que as «sofre». O conceito de vivência (Erlebnis) relaciona-se com os conceitos de significado ou sentido (Bedeutung) e de significação ou relevância (Bedeutsamkeit). Cada vivência particular significa algo como parte de um todo, através da sua conexão com a totalidade (Ganzheit) da vida, mas o seu valor para este todo (das Ganze) vital muda constantemente ao longo do tempo e o seu significado modifica-se na nossa recordação. Assim, o significado que cada vivência adquire no decurso da nossa vida nunca está totalmente definido: o sentido total da vida só pode ser apreendido no seu último instante. Para Dilthey, o sentido da vida e o sentido da história só podem ser realmente compreendidos quando ambas terminam. Além disso, a determinação do significado do passado é influenciada pelas metas que nos propomos alcançar no nosso futuro e que estão relacionadas com o próprio todo vital ainda não-cumprido. Ora, uma vez que o fluir da vida modifica sem cessar o significado das suas partes, as vivências das pessoas e o todo que é objecto da memória histórica estão sujeitos a constantes reinterpretações.
Dilthey tem dificuldade em apreender o todo da vida no decurso da própria vida. Embora o todo só exista para nós na medida em que resulta compreensível a partir das suas partes, o significado destas partes depende precisamente da compreensão prévia do todo. Heidegger retoma esta dificuldade de Dilthey na sua analítica da historicidade como um elemento constitutivo do modo de ser específico do ser-aí (Dasein), dando-lhe uma outra solução, sem ser preciso aguardar pela morte efectiva para saber finalmente qual é o todo da vida e qual é o significado das suas partes: o homem avança de modo antecipado ao encontro da possibilidade da sua própria morte e, neste adiantar-se, apropria-se da possibilidade de antecipar existencialmente um ser-aí total, isto é, da possibilidade de existir como um poder-ser total. O todo da vida do indivíduo é captado, pelo menos potencialmente, mediante este movimento de antecipar o encontro com a morte como a sua possibilidade derradeira, extrema e certa. O carácter sempre inacabado e aberto do nosso trajecto vital implica a correcção permanente desta captação antecipada do todo pelas experiências futuras: a totalidade e a verdade definitiva da vida que ainda não foi cumprida tornam-se presentes no fluir da experiência histórica, através desta captação antecipada do todo realizado. Porém, a solução heideggeriana diz respeito apenas à vida individual que se adianta e se antecipa ao encontro da morte (Vorlaufen zum Tode). Dilthey está mais preocupado com a inserção da vida individual em contextos vitais mais vastos, porque a totalidade da vida e o significado das experiências particulares do indivíduo são inseparáveis da vida colectiva. O conhecimento do sentido definitivo da vida e das experiências de um indivíduo dentro do seu curso temporal exige, de certo modo, a possibilidade de antecipar a totalidade da história a partir do seu fim último. A escatologia cristã aponta a ressurreição de Cristo como o acontecimento pelo qual o fim da história se torna presente no decurso da própria história, mas Dilthey recusa vincular a totalidade da vida com a ideia de Deus como fundamento da sua unidade, alegando que esta união é operada por uma concepção do mundo (Weltanschauungen) derivada das religiões monoteístas e já superada pela concepção histórico-filosófica do mundo. Dilthey retoma o conceito de universo elaborado pelo Jovem-Schleiermacher para definir a sua ideia do todo vital, do qual as vivências particulares recebem o seu significado. A metafísica introduziu na filosofia a ideia de Deus como fundamento ou razão (Grund) do mundo, mas a descoberta da historicidade de todos os fenómenos vitais implicou, como vimos, o fim da metafísica e da sua matriz religiosa. Nos tempos modernos, o mundo tornou-se de tal modo auto-suficiente que já não é preciso recorrer a Deus para o explicar: o mundo de Dilthey é, pois, um universo sem Deus. Ao pensar radicalmente a historicidade da metafísica dentro do marco da própria historicidade dos fenómenos vitais, Dilthey articulou a consciência do carácter aberto da história - a história como processo inacabado - com a finitude de todos os fenómenos vitais dada na sua historicidade radical, de modo a libertar a consciência histórica do seu sequestro metafísico. Marcuse mostrou que a teoria da historicidade de Dilthey nos reenvia de volta à ontologia hegeliana da vida: a concepção hegeliana do sentido ontológico da vida humana como historicidade implica já a noção de mobilidade vital como um modo privilegiado do devir do ser. Dilthey retoma do Jovem-Hegel a noção de história enquanto modo de ser, a partir da qual procura pensar o sentido do ser daquele ente que é histórico. A monografia de Dilthey sobre o Jovem Hegel (1906) contribuiu decisivamente para a renovação do hegelianismo, apesar de Lukács ter visto nela uma falsificação da dialéctica de Hegel no sentido de fomentar a sua abertura ao irracionalismo filosófico. Quando lida à luz da viragem antropológica que se operou na filosofia pós-hegeliana, a filosofia hermenêutica de Dilthey permite-nos redefinir a condição humana a partir da sua finitude e da sua historicidade, abrindo assim as portas à tarefa de converter a antropologia numa filosofia da natureza.
J Francisco Saraiva de Sousa

