domingo, 4 de março de 2012

Culturas de Vergonha, Culturas de Culpa

Shame, Vergonha
«Nos estudos antropológicos de culturas diferentes, é importante a distinção entre as que profundamente enfatizam a vergonha (shame) ou a culpa (guilt). Uma sociedade que incute padrões absolutos de moralidade e se orienta no sentido do desenvolvimento de uma consciência por parte do homem é uma cultura de culpa por definição, no entanto, alguém pode numa sociedade dessas, como a dos Estados Unidos, padecer ainda mais na vergonha quando se auto-acusa de grosserias que nada têm de pecados. Poderá mostrar-se extremamente mortificado por não estar vestido de acordo com a ocasião ou devido a algum lapso de língua. Numa cultura em que a vergonha constitua uma sanção importante, as pessoas mortificam-se por actos que esperamos nelas despertem culpa. Tal mortificação poderá ser muito intensa, não podendo ser aliviada, como a culpa, através da confissão e expiação. Quem peca pode conseguir alívio desabafando. O expediente da confissão é usado na nossa terapia secular e por muitos grupos religiosos, que outrossim pouco têm em comum. Sabemos que traz alívio. Onde a vergonha constitui sanção importante, não se experimenta alívio quando se divulga uma transgressão, ainda que seja a um confessor. Contanto que a sua má conduta não "transpire para o mundo", não precisará inquietar-se, afigurando-se-lhe a confissão tão somente como um modo de criar problemas. As culturas de vergonha (shame-cultures), portanto, não prescrevem confissões ainda que aos deuses. Dispõem mais de cerimónias para boa sorte do que para expiação. /As verdadeiras culturas de vergonha enfatizam as sanções externas para a boa conduta, opondo-se às verdadeiras culturas de culpa, que interiorizam a convicção do pecado. A vergonha é uma reacção à crítica dos demais. Alguém pode envergonhar-se ou quando é ridicularizado abertamente ou quando cria para si mesmo a fantasia de que o tenha sido. Em qualquer dos casos trata-se de uma sanção poderosa. Requer, entretanto, uma plateia, ou pelo menos que se fantasie uma. A culpa, não. Num país onde a honra significa viver de acordo com a imagem que se tem de si próprio, pode-se padecer de culpa, ainda que todos ignorem a transgressão, sendo aliviados os seus sentimentos a tal respeito através da confissão do seu pecado. /Os antigos puritanos que se estabeleceram nos Estados Unidos procuraram basear toda a sua moralidade na culpa e bem sabem os psiquiatras os problemas que os americanos modernos têm com as suas consciências. A vergonha, no entanto, é uma carga cada vez maior nos Estados Unidos, sendo a culpa não tão extremamente sentida quanto em gerações anteriores. É isto aqui interpretado como um relaxamento dos costumes. Há muita verdade nisso, sem dúvida porque não esperamos que a vergonha perfaça o trabalho pesado da moralidade. Não atrelamos a intensa mortificação pessoal que acompanha a vergonha ao nosso sistema fundamental de moralidade. /Os japoneses fazem-no. Um fracasso em seguir os seus visíveis marcos de boa conduta, um fracasso em avaliar obrigações ou prever contingências constitui vergonha (haji). A vergonha, dizem eles, é a raiz da virtude. Quem é sensível a ela cumprirá todas as regras de boa conduta. "Um homem que conhece a vergonha" é por vezes traduzido por "virtuoso" ou "honrado". A vergonha ocupa o mesmo lugar de autoridade na ética japonesa que uma "consciência limpa", "estar bem com Deus" e a abstenção de pecado têm na ética ocidental. Muito lógico, portanto, que não se vá ser punido depois da morte. Os japoneses - à excepção dos sacerdotes conhecedores dos sutras indianos - estão muito pouco familiarizados com a ideia de reencarnação dependente do mérito de cada um na vida presente, e - à excepção de alguns convertidos cristãos bem instruídos - não aceitam recompensa ou punição após a morte e a ideia de céu ou inferno. /A primazia da vergonha na vida japonesa significa, como em qualquer tribo ou país onde a vergonha seja profundamente sentida, que cada um aguarda o julgamento dos seus actos por parte do público.» (Ruth Benedict)

