«Alexandre viveu o suficiente para superar a estreita concepção de uma ascendência helénica sobre os não-helenos, em favor do ideal maior da fraternidade da humanidade. No seu contacto com os persas, reconheceu e admirou todas as virtudes que lhes permitiram governar uma grande parte do mundo por mais de duzentos anos, e passou a sonhar com um mundo governado em conjunto pelos persas e pelos helenos. Este idealista precoce, porém, era capaz de matar amigos e companheiros, em ataques de fúria alcoólica, tal como o herói homérico que o lado adolescente da sua natureza aspirava a ser. E a sua intemperança habitual foi, sem dúvida, a causa da sua morte súbita e prematura, na Babilónia, em 323 a.C. Tivera tempo de destroçar um grande império, mas apenas começava a pôr em prática os planos de reconstrução que lhe amadureciam no espírito». (Arnold J. Toynbee)
Em 1836-43, J. G. Droysen publicou a sua obra "Geschichte des Hellenismus", onde entende por helenismo a época que começa com a derrota do Império Persa pelo exército de Alexandre o Grande. O novo império criado por Alexandre - rei da Macedónia - dissipou-se rapidamente como construção política depois da sua morte em 323 a.C., mas a ideia que lhe era subjacente - a criação de uma cultura humana unitária com o selo helénico - sobreviveu em cada um dos fragmentos em que se decompôs: os Ptolomeus no Egipto, os Selêucidas na Síria e nas terras do Eufrates, os Atálidas no Pérgamo e na Ásia Menor e os Antigónidas na Península Balcânica. Esta fragmentação do Império Macedónico não implica o fracasso do sonho de Alexandre: a sua ideia de superar a distinção entre helenos e bárbaros mediante a fusão dos povos orientais e ocidentais realizou-se a par e passo durante os séculos seguintes. A posteridade viu nele não um conquistador mas o reconciliador de todos os povos que consideravam a Ecumene como a sua pátria. O conceito de Ecumene - a unidade da terra habitada - desenvolveu-se na época helenística: a vida política deixou de ter lugar nas estreitas fronteiras das cidades-estado gregas e passou a desenrolar-se no campo mundial da terra habitada. A ideia cosmopolita e humanística germinou nesta arena mundial: o elemento grego desnacionalizou-se para se tornar domínio espiritual do mundo e, no lugar da cidade-estado, instalou-se o estado mundial, cujo cidadão já não era o cidadão nacional, mas o cidadão do mundo, o cosmopolita. Neste cosmos da nova ordem mundial, formou-se um novo sentimento do mundo e da vida: o indivíduo autárquico e autosuficiente, liberto dos estreitos laços da polis, sentiu-se entregue a si mesmo e, ao mesmo tempo, inserido e articulado na ordem do mundo e na humanidade como tal. Deste modo, abriu-se o caminho para o individualismo sem limites que permitiu ao homem desenraizado do seu lugar de origem sentir-se em sua pátria em qualquer lugar da ecumene. No mundo helenístico, o que predominava não era o elemento de separação e de contraposição nacional, mas o elemento da unidade humana e o sentimento de parentesco e de conaturalidade de todos os homens: a filantropia - a amizade de princípio - impôs-se como relação natural entre os homens, em vez da estranheza e da hostilidade nacionais. Porém, a realidade desta ideia de humanitas - a que os gregos deram conteúdo e os romanos o nome - não correspondia plenamente ao ideal e, por isso, o mundo real foi forçado a justificar-se perante o tribunal daquele mundo humano ideal exigido pela razão. A filosofia grega desta época - em especial o estoicismo - constitui o fundamento e a consumação da ideia de estado mundial e da irmandade dos homens. A cultura helenística é fundamentalmente uma cultura das grandes cidades - Alexandria no Egipto, Antioquia na Síria e Pérgamo na costa ocidental da Ásia Menor, por exemplo -, que funcionavam, neste vasto mundo unido pela linguagem grega internacional - a chamada Koiné -, como centros da vida espiritual e, ao mesmo tempo, como residências dos príncipes, cujas riquezas estavam ao serviço da ciência e das artes. Porém, esta cultura helenística nunca conseguiu aprofundar-se à medida que se difundia pelo mundo e acabou assim por sucumbir ao perigo que a ameaçava desde o início - ser uma mera civilização, cujos excessos culturais desencadearam a reacção da predicação da escola cínica, a favor do regresso à natureza. O fim da época helenística pode ser datado a partir do momento da dissolução dos Estados Helenísticos no Império Romano - em meados do século II a.C., ou do seu começo, mas estes dois acontecimentos não quebraram o estilo da vida cultural e espiritual do mundo helenístico que irá continuar vivo até ao final da Antiguidade (século III da era cristã), quando a influência oriental - o poder místico da sua religião - conquistou o domínio da vida espiritual no Ocidente: Roma foi sempre uma província cultural do helenismo, no sentido da civilização romana ter sido submetida pela Filosofia ao espírito grego, ao pensamento grego e à sua dúvida, como testemunha o estoicismo de Séneca (4 a.C.-65 d.C.), Musónio Rufo e Marco Aurélio (121-180 d.C.).
