«Os sábios experimentados da ciência da morte sabem que os moribundos têm de ser mantidos despertos e em plena consciência dos sintomas do seu fim. Doutro modo, eles não poderiam reconhecer a Luz Fundamental na sua realidade. A vida dos poetas assemelha-se a esse estado de confrontação em que o espírito se equilibra como uma agulha sobre um delgado fio; movida pelo sopro dos desejos egoístas e a força do eu, a agulha cai e a vida é arrastada de novo para a sua roda de padecimentos. Bardo significa entre dois estados; quer dizer, situação crepuscular e incerta que oscila entre a morte e o renascimento. Os lamas chamam bardo ao estado imediato à morte; o corpo bárdico começa então a usar as suas faculdades supranormais e pode atingir diversos graus duma nova existência. O bardo celta, ligado à função sacerdotal, manifesta-se pela poesia lírica ou heróica, e provavelmente teve origem na escola búdica, que ensina que tudo o que o homem pode aprender pode crer também. As imagens semeadas no seu pensamento durante a vida são fecundas no espírito que o acompanha na morte. O poeta ocidental, o que resta do bardo celta ou do seu mísero canto de cego e de vagabundo, contém a mentalidade do sonhador, baseada em experiências humanas incomensuráveis; é um produto intemporal que subleva a própria força de viver e a vontade de acreditar, de amar e de criar um mundo». (Agustina Bessa-Luís)
Infelizmente, Agustina Bessa-Luís (nascida em 1922) encontra-se nessa situação crepuscular e incerta que oscila entre a morte e o renascimento. O povo português é ingrato e cruel para com os seus intelectuais mais brilhantes e originais, reservando-lhes o esquecimento em vida e também depois da morte. O esquecimento ganha a forma de um homicídio intencional quando se trata de uma figura intelectual da Cidade do Porto: a inveja que as almas medíocres e saloias nutrem pelo espírito cultural da Cidade Invicta leva-as a adulterar e a falsificar a história da literatura portuguesa e do pensamento lusófono. Agustina Bessa-Luís agravou o seu exílio interior ao envolver-se voluntariamente com as forças partidárias da Direita: este seu compromisso político gerou desconfiança no espírito daqueles poucos homens libertos que poderiam fazer renascer a sua imensa obra literária e ensaística, ligando-a ao grande legado da tradição ocidental que luta pela emancipação do homem. As falsas amizades que rodearam Agustina Bessa-Luís foram fatais para a recepção da sua obra: as suas cores cinzentas eclipsaram o brilho e a luz que emanam da sua obra. Quem escreve deve saber escolher os seus amigos, e os bajuladores oportunistas são os piores inimigos que um autor pode escolher, porque no seu espírito mesquinho e atrofiado nada germina. Os pseudo-amigos de Agustina Bessa-Luís criaram um abismo entre a sua obra e os seus potenciais leitores inteligentes: eles secaram a fonte, não no sentido de se apropriarem da sua «mensagem» e do seu mundo, mas no sentido de a privarem do seu poder de fecundação em espíritos preparados para lhe dar continuidade. As sementes cognitivas lançadas por Agustina Bessa-Luís não germinaram nestas terras estéreis que são as terras portuguesas: a prova disso reside no facto de não termos ao nosso dispor um único estudo sério e profundo sobre o seu universo literário. A alma lusitana é, cultural e filosoficamente, estéril: Sampaio Bruno esboçou a evolução do romance na civilização europeia, mas o seu esforço teórico não surtiu nenhum efeito positivo sobre a alma estéril dos portugueses vindouros que preferem fingir que conhecem as últimas modas parisienses ou estrangeiras, em vez de actualizarem e de reinventarem o legado histórico da cultura portuguesa, em diálogo produtivo e dinâmico com as tradições literárias mundiais.
Porém, apesar deste eclipse em vida da obra de Agustina Bessa-Luís - aliás o destino de todas as mentes brilhantes portuguesas e das suas obras, podemos resgatar a sua obra para a posteridade, libertando-a dessa prisão política e ideológica e trazendo-a - sozinha sem o halo cinzento que a obscurece - à nossa presença: a obra deve ser lida sem a mediação obscura dessas figuras cinzentas que lhe negaram a germinação espiritual. A densidade psicológica das personagens dos romances de Agustina Bessa-Luís - por exemplo, Quina e Germa do romance A Sibila de 1954 - contrasta fortemente com a pobreza da vida psicológica dos seus leitores portugueses. Como já se tornou evidente, estou a «utilizar» a teoria da recepção para mostrar que a indigência mental e cognitiva dos leitores portugueses empobrece o universo de sentido das obras literárias e filosóficas: «No triângulo formado pelo autor, a obra e o público, este último não é de forma alguma um elemento passivo, que apenas reagiria em cadeia, mas antes uma fonte de energia que contribui para fazer a própria história. A vida da obra na história não é pensável sem a participação activa daqueles a quem se dirige. É a sua intervenção que faz entrar a obra na continuidade de um horizonte dinâmico de experiência, na qual se opera a permanente passagem de uma recepção simples a um comportamento crítico, de uma recepção passiva a uma recepção activa, e das normas estéticas reconhecidas a uma produção nova» (Hans Robert Jauss). Os textos literários são processos de significação que só se materializam e se concretizam na prática da leitura produtiva: quer dizer que sem a participação activa do leitor - e do seu acervo de conhecimentos prévios - não há obra literária (Wolfgang Iser). O leitor inteligente deve preencher as indeterminações - os hiatos e as lacunas - da obra literária, através da formulação de hipóteses construtivas sobre o seu significado e da sua revisão permanente: a leitura não é, portanto, um movimento linear e progressivo, mas antes um movimento para trás e para a frente (Roman Ingarden), no