«O exílio do homem é a ignorância; a sua pátria, a ciência». (Honorius d'Autun).
A escolha deste quadro de António Macedo - A Mudança - não é inocente: o seu título revela o caminho a seguir por Portugal para resolver a crise - a mudança de sistema social, mas, como o debate Prós e Contras de hoje (28 de Março) foi um debate entre universitários, tendo como palco a Aula Magna da Universidade de Lisboa, a própria universidade portuguesa não fica imune à exigência de mudança qualitativa: Portugal precisa de uma revolução universitária que liberte todas as instituições de ensino da mediocridade e da mentira organizada que as domina. A frase de Honorius d'Autun que sintetiza a sede de conhecer da Escola de Chartres do século XII, deve seduzir os universitários que zelam pela manutenção do seu posto de trabalho, a título de divisa profissional, genuína no caso dos verdadeiros sábios ou falsa no caso dos professores portugueses, mas a ideologia profunda que reflecte e que nos conduziu até a este terrível modelo de «sociedade dos sábios» precisa ser queimada. As ambiguidades e as contradições detectadas entre as narrativas dos convidados derivam do facto de nenhum deles ter meditado seriamente sobre a realização histórico-efectiva desta ideologia do esclarecimento. Maria Mota chamou-lhes paradoxos sem compreender que o seu próprio discurso era um paradoxo conspurcado pelo "có-có dos cães dos vizinhos" e pela ideologia do cientismo míope: o deslumbramento pela riqueza falsa - a que derivou do endividamento externo - e a fragilidade do self dos portugueses fecha-lhes a mente ao mundo e bloqueia o pensamento independente. A confusão imperdoável que Lídia Jorge estabeleceu entre o suposto carácter definitivo da história (?) e o carácter mutável do Ser (?) mostra até que ponto os portugueses deslumbrados odeiam a história - precisamente o reino da possibilidade no reino da necessidade. O autismo cognitivo de Lídia Jorge opõe-se à história e à mudança, impedindo-a de compreender e, sobretudo, de oferecer uma orientação política à Manifestação da Geração à Rasca: Lídia Jorge interpreta a sua recusa de liderança partidária como ausência de luta ideológica. Ora, ao assumir o discurso neoliberal do fim das ideologias, Lídia Jorge revela a sua satisfação com a ordem social vigente: a crise financeira e económica é vista como um mal passageiro nessa caminhada contínua e progressiva em direcção a uma civilização do ter que tudo devora à sua volta em nome do niilismo aniquilador. Lídia Jorge não é uma intelectual literária empenhada e comprometida: tal como a maioria da população portuguesa que foi configurada e programada a aceitar a irracionalidade da sociedade estabelecida, ela recusa-se a operar a passagem da consciência falsa para a consciência verdadeira, do interesse imediato para o interesse real. Lídia Jorge e a auto-intitulada geração à rasca estão condenadas ao fracasso político enquanto não aprenderem a viver com a necessidade de modificar o seu estilo de vida e de recusar o positivo: a sociedade portuguesa vigente reprimiu esta necessidade de modificação radical do estilo de vida configurando desde o berço até ao caixão a mente e o corpo dos seus agentes sociais em função da cultura do consumismo (João Salgueiro). O incêndio - a iminência da bancarrota - que temos à porta não se combate com a energia de sobrevivência (Lídia Jorge) ou mesmo com o contacto dos corpos nas ruas (José Gil), esse imenso espaço neutro que não pertence a ninguém, excepto aos mendigos, aos toxicodependentes e aos vagabundos sexuais: o neovitalismo subjacente a estas propostas é mais amigo do regresso do fascismo do que da construção esclarecida de uma democracia adulta. O neovitalismo de Lídia Jorge e de José Gil corre o sério risco de se converter na apologia do reino do animal metabolicamente reduzido - esse enorme tubo digestivo que abdicou da sua humanidade e da tarefa de pensar a realidade para a poder transformar, tendo em vista a construção cooperativa de um mundo melhor.