Infelizmente, a filosofia do helenismo e as suas escolas filosóficas são negligenciadas nos cursos de Filosofia, pelo menos aqui em Portugal que carece de uma sólida tradição filosófica. O meu interesse súbito por estas escolas filosóficas - o epicurismo, o estoicismo e o cepticismo - não se deve tanto à leitura da tese de doutoramento de Karl Marx, mas sobretudo à semelhança estrutural que vislumbro entre este período histórico e o nosso tempo indigente. O epicurismo e o estoicismo - Stoa - são os dois sistemas filosóficos que deram forma ao novo espírito da época helenística: ambos foram fundados em Atenas pouco antes do ano 300, ambos apelam na sua física ao pensamento pré-socrático, ambos concedem a proeminência à filosofia prática - a ética, na qual elaboram e desenvolvem ideias das escolas socráticas, e ambos entregam o homem a si mesmo e procuram levá-lo à eudemonia - à serenidade e à tranquilidade interior (apatheia), embora a epicurismo a procure na separação do indivíduo da cidade e o estoicismo na união de todos os homens, aparentados por natureza: «Tudo aquilo que vês, que contém o divino e o humano, tudo é uno: somos todos membros de um grande corpo. A natureza gerou-nos como parentes dando-nos uma mesma origem e um mesmo fim. Ela inspirou-nos o amor recíproco e fez-nos sociáveis» (Séneca). Ao lado destes dois sistemas filosóficos, subsistem as duas grandes escolas filosóficas antigas da Academia (Platão) e do Liceu ou Perípato (Aristóteles). O cepticismo introduz-se na Academia que, deste modo, se afasta de todas as escolas dogmáticas, e os peripatéticos fundamentam cada vez mais resolutamente a investigação na experiência, transformando-se em cientistas e abrindo o caminho à especialização das ciências. Além destas escolas que conquistaram espiritualmente o Império Romano, o cinismo ataca ferozmente a situação existente, em especial a religião, e tenta rectificar as concepções erróneas dos homens sobre os bens desta vida e o seu valor. As campanhas de Alexandre e, pouco mais tarde, o aparecimento dos imperadores romanos, com os seus sonhos de império universal, criaram no espaço do Mediterrâneo uma situação completamente nova: a ruína dos Estados pequenos, a perda da liberdade e a insegurança geral despertaram nos homens angustiados a pergunta de como poderia um homem ser feliz num mundo tão incerto. As escolas filosóficas que surgiram para lhe dar uma resposta colocam a ética - como mestra e caminho da felicidade, definida como imperturbabilidade - no centro de toda a problemática filosófica. Na sua tese sobre a diferença entre a filosofia da natureza de Demócrito e a de Epicuro, Marx viu que o atomismo foi na escola epicurista o complemento do individualismo da época helenística: o dissolução das cidades gregas levou os epicuristas a renunciar à sociedade que deixara de ser conforme à razão e a preconizar a autonomia do indivíduo. A própria palavra atomon significa simultaneamente «átomo» e «indivíduo»: os epicuristas fizeram os elementos do universo impacíveis e imperturbáveis, porque, numa sociedade destroçada pela discórdia, era esse o ideal que procuravam. Ao recusar a vida pública, os epicuristas esperavam libertar-se de tudo o que podia perturbar a tranquilidade do seu espírito, e, para que esta recusa fosse um acto livre, introduziram o acaso no seio do determinismo de Demócrito: «Assim, a finalidade da acção é a abstracção, a supressão da dor e tudo o que pode perturbar-nos, a ataraxia» (Marx). Os