decorrer do qual as nossas suposições iniciais que geraram um quadro de referência para a interpretação do que vem a seguir estão constantemente a ser revistas e reformuladas pelo que se segue até alcançarmos a inteligibilidade da harmonia da sua totalidade orgânica. A teoria da recepção, pelo menos na versão de Iser e de Ingarden, implica o circuito fechado entre o leitor e a obra e, no plano social e ideológico, reflecte a condição fechada da instituição académica da Literatura: a abertura da obra é gradualmente eliminada à medida que o leitor consegue construir uma hipótese de trabalho capaz de reduzir o seu potencial polissémico a alguma forma de ordem - o texto fechado - que garanta o eu unificado do leitor. A agudeza da consciência histórica que atravessa a obra de Agustina Bessa-Luís permite romper com o modelo normativo - e funcionalista, no sentido das partes estarem adaptadas coerentemente ao todo - de Iser que bloqueia e refreia o potencial ilimitado da linguagem, situando desde logo as obras literárias num horizonte histórico: a obra literária é produzida num determinado contexto de significados culturais que o leitor crítico deve conhecer para poder em seguida explorar as suas relações variáveis com os horizontes históricos de todos os seus leitores históricos, de modo a produzir um novo tipo de história da literatura, centrada não nos autores, mas na literatura tal como foi definida e interpretada pelos seus diversos momentos de recepção histórica (Hans Robert Jauss). Nesta perspectiva, as obras literárias e as tradições literárias não permanecem constantes ao longo do tempo: elas sofrem modificações activas, de acordo com os diversos horizontes históricos dentro dos quais são recebidas, interpretadas e apropriadas. Se toda a obra literária encerra em si mesma um leitor implícito, como defendeu Sartre, então a obra de Agustinha Bessa-Luís exige um leitor dotado de uma consciência histórica suficientemente profunda para lhe permitir operar uma fusão de horizontes (Hans-Georg Gadamer). Ora, os leitores portugueses não se enquadram dentro do perfil geral do leitor posicionado na história: a escola portuguesa, sobretudo depois do 25 de Abril, com a emergência das novas pedagogias do atrasado mental, ensinou-os a fingir que descobrem os textos no vácuo social e cognitivo. Como é que criaturas destituídas de conhecimentos prévios podem interpretar e compreender correctamente obras literárias? Os zombies fabricados em série pela escola portuguesa são desafiados pelos seus professores a opinar arbitrariamente sobre os textos, sem terem aprendido que estão social e historicamente situados e que o modo pelo qual interpretam as obras literárias é profundamente marcado e condicionado por esse facto. Entre a obra literária e o público português não há faísca capaz de desencadear um diálogo produtivo, ou seja, uma leitura activa capaz de catalisar uma visão mais crítica das próprias identidades dos leitores: além de não ser capaz de preencher as lacunas do texto que está a ler, por falta de conhecimentos prévios, o leitor português não adquire através da prática da leitura um auto-conhecimento enriquecido. Ele compra as obras e coloca-as nas prateleiras da estante - lá de casa ou do gabinete de trabalho - para indicar aos outros um pretenso status cultural que não é efectivamente o seu. Em Portugal, a cultura é uma simulação mentirosa, um mero jogo de sociedade.
(Recomendo a leitura da trilogia O Princípio da Incerteza de Agustina Bessa-Luís: Jóia de Família (2001), A Alma dos Ricos (2002) e Os Espaços em Branco (2003).)
J Francisco Saraiva de Sousa
11 comentários:
Estou chocado com a coligação negativa no Parlamento. Em suma, em Portugal só há um partido de esquerda - o PS, o resto é loucura que nos lança no abismo.
O Porto tem um rosto que é também o de Portugal. Agustina. Merecedora do grande Nobel da Literatura.
Depois de concluir este texto introdutório, vou ver se analiso alguma obra dela, logo que tenha mais tempo. Ela merece o P Nobel.
Agustina é um mar imenso. Até porque promove a inter-arte. Agustina vive nas palavras escritas mas também no cinema.
Francisco, gostei muito da sua homenagem a Agustina.Também acho que ela merece um Nobel.
Infelizmente no Brasil, este país de hominídeos carnavalescos, a obra de Agustina é desconhecida. Sempre mantive contato estreito com esta escritora genial, um "mar imenso" como bem disse a Denise. Aprecio imenso a obra de Agustina, Miguel Torga e Vergílio Ferreira. Tenho a impressão de que os portugueses ainda não valorizam estes artistas inspirados pelo Absoluto.
André
Os portugueses não prestam e, com a visita da vossa presidente, revelaram outro traço triste: são uns chulos. :(
Denise
Manuel de Oliveira deu vida ao universo de Agustina no cinema. E temos também as peças de teatro.
André
O conhecimento foi liquidado no mundo ocidental. Tenho estado atento às pessoas e fico aterrorizado com a sua desumanização - são hoje meros animais entregues às trocas metabólicas com a natureza. É provável que tenham sido sempre estes animais feios... A Filosofia fez uma imagem muito irrealista da natureza humana. Julgo ser necessário rever essas imagens do homem para pensar um outro futuro.
Hummm... estou contente por ter tb audiência no Irão! :)
bem Agustina Bessa-Luis viveu muito tempo em Figueiró Amarante terra de meu falecido pai aldeia com profundas origens judaicas inspiração essa que prespassa a obra de tão talentosa escritora ninguém repara que é muito raro kafka não estar presente nos seus textos nem que seja a expia los
mas acerca do nobel é um crime ainda não ter sido atribuido a Agustina mas é importante promovê la como deve ser com os melhores criativos que temos como a Espanha promoveu Saramago
Barreiro
Partilho o que disse!
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