João Salgueiro defendeu - em nome dos factos positivos (?) - a tese segundo a qual os portugueses foram configurados desde pequenos na e pela ideologia neoliberal - profundamente darwinista - do "ganhar mais para consumir mais" nas novas catedrais do nosso tempo indigente: os centros comerciais e as suas praças da alimentação. António Hespanha responsabilizou a comunicação social, em especial a TV, por este "excesso de formatação" que força os portugueses a pensar de modo monótono: a acção conjugada das agências de socialização, em especial da escola e dos mass media, tem como efeito a produção em massa de indivíduos que perderam o sentido da realidade e, sobretudo, da individualidade rebelde, fazendo deles "espelhos uns dos outros" (José Gil). À palavra de ordem desta ideologia economicista que deforma e tolda a consciência política dos portugueses vedando-lhes o acesso esclarecido à dimensão histórica das figuras do possível - Bendita a riqueza!, Tolentino Mendonça (teólogo) opôs outra palavra de ordem - Bendita a pobreza! O positivismo darwinista de João Salgueiro não lhe permite ver para além dos factos positivos - isto é, ideologicamente construídos - gerados pelos "novos sacerdotes" - os economistas - para moldar a realidade em função dos interesses do capital e das suas ambições profissionais. As épocas de crise profunda são épocas que fomentam a esperança: a possibilidade histórica de operar uma ruptura radical com o modelo irracional de sociedade que nos conduziu ao abismo e ao limiar da pobreza generalizada e de construir uma sociedade nova. Porém, a alternativa deve situar-se para além da riqueza e da pobreza: a teoria marxista anseia pela justiça plena e recusa-se a fazer a apologia da pobreza tal como foi realizada pelos mendicantes - em especial pelos dominicanos e franciscanos - no século XIII. A apologia da pobreza procede daquele ascetismo que, como observou Max Weber, significa recusa do mundo, portanto pessimismo face ao homem e à natureza: a pobreza enquanto estado de necessidade permanente que impede o homem de participar no mundo comum deve ser abolida pelo movimento revolucionário de construção de um mundo melhor. Mas a construção permanente deste novo mundo - qualitativamente diferente do mundo vigente - deve libertar-se da velha narrativa económica e tecnológica do crescimento contínuo e ascendente: os homens podem realizar a sua humanidade e desfrutar uma vida sem angústia para além da falsa riqueza que lhes é oferecida pela sociedade de consumo financiada pelo crédito ao consumo. A este propósito, o grande medo de 1789 que se apoderou dos franceses nas vésperas da Grande Revolução (Georges Lefebvre) mostra-nos que a fome gerada pela actual crise financeira e económica pode converter-se em docta spes: o encarecimento do pão - o aumento do IVA preconizado pelo PSD de Passos Coelho - que conduziu ontem a canalha urbana francesa à contestação pode hoje levar os portugueses apáticos e resignados a operar a passagem da falsa consciência para a consciência verdadeira da sua situação objectiva e subjectiva no seio de uma sociedade injusta que lhes nega a dignidade humana da vida. Ao contrário do que pensam Lídia Jorge e José Gil, o protesto contra o status quo precisa da ideologia de esquerda - a utopia concreta - para ser politicamente eficaz: José Reis viu isso quando afirmou ser necessário olhar para a história e para o mundo global em busca de alternativas, dando voz aos silêncios que predominam em Portugal. Revelar esses silêncios significa descobrir oposições, diferenças, alternativas, que, quando galvanizadas e unificadas por forças ideológicas e políticas de esquerda, se convertem rapidamente em movimento organizado contra a ordem social vigente. A "profecia" de que precisamos (Tolentino Mendonça) não é a da apologia da pobreza que entrega o destino dos pobres nas mãos dos poderosos, mas a do derrube do modelo de sociedade - precisamente a sociedade da falsa afluência - que gera a pobreza, as desigualdades sociais, o abuso de poder, a exploração e a injustiça social. Demonizar a pobreza é fazer da fome um impulso para a revolução: à fome enquanto condição objectiva que prepara o terreno para o salto qualitativo é preciso acrescentar e adicionar de fora o elemento subjectivo que, ao contrário do que preconizou José Gil, não pode ser "neutro" - o espaço de ninguém é o espaço do poder vigente! - se quiser ter eficácia política. António Nóvoa inscreveu - e bem - a formação deste elemento subjectivo no espaço da universidade.