A cultura portuguesa - no sentido antropológico do termo - é desconcertante: as elites portuguesas perderam definitivamente a vergonha e, deste modo, tornaram-se imunes às pressões externas do público, mesmo quando alguns dos seus membros são apanhados com as "mãos na massa". A cultura portuguesa não é, portanto, uma cultura de vergonha, mas também já não é uma cultura de culpa: os portugueses não só perderam a vergonha como também deixaram de interiorizar a convicção do pecado, agindo como se fossem zombies malévolos, completamente destituídos de consciência moral e absolutamente avessos à ajuda psiquiátrica. Um poderoso elemento inumano - a inveja e todo o seu campo de configuração - atravessa toda a cultura portuguesa, fazendo dela uma cultura patológica: a inveja converte-a numa cultura da maldade. Nada melhor do que recorrer a Primo Levi para apreender o núcleo de maldade que domina a cultura portuguesa: «É homem quem mata, é homem quem faz ou sofre injustiças; não é homem quem, perdida qualquer vergonha, divide a cama com um cadáver. Quem esperou que o seu vizinho acabasse de morrer para lhe retirar um quarto de pão está, embora sem qualquer culpa própria, mais afastado do modelo do homem pensante do que o pigmeu mais selvagem e o sádico mais atroz». Quando foi elaborada a distinção entre culturas de vergonha e culturas de culpa, para distinguir entre os padrões de cultura japoneses e americanos, a sociedade americana começava a abandonar a configuração cultural de culpa: sob o olhar desatento dos antropólogos e filósofos, surgia uma outra configuração cultural no ocidente, onde a vergonha e a culpa são meras relíquias do passado distante e "desconhecido". Ruth Benedict elaborou diversos esquemas dicotómicos de classificação das culturas: além desta distinção entre culturas de vergonha (shame-cultures) e culturas de culpa (guilt-cultures), ela já tinha proposto a distinção entre cultura apolínea e cultura fáustica, para contrastar duas configurações culturais diferentes na civilização ocidental, a partir das ideias do destino de Oswald Spengler, e a distinção entre culturas dionisíacas e culturas apolíneas, desta vez com base no Nascimento da Tragédia de Nietzsche. Porém, estes esquemas de classificação das culturas nunca foram articulados entre si, de modo a obter uma tipologia mais complexa e dinâmica das configurações culturais. Desgraçadamente, a Filosofia ainda não conseguiu elaborar uma teoria geral da cultura, capaz de integrar a teoria da formação cultural e das configurações culturais, numa perspectiva histórica e estrutural. Há muitas teorias filosóficas da cultura, mas nenhuma delas é suficientemente poderosa para explicar a própria evolução da cultura. Benedict utiliza a distinção entre culturas dionisíacas e culturas apolíneas para captar a diferença fundamental entre os Pueblos (apolíneos) e as outras culturas da América do Norte, isto é, dois modos diametralmente opostos de alcançar os valores da existência: «O Dionisíaco busca realizá-los por meio do "aniquilamento das restrições e dos limites usuais da existência"; procura conseguir, nos seus momentos mais elevados, fugir às barreiras que os cinco sentidos lhe impõem, irromper por esse meio numa outra ordem da experiência. O desejo do Dionisíaco, em experiência pessoal ou em ritual, é forçar o caminho para um certo estado psicológico, realizar o que está para além. Aquilo que mais se aproxima das emoções que busca é a embriaguez; e os clarões do frenesi, eis o que para ele vale. Com Blake, crê que "o caminho do excesso conduz ao palácio da sabedoria". O Apolíneo não confia em nada disso, e muitas vezes pouca ideia forma da natureza de tais experiências. Descobre meios de as proscrever da sua vida consciente. Conhece apenas uma lei, medida, na acepção helénica. Segue pelo meio da estrada, conserva-se dentro do mapa conhecido, não o preocupam estados psicológicos disruptivos. Na bela frase de Nietzsche, mesmo na exaltação da dança "conserva-se o que é, e mantém a sua personalidade de cidadão"». Nietzsche contribuiu muito para minar a admiração pelo Apolíneo a favor do Dionisíaco; no entanto, hoje, graças aos contributos importantes das neurociências, podemos ver a nova luz o Dionisíaco: uma cultura completamente impregnada pelo Dionisíaco não tem futuro. Ao colocar-se do lado de Dionísio, o deus Baco dos romanos, a Filosofia tornou-se um empreendimento paradoxal que rompe com a sua própria origem. A maior parte das pessoas que elogiam Dionísio em detrimento de Apolo não compreendeu verdadeiramente a malha histórica do Nascimento da Tragédia