epicuristas não procuram mudar o mundo, mas retirar-se do mundo: a sua ética visa, em última análise, a autonegação do sujeito. Como é evidente, está fora dos objectivos deste texto desenvolver a filosofia do helenismo e confrontá-la com a situação da filosofia contemporânea, mas as considerações genéricas aqui explicitadas visam preparar o terreno para essa exposição sistemática das diversas escolas filosóficas que dominaram na época helenística: a colocação da ética no centro da problemática filosófica gera em mim a suspeita de que a filosofia está a tentar fugir do mundo, em vez de iluminar a praxis que visa a sua transformação qualitativa. O retiro da alma em si própria (Marco Aurélio) e a ética da resignação - «Suporta e abstém-te» (Epicteto de Hierápolis) - são incompatíveis com a tarefa de transformar o mundo, porque o homem sozinho - ainda que procure a perfeição privada na companhia dos amigos mais íntimos - não pode ser verdadeiramente «feliz» num mundo que gera a infelicidade e a miséria. Em épocas de crise profunda, retirar-se do mundo comum, refugiando-se em si próprio, em busca da sua tranquilidade anímica, significa abandonar o destino do mundo aos caprichos do poder estabelecido: a política deve ter prioridade sobre a ética e esta é uma lição - de quem? de Karl Marx? - de Aristóteles.
J Francisco Saraiva de Sousa
7 comentários:
Quando escreveu a sua tese, Marx ainda não era marxista, mas a ideia-força permite esboçar um grelha de leitura da filosofia helenística na sua complexidade. A mediação da totalidade social é fundamental e cada noção opera essa mediação. Mas esse desenvolvimento está fora do âmbito deste post.
Apesar das explosões dos reactores nucleares, continuo a ter audiência no Japão. Não sei se o seu futuro depende de Deus, mas espero que superem este terrível momento.
Bem, quanto à minha audiência na Indonésia, não sei como a entender mas fico feliz.
Ando a pensar na profecia maia - a catástrofe do mundo no dia 21 de Dezembro de 2012, com o sol a estar mais próximo do centro da Via Láctea, donde resulta a alteração do eixo da terra. O sismo do Japão tb alterou o eixo por estar próximo do pólo norte. O mundo anda estranho! :(
«a colocação da ética no centro da problemática filosófica gera em mim a suspeita de que a filosofia está a tentar fugir do mundo, em vez de iluminar a praxis que visa a sua transformação qualitativa.»
Estou a ler agora o Livro VI da República de Platão, pelo que esta sua passagem me fez lembrar a exposição de Platão, através da «metáfora da embarcação», de como são os homens que expulsam a filosofia/razão/bom senso «do barco», razão por que parece inútil. Portanto, sentindo-se escorraçada, a Filosofia opta finalmente pelo retiro, tal como o F. parece dizer, para se guardar na tranquilidade parcial da sua torre de marfim, longe de um mundo que lhe parece de facto impossível de mudar. Tentativa de se salvar pelo menos a si, no seu «pequeno círculo de amigos». Triste por um lado, inevitável por outro. Porém, a filosofia nunca se retira completamente, porque é uma arma.
Gostei bastante de ler este seu post! :)
Cumprimentos,
Tiago
Olá Tiago
Também aprecio a metáfora da embarcação e, pensando bem, até podemos reler os gregos a outra luz. Porém, hoje acordei a pensar Duns Escoto e Occam. Enfim, no outono da idade média na sua relação com o nominalismo na sua versão radical termista.
Abraço
Ah, é terminismo. :)
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