sexta-feira, 5 de dezembro de 2008

Carl Jung: Função Religiosa da Psique

Este post intitulado "Psicologia Analítica e Religião: Função religiosa da psique" é da autoria do meu amigo psicólogo de São Paulo/Brasil, André LF.
1.1. O Sagrado e o Numinoso. Antes de se analisar a relação entre a psicologia analítica e a religião e, especificamente, a função religiosa da psique, deve-se estabelecer algumas considerações acerca do sagrado e do numinoso
. Rudolf Otto (1985) afirma que temos o hábito de utilizar a palavra "sagrado", atribuindo-lhe um sentido figurado que difere substancialmente do seu sentido primitivo. Tal sentido figurado relaciona-se com um predicado de ordem ética, sinónimo de absoluto moral e de perfeitamente bom. Segundo Otto, o elemento moral não é encontrado nas línguas semíticas, grega e latina. Quando está presente, é apenas de modo circunstancial. Levando-se em conta que, em nossa linguagem, uma significação moral está sempre vinculada ao termo "sagrado", seria necessário, prossegue Otto, encontrar uma palavra que designasse com precisão o elemento presente no sagrado. Este elemento aparece de forma viva em todas as religiões. É a parte essencial destas, sem a qual estariam descaracterizadas. De acordo com Rudolf Otto, «convém encontrar um nome para este elemento tomado isoladamente. Esse nome fixará o carácter particular e permitirá, eventualmente, as formas inferiores ou as fases de seu desenvolvimento. Eu uso a palavra numinoso. Se lúmen pode servir para formar luminoso, numem pode formar o numinoso. Falo de uma categoria numinosa como uma categoria especial de interpretação e avaliação, um estado de alma que se manifesta quando essa categoria é aplicada, isto é, cada vez que um objecto é concebido como numinoso. Esta categoria é absolutamente sui generis, original e fundamental, ela não é um objecto de definição no sentido estrito da palavra, mas é um objecto de estudo. Não se pode tentar compreender o que ela é a não ser tentando chamar a atenção do ouvinte para ela e fazer-lhe encontrar em sua vida íntima o ponto onde ela surge e se torna então consciente». (1985, p.12).
Para Otto, aquilo que é numinoso não pode ter os seus significados esgotados em conceitos. Podemos apenas observar as tonalidades das reacções que o numinoso desperta, esforçando-nos por explicitar os meios de sua expressão simbólica. O numinoso, segundo Mircea Eliade, «singulariza