domingo, 30 de janeiro de 2011

Henri Pirenne e a Idade Média

«De todas as características desta admirável construção humana que foi o Império Romano, a mais surpreendente e também a mais essencial é o seu carácter mediterrânico. É ele que possibilita a unidade de todas as províncias, embora grego a oriente e latino a ocidente. O mar, o mare nostrum, em toda a extensão do termo, veicula as ideias, as religiões, as mercadorias. As províncias do Norte, a Bélgica, a Bretanha, a Germânia, a Récia, a Nórica, a Panónia, são apenas barreiras avançadas contra a barbárie. A vida concentra-se nas margens do grande lago.» (Henri Pirenne)

«As três partes que compõem (o Velho Mundo, o palco da história universal,) mantêm entre si uma relação essencial e formam uma totalidade. A sua característica marcante é que estão situadas à volta (do mar mediterrânico); por essa razão, dispõem de meio fácil de comunicação, porque rios e mares não devem ser considerados como factores de dispersão, mas de união. A Inglaterra e a Bretanha, a Noruega e a Dinamarca, a Suécia e a Livónia, eram unidas, pois então o que une estas três partes do mundo é o Mediterrâneo, o centro da história universal.» (Georg Wilhelm Friedrich Hegel)

A Idade Média - essa "longa e terrível noite" da história do Ocidente (Hegel) - seduziu-me desde os meus tempos precoces de estudante, e grande parte dessa sedução devo-a à leitura das obras de Henri Pirenne (1862-1935) e de Johan Huizinga. (Jacques Le Goff também me entusiasmou, mas em menor grau!) Lembro-me de ter confrontado - diante de um mapa histórico - a minha professora de História (7º ano?) a propósito da queda do Império Romano: o meu marxismo rudimentar levava-me a desconfiar da tese oficial segundo a qual as invasões bárbaras tinham ditado e selado o destino dessa admirável construção humana que foi o Império Romano. Atribuía na altura a sua queda às contradições internas do modo de produção esclavagista, ao mesmo tempo que salvaguardava a vitalidade do Império Romano a oriente - o Império Bizantino pelo qual nutria um especial carinho. Só mais tarde - já no secundário - reformulei e fundamentei a minha perspectiva quando estudava a passagem do feudalismo para o capitalismo: o estudo da obra de Maurice Dobb - A Evolução do Capitalismo - reconduziu-me directamente às obras de Henri Pirenne. Li-as com muita atenção e fiquei extremamente desiludido com os meus professores que arrogavam o direito de ensinar aquilo que não sabiam. A ignorância arrogante destes professores com orelhas de burro iluminou uma das minhas preocupações teóricas: articular o que conhecia da História da Europa - Pirenne escreveu uma História da Europa, bem como uma História da Bélgica - com a História de Portugal. Hoje descobri uma anotação marginal feita nas margens de uma das obras de Pirenne, onde alinhavo essa articulação indo mais além da perspectiva de Armando Castro: «Para Pirenne, o feudalismo estabeleceu-se na Europa com Carlos Magno, devido ao isolamento a que foi submetida pela invasão muçulmana, que a privou do mediterrâneo e do mar. Portugal enquadrava-se no domínio muçulmano, mais voltado para o comércio do que para a agricultura: enquanto na Europa se estabelecia a feudalidade, em Portugal dominava o modo de vida comercial. Só com o movimento de Reconquista no século XII é que as coisas começaram a alterar-se: uma feudalidade tardia começou a estabelecer-se, juntamente com características peculiares ao momento histórico. A Reconquista é um movimento conduzido pelo rei com o apoio da Igreja. Daí que nunca tenha havido descentralização do Estado, como sucedeu no Norte da Europa. No entanto, a vocação marítima que o português herdou do árabe nunca se apagou: as Descobertas são o seu despertar pleno. A Inquisição está associada a esse maldito centralismo português...». A ignorância dos meus professores confrontou-me com a questão do atraso histórico de Portugal, isto é, do seu desfasamento (temporal) da Europa: não só tinha dificuldade em redescobrir sinais evidentes do feudalismo de F. L. Ganshof e de Marc Bloch em Portugal, como também constatava o atraso do capitalismo português: E. A. Kosminsky revelou-me o espírito de suborno e de trapaça dos portugueses que, apesar das riquezas da Índia, não conseguiram acelerar o seu desenvolvimento económico capitalista. Interpretei a ignorância dos meus professores do secundário como a prova mais evidente do atraso histórico de Portugal, pensando que tudo isso mudaria com a minha entrada na Universidade. Porém, quando isso ocorreu, fiquei aterrorizado: os meus professores universitários foram - e muitos ainda o são - autênticas bestas que conversavam sobre coisas que não tinham aprendido. Hoje tenho mais "saudades" dos professores do secundário do que das bestas universitárias. Assumi então a minha condição de exilado numa terra de bestas vigaristas e malvadas, deixando de ter esperança no futuro de Portugal e confiando o estudo da sua fauna "humana" à zoologia. Enfim, quando olho para um português, não vejo um ser humano, mas sim um mero animal incapaz de pensar e de socializar de modo construtivo e saudável: os seus olhos sem expressão não revelam uma alma; revelam - isso sim - a total ausência de alma. A tese aristotélica - a tese que afirma que os olhos são as janelas da alma -, como qualquer outra tese teórica ou histórica, não se aplica aos portugueses: Portugal está geograficamente - espacialmente - na Europa, mas sem no entanto a acompanhar no tempo. No espaço da Europa, Portugal é um "estado de excepção" e são as causas desse estado - nomeio cinco: o centralismo, o poder excessivo da Igreja que sufocou qualquer tentativa de Reforma, a expulsão dos judeus, a corrupção endémica e a emotividade histérica adversária da racionalização capitalista - que devem ser investigadas se quisermos construir um futuro novo e resgatar integralmente o nosso passado. Hegel incluiu Portugal no palco da história universal, louvando o "espírito cavaleiro dos heróis marinheiros" portugueses por ter ampliado o descobrimento do mundo, mas esta exteriorização do espírito acabou por refluir, e o espírito universal deslocou-se para o centro e o norte da Europa, sendo hoje ameaçado pelas economias asiáticas emergentes.