10 comentários:

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Tal como Lukács, admiro profundamente o estudo que Dilthey dedicou ao jovem-Hegel, mas neste post prefiro mostrar o seu contributo para a filosofia, integrando-o na viragem antropológica da filosofia que ocorre depois de Hegel: o objectivo é estabelecer uma ponte com a filosofia processual - a conversão da antropologia numa filosofia da natureza.

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Já repararam que o projecto da crítica da razão histórica é consumado por Sartre na sua Crítica da Razão Dialéctica? Raymond Aron censura o kantismo de Sartre, mostrando que se afasta do marxismo. A concepção de historicidade de Heidegger é devedora dos estudos de Dilthey e Marcuse explicitou a teoria da historicidade de Dilthey, mostrando que ele retoma a noção de vida do Jovem-Hegel. :)

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

O Plano Inclinado foi ontem dedicado à educação: Mário Crespo colocou sobre a mesa o caso do rapaz de 12 anos que se suicidou por causa de levar pancada na escola. Ora, como é que os responsáveis pela miséria do ensino podem resolver aquilo que criaram? O problema do ensino estava presente nos próprios participantes - planos inclinados. :(

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Há muito tempo que não lia Dilthey e, neste momento, estou apaixonado com a sua temática da dissolução da metafísica: o protestantismo atiçou todos estes desenvolvimentos filosóficos na Grande Alemanha. A obra de Dilthey não é tão linear como se pensa: a sua relação com todos os sistemas metafísicos permite-lhe avançar na filosofia e na compreensão da modernidade.

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Os chamados professores portugueses são uns palhaços que capturaram as instituições de ensino para deixar a sua merda. Este país não tem praticamente tradição filosófica e científica e é por isso que estamos condenados à miséria: os profs tugas da merda fazem das suas opiniões matéria de aprendizagem. Eles não conseguem captar os conceitos no seu perfil epistemológico e nas suas articulações dinâmicas - eles matam constantemente a cultura superior e não toleram a inteligência crítica.

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Se o Estado não tiver coragem para sanear esta malta burreca e maldosa, estamos lixados, porque não temos novas gerações competentes. É preciso aproveitar os poucos que existem - com qualidade - para travar o retrocesso social e cultural de Portugal: no Porto, são pessoas más, em Lisboa, são parolas, no país, não existem. Os nossos recursos inteligentes são escassos e estão afastados do poder. É preciso dar-lhes poder e afastar a incompetência instalada: eis a nossa revolução!

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

No fundo, a reforma do ensino é regressar ao ensino anterior ao 25 de Abril, porque actualmente não temos ensino. :(

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Bem, guardei para mim alguns desenvolvimentos que permitem superar as dificuldades hermenêuticas de Dilthey.:)

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Bem, não desenvolvo a interpretação de Marcuse e de Lukács para não andar à pancada com eles: prefiro pensar os desafios lançados por Dilthey.

João Carlos Luna disse...

Depois de ter efetuado estudos superficiais sobre história e hermenêutica, publicado na revista Crítica Histórica da UFAL(http://sites.google.com/site/revistacriticahistorica/numerozero/artigos-fluxo-contnuo), disponibilizo para todos que tiverem interesses em leituras e críticas sobre o assunto.