domingo, 25 de setembro de 2011

C. P. Snow: Duas Culturas?

C. P. Snow
«Creio que a vida intelectual de toda a sociedade ocidental tende cada vez mais a dividir-se em dois grupos, em dois pólos. Quando digo a vida intelectual, entendo-a como incluindo também uma boa parte da nossa existência prática... Dois grupos, dois pólos: num deles, temos os intelectuais literários, que por vezes, quando ninguém os observa, costumam referir-se a si próprios como "os intelectuais", quer dizer, como se não houvesse outros que o fossem também, além deles. Os intelectuais literários, num dos pólos, portanto - e no outro, os cientistas, dos quais os mais representativos são os físicos. Entre uns e outros, um abismo de incompreensão mútua - que se torna por vezes (sobretudo entre os jovens) hostilidade e repulsa, mas que acima de tudo continua a ser incompreensão. Cada um dos grupo tem uma imagem estranhamente distorcida do pólo a que não pertence. As suas atitudes são tão diferentes que, nem sequer ao nível das emoções, conseguem grande coisa em comum». (C. P. Snow)

Com este texto introdutório liberto um novo tópico - a Filosofia da Cultura, que, assumindo a forma crítica de uma impugnação da teoria das duas culturas de C. P. Snow ou da teoria das três culturas de John Brockman, retoma a questão da cultura e da formação cultural - que tanto preocupou Theodor W. Adorno - para evidenciar que só a Filosofia pode redimir este conflito entre culturas. Esboçar uma teoria filosófica da cultura será, portanto, o nosso objectivo derradeiro. Existem muitas perspectivas sobre a cultura, tanto no seio da Filosofia como fora dela, e, no entanto, não temos ao nosso dispor uma teoria filosófica da cultura. Mas o que sabemos sobre a cultura é suficiente para denunciar a simplificação grosseira operada por C. P. Snow, quando reduz a vida intelectual do Ocidente a um conflito-cisão entre cultura literária e cultura científica. Uma teoria filosófica da cultura é, ao mesmo tempo, uma crítica da cultura: o conceito de cultura que predomina nas obras de C. P. Snow e de John Brockman é o conceito antropológico que foi elaborado pela Antropologia no final do século XIX. Ora, um tal conceito antropológico de cultura - em qualquer uma das suas concepções: descritiva, simbólica e estrutural, quando aplicado para delimitar culturas particulares ou regionais no seio da própria cultura ocidental, corre o risco de se converter em noção ideológica: a cultura literária, a cultura científica e a terceira cultura são noções ideológicas, no sentido de cada uma delas reflectir os interesses de determinados grupos sócio-profissionais e as suas respectivas visões do mundo. Quando introduzi o conceito de formação cultural, fi-lo na intenção de conservar o conceito clássico de cultura que resultou das discussões entre filósofos e historiadores alemães nos séculos XVIII e XIX. O conceito clássico de cultura pode ser definido deste modo: a cultura é o processo de desenvolvimento e de enobrecimento das faculdades humanas, um processo facilitado pela assimilação dos trabalhos académicos e artísticos e ligado ao carácter progressista da sociedade moderna. É certo que este conceito clássico precisa ser reformulado, mas ele tem o mérito inegável de chamar a atenção para o problema da formação cultural do indivíduo e da sociedade no mundo contemporâneo. Levá-lo em conta obriga-nos a deslocar a atenção da questão da cultura para a questão da formação cultural nas nossas sociedades modernas. À luz desta última questão o que se verifica nas nossas sociedades é a regressão cognitiva, acompanhada pela atrofia dos órgãos mentais. Este fenómeno de regressão cultural era mais evidente em 1991, quando Brockman alinhavou a ideia de terceira cultura - e, depois de forma mais sistemática, em 1995, do que em 1959, quando Snow apresentou a sua célebre conferência sobre as duas culturas na Casa do Senado de Cambridge. A terceira cultura de Brockman mais não é do que a cultura científica de Snow, mas já liberta dos intermediários - professores e jornalistas: os seus "pensadores" esforçam-se por exprimir os seus "pensamentos mais profundos" (sic) de uma forma acessível ao público inteligente. Mas quais são os pensamentos profundos norte-americanos a que se refere Brockman? Serão milagrosamente Richard Dawkins, Marvin Minsky ou Daniel Dennett pensadores profundos, capazes de nos oferecer o esclarecimento do sentido mais profundo da vida, redefinindo quem somos e o que somos? A obra organizada por Brockman é decepcionante: os seus colaboradores limitaram-se a substituir Marx e Freud por Darwin, como se o pensamento de que descendemos de "macacos" fosse suficiente para nos dar uma orientação na vida. Quando denunciou o clericalismo da ciência, Teixeira de Pascoaes viu bem que a lição de Darwin tinha o efeito contrário: animalizar o homem e privá-lo da sua humanidade, mais precisamente da cultura superior. O que está em questão neste debate sobre a cultura é, no fundo, o monopólio da cultura por parte de um dos seus "grupos clericais" ou sectores: Brockman defende a monopolização científica da cultura, tal como no outono da Idade Média a Igreja tinha usado a Inquisição para não perder o seu monopólio da cultura. Mas há uma diferença significativa entre a cultura científica e a cultura religiosa: em pouco tempo a ciência-ideologia tem feito mais estragos do que a religião no decorrer dos milénios. Felizmente, há uma terceira cultura, aquela que plasmou a civilização ocidental: a cultura filosófica, a única capaz de redimir o conflito entre cultura literária, cultura religiosa e cultura científica. Os cientistas norte-americanos já deviam saber que nunca foram grandes pensadores e, muito menos, pensadores profundos: o seu universo mental está mais próximo das fantasias de Hollywood do que do espírito da Filosofia Ocidental. Fazer de Darwin um pensador profundo é simplesmente ridículo: Darwin não tem espessura teórica para poder ser encarado como um intelectual orgânico (Gramsci) ou, como diria Sartre, um intelectual universal. As capelinhas exclusivistas denunciadas justamente por Brockman, onde habitam os intelectuais específicos de Foucault, guardam um lugar discreto para Darwin, mas não o lugar com aspiração ao universal, aquele que só pertence a Marx.


J Francisco Saraiva de Sousa 

1 comentário:

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

O mundo está tão palerma - só há burrinhos. :(