sexta-feira, 16 de março de 2012

Sobre os mortos que nos visitam

Porto: Escadas do Barredo
«Um morto vem visitar-te. Do coração corre-lhe o sangue que ele próprio verteu, e no sobrolho negro aninha-se um instante indizível. Encontro lúgubre. Tu - uma lua de púrpura, quando o outro aparece na sombra verde da oliveira. Segue-o a noite eterna». (Georg Trakl)

A alma errante de Georg Trakl já me visitou, pedindo-me sete rosas brancas que depositei no seu túmulo em Innsbruck. E nunca mais me abandonou, tendo-se aninhado no meu lar, junto do meu feiticeiro e do meu séquito de onze almas protectoras. Um vidente do Centro Espirita do Porto aproximou-se de mim para me dizer que andava bem acompanhado por vinte e uma almas. Sorri garantindo-lhe que havia mais uma alma, talvez a mais querida das minhas almas defuntas. A TVI tem o seu programa sobre a "vida depois da morte", frequentado por uma plateia de pessoas em busca de contacto com os seus mortos queridos. Vivemos num mundo despojado de sinais de transcendência e, quando as pessoas os procuram, fazem-no de um modo extremamente mesquinho e egoísta, mais para se livrarem dos remorsos do que por reverência pelo mundo transcendente da alma. As pessoas umbilicais não sabem que para verem os mortos que nos visitam não precisam de ir à TVI, bastando-lhes mergulhar numa multidão urbana e distinguir entre os vivos e os mortos. Pelo menos, este é um exercício que não exige treino nem mediadores: os mortos gostam de passear entre os vivos e, por isso, nada melhor do que os procurar lá onde os vivos se aglomeram. Ao contrário do que pensam as pessoas mesquinhas, esmagadas pelos remorsos, os cemitérios são despovoados: as almas dos defuntos não gostam de habitar os cemitérios, fechadas dentro dos caixões. Elas estão onde há pessoas vivas. Na cidade do Porto, podemos ver muitos mortos a circular entre os vivos nas Ruas de Santa Catarina e Sá da Bandeira ou mesmo no metro nas suas horas de ponta. E nem todos os mortos que visitam o Porto são naturais desta bela cidade. Nas artérias de maior movimento, encontramos muitos mortos provenientes de outras zonas do país e do estrangeiro: o cosmopolitismo portuense também é um cosmopolitismo de almas. As almas do outro mundo não resistem aos encantos do Porto: elas habitam o Porto, tal como os vivos, de modo perdidamente apaixonado. Abençoado por Deus desde tempos imemoriais, provavelmente desde o fabuloso começo do mundo, o Porto é um dos maiores pólos mundiais de atracção da transcendência e de comércio entre os vivos e os mortos. A Sida leva à morte um artista portuense, algures num passado não muito distante, mas meses depois do seu enterro a sua colega D. cruza-se com ele perto da sede originária do Banco Borges & Irmão, no cruzamento entre as Ruas de Sá da Bandeira e de 31 de Janeiro, sob o olhar atento da Estação de São Bento. Pensando que estava a ter uma alucinação visual, sinal evidente da "loucura" que a família lhe atribui, evita olhá-lo de frente e continua o seu caminho. Ele intercepta-a novamente e sorri-lhe, passando para o outro lado da rua, e, quando ela tenta conversar com ele, a imagem-holográfica do defunto já está no cimo da Rua de 31 de Janeiro: o morto aproximou-se dela e sorriu-lhe, mas não lhe falou. Esta aparição deixou-a de rastos, como se fosse o anúncio da proximidade da sua própria loucura. Calou-se e não contou nada a ninguém. Mas, mais tarde, já num outro dia, D. cruza-se com uma amiga de infância de Vila Real, desta vez na Rua de Santa Catarina: cumprimenta-a e tenta pôr a conversa em dia, mas o holograma sorri sem lhe responder, desaparecendo rapidamente na multidão. À noite, D. contou à mãe e à irmã que esteve com a sua amiga de infância que não via há muitos anos. A troca de