Ao rejeitar a utopia concreta em nome do pensamento positivo que glorifica os factos, como se estes não pudessem ser transcendidos pela praxis política esclarecida, João Salgueiro não só introduziu uma aporia no seio do seu discurso, como também incentivou a animosidade anti-economicista dos outros intervenientes. Aquilo que João Salgueiro disse em relação aos políticos - o facto da classe dirigente europeia não estar à altura das exigências do momento - foi-lhe devolvido - a si e aos seus colegas economistas - por Eduardo Paz Ferreira, António Feijó e António Nóvoa (Reitor da Universidade de Lisboa): libertar as instituições da burocracia (António Nóvoa) e do excesso de pragmatismo (António Feijó), que colidem com a função verdadeiramente educativa da universidade, foram palavras de ordem que os universitários ergueram contra o discurso economicista de João Salgueiro que tem colonizado todas as instituições da sociedade portuguesa nas últimas três décadas. António Nóvoa reconheceu que a universidade não soube apresentar um outro modelo de desenvolvimento para resolver a crise: em vez de ser uma "cascata de reflexão", a universidade portuguesa foi vítima da "cascata de senso comum" (António Hespanha) que força todos os portugueses a pensar de modo monocórdico e monótono. António Hespanha foi mais longe quando afirmou que a universidade portuguesa não está ao serviço do desenvolvimento do país, e isto por causa do cunhismo que se infiltrou no seu sistema de recrutamento: em vez de "pessoas qualificadas", a universidade portuguesa recruta os "afilhados" medíocres das figuras embrutecedoras que a dominam. Ora, esta anti-universidade que predomina em Portugal presta-se a tudo, excepto a desempenhar efectivamente a sua função que António Hespanha definiu nestes termos: «ensinar as coisas permanentes». Com esta definição da função da universidade, António Hespanha quis afirmar a sua autonomia, livrando-a do destino fatal que lhe atribuem os economistas neoliberais: ser uma espécie de "serviço social das empresas". Porém, para evitar o conservadorismo subjacente a esta expressão, é preciso colocar entre as «coisas permanentes» o cultivo da capacidade humana de transcender as situações de facto, mediante a abertura de novos horizontes para o mundo: o legado da tradição crítica deve ser constantemente actualizado, tendo em vista a restituição integral da história da humanidade. Infelizmente, quando optou pelo recrutamento de figuras pardacentas, a universidade portuguesa perdeu o contacto com o conhecimento crítico e com a sabedoria: as forças criativas de Portugal estão fora da universidade e contra a universidade que sacrifica a mudança no altar da conservação do emprego de homens mental e cognitivamente subnutridos. A ausência de projectos alternativos significa o fracasso total da universidade: o capitalismo é visceralmente contra a cultura e, depois da queda do Muro de Berlim, começou a investir contra a cultura. A indigência mental e cognitiva do nosso tempo é fruto desse capitalismo triunfante que sempre-já partiu à conquista do mundo global.
J Francisco Saraiva de Sousa
4 comentários:
Fátima Campos Ferreira convida tanta gente que torna praticamente impossível um comentário mais transparente: só a dialéctica me permite contornar essa cascata de narrativas desligadas umas das outras. Uma pessoa comum perde-se facilmente e isso é compreensível.
Estou feliz por ter audiência no Paraguai. Além do Brasil, como é evidente, a América Latina, do Centro e do Norte está a acolher bem o meu blog. Thanks!
Também estou feliz com o facto dos moçambicanos e angolanos estarem em contacto diário com este blog. Thanks!
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