de Nietzsche, até porque carecem de erudição histórica e filosófica. De certo modo, quando distingue duas configurações culturais na civilização ocidental, a clássica (apolínea) e a moderna (fáustica), Benedict parece engrossar a fileira daqueles que nada compreenderam da obra de Nietzsche. É certo que esta última distinção se baseia nas duas ideias do destino de Spengler, mas este filósofo da História estava demasiado próximo de Nietzsche: «O homem Apolíneo concebia a sua alma como "um cosmos ordenado num grupo de partes excelsas". No seu universo não havia lugar para o querer, e o conflito era um mal a que filosoficamente não ligava grande importância. A ideia de um aperfeiçoamento da personalidade de fora para dentro era-lhe estranha, e considerava a vida sempre sujeita à sombra da catástrofe que do exterior a ameaçava brutalmente. Os seus trágicos desenlaces eram destruições irresponsáveis do agradável panorama da existência normal. O mesmo acontecimento podia caber em sorte a um ou outro indivíduo, sob a mesma forma e com os mesmos resultados. /Ao contrário, a sua representação Fáustica é como de uma força que infindavelmente combate obstáculos. A sua versão do curso da vida individual é a de um desenvolvimento interno, e as catástrofes da existência são a culminação inevitável das suas volições selectivas e das suas experiências. O conflito é a essência da existência. Sem ele a vida individual não tem significado e só os valores mais superficiais da existência se podem atingir. O homem Fáustico anseia pelo infinito, e a sua arte tenta aproximar-se dele. As interpretações Fáustica e Apolínea são interpretações opostas da existência, e os valores que surgem numa são alheios e insignificantes para a outra». Ruth Benedict faz parte da Escola Cultura e Personalidade, na sua fase pré-freudiana: ela vê a cultura como psicologia individual projectada em grande tela. A crítica da sua concepção da cultura implica uma longa viagem pelos domínios da socialização em cada uma das culturas que estudou. Como é evidente, essa crítica não pode ser realizada neste texto, cujo objectivo é chamar a atenção para a distinção entre culturas de vergonha e culturas de culpa. A "personalidade" forma-se de fora para dentro ou de dentro para fora? Ruth Benedict tem uma teoria da formação da personalidade que aplica às diversas culturas - diferentes umas das outras - que analisa, mas, quando tenta classificá-las, em função dos seus esquemas dicotómicos da cultura, não se apercebe de que põe em cheque a própria teoria geral que utilizou. Nesta incongruência cognitiva, o que está em jogo é o seu relativismo cultural, não tanto na sua função prática de discurso da tolerância, mas sobretudo na sua função teórica de princípio do "pensar social". Com efeito, para comparar as culturas umas com as outras, captar a peculiaridade de cada uma delas e elaborar uma classificação das suas configurações gerais, é preciso estar na posse de uma teoria geral da cultura, a qual não pode cair sob o domínio do princípio da relatividade cultural. Ora, quando se relativiza a teoria geral da cultura, as culturas em análise tornam-se incomensuráveis. Deste modo sucintamente abstracto, coloquei o relativismo cultural contra si mesmo, dilacerei-o por dentro, fazendo o seu próprio jogo. Falta agora colocar a questão crucial: a cultura fáustica do ocidente é - foi! - uma cultura de culpa? O que está aqui em jogo não é a cultura de culpa, mas sim a equação "cultura fáustica = cultura de culpa". Resolver esta questão equivale a elaborar uma nova teoria da cultura, assente numa nova ontologia, diferente da de Ruth Benedict, sem no entanto abdicar do seu contributo precioso. Termino com uma citação de Primo Levi, onde reconheço implicitamente o conceito fundamental da minha ontologia do ser-sem-abrigo: «Imagine-se agora um homem ao qual, juntamente com as pessoas amadas, tiram a casa, os hábitos, a roupa, enfim, tudo, literalmente tudo quanto possui: será um homem vazio, reduzido ao sofrimento e à carência, esquecido da dignidade e bom senso, pois acontece facilmente, a quem tudo perdeu, perder-se a si próprio; reduzido a tal ponto que outros poderão sem problemas de consciência decidir da sua vida ou da sua morte para além de qualquer sentido de afinidade humana; no caso mais optimista, na base de uma mera avaliação de utilidade. Compreender-se-á então o duplo significado da expressão "Campo de extermínio", e será claro que o tentemos exprimir com esta frase: jazer no fundo». 

J Francisco Saraiva de Sousa 

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