olhares entre a irmã e a mãe gelou-lhe o sangue. E a mãe disse-lhe: "Então, filha, não sabes que ela morreu num acidente trágico?" Quando ouviu estas palavras da mãe, D. começou a chorar, dizendo que estava a ficar louca, porque já era a segunda vez que via um morto. A mãe confortou-a quando lhe disse que ver mortos não constituía sinal de loucura: "Os mortos andam entre os vivos e tu, minha filha, tens o dom de os ver". Quando me relatou estes dois encontros lúgubres com mortos, D. referiu um outro episódio: um estranho telefonema nocturno que lhe tirou o sono, pelo facto de pressentir a morte próxima da sua prima, que, de facto, morreu tragicamente nessa madrugada no Hospital de São João. Enquanto conversávamos, a maior bruxa do Porto, sim aquela que cheira mal, mais conhecida como a "língua-esfregona" do Porto, aproximou-se de nós, toda sorridente, e convida-nos a ir com ela ao Cemitério de Agramonte, onde a mãe está sepultada, em busca de "sinais dos mortos". Olhei para D., receando uma reacção de desaprovação, mas, em vez disso, ela prontificou-se a ir ao cemitério à noite. E, no cemitério, junto das suas grades, as duas "malucas" surpreenderam-me: uma - a bruxa, claro! - chamava pelos gatos, na esperança de que um deles fosse a mãe; a outra empoleirou-se no muro e divertia-se a comentar os túmulos e a contar as velas e os caixões de cada um dos jazigos familiares. Uma brisa de ar moveu um dos pinheiros e a bruxa decifrou no movimento insignificante dos galhos uma mensagem do outro mundo. D. comentava baixinho comigo que ela estava "mesmo louca", quando ela me interpela mencionando a cor dos olhos de um gato negro: "A minha mãe está neste gato, porque os olhos são da mesma cor". Afastei-me ligeiramente dela, para não alimentar a sua paranóia, mas qual a minha surpresa quando a ouço a chamar "cabra" ao gato. A força do remorso de ter deixado a mãe morrer sozinha não era suficientemente poderosa para apagar o ódio que sempre nutriu por ela: o gato-mãe continuava a ser uma "cabra". D. que também tem as suas discussões com a mãe, não compreendia como a "velha bruxa" podia odiar tanto a mãe já morta e sepultada, a ponto de ter deitado no lixo quase todas as suas lembranças. Afinal, havia no mundo uma criatura mais "maluca" do que ela: as suas idas nocturnas ao cemitério ainda eram alimentadas por esse velho ódio de estimação que a levou a abandonar precocemente a casa materna. Em privado, já depois do regresso atribulado a casa, repleto de palavrões, contei-lhe que a bruxa sofre de uma doença bipolar e que ela só vai ao cemitério quando entra em depressão profunda. Mas, enquanto lhe explicava as ambiguidades anómalas do comportamento da bruxa, Georg Trakl segredou-me aos ouvidos uma ida às escadas do Barredo. Levei D. até às escadas do Barredo, onde em determinado sítio a deixei sozinha, depois de lhe ter tirado os aparelhos auditivos, para ela temer as sombras dos eucaliptos e das árvores. Cobertos pelas sombras nocturnas dos muros, eu e Trakl riamo-nos com os gritos de D. que acenderam algumas luzes. Ainda pensei chamar um velho vampiro do Porto para lhe morder o pescoço, mas a sua aflição comoveu-me. Depois de lhe devolvermos a audição, arrancando-a ao mundo do silêncio absoluto, resolvemos levar D. até casa, onde a deixámos entregue aos seus pensamentos de cafeína e de haxixe. D. nunca mais voltou a ver mortos: ela prefere ver homens vivos, de preferência musculados e fortes mas sem usar tatuagens e piercings na língua e no pénis e, sobretudo, sem necessidade de tomar viagra ou dar uma injecção no pénis para obter erecções fortes, evitando uns - as "barbies masculinas" - e aproximando-se de outros, nesse eterno movimento de alienação que é a vida quotidiana

J Francisco Saraiva de Sousa