Hipótese histórica de Henri Pirenne: Segundo Pirenne, a ruptura entre a história do Império Romano e a história da Idade Média ocorre com a invasão muçulmana, que, ao apoderar-se do Mediterrâneo, interrompeu as comunicações e as trocas entre o Oriente e o Ocidente, de tal forma que a cunhagem do ouro cessou também. O mundo antigo prolongou-se até ao século VIII e à irrupção do Islão no Ocidente: os Sarracenos fizeram do Mediterrâneo um mar hostil e o Ocidente ficou assim engarrafado e cortado do Oriente. As consequências desse engarrafamento foram as seguintes: a diminuição das trocas internas, a paralisação da vida urbana, e a rarificação da moeda de ouro até deixar de existir. Carlos Magno adoptou o padrão-prata e, deste modo, consagrou a ruptura com o Oriente. O seu império terreno era um mosaico de villae, cada uma delas vivendo fechada sobre si mesma, pelo que quase não havia necessidade de signos monetários. (:::)

Obras de Henri Pirenne e de Johan Huizinga em língua portuguesa:

Pirenne, Henri (1965). História Social e Económica da Idade Média. São Paulo: Mestre Jou.
Pirenne, Henri (1973). As Cidades da Idade Média. Mem Martins: Europa-América.
Pirenne, Henri (1970). Maomé e Carlos Magno. Lisboa: Dom Quixote.
Huizinga, Johan (s.d.). O Declínio da Idade Média. Porto: Ulisseia. (Prefiro o título da edição espanhola: O Outono da Idade Média.)
Huizinga, Johan (1980). Homo Ludens: O Jogo como Elemento da Cultura. São Paulo: Perspectiva. (Esta não é uma obra sobre a Idade Média.)

(Em construção) J Francisco Saraiva de Sousa

1 comentário:

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

A educação faliu completamente em Portugal, o que quer dizer que não há futuro melhor. Vamos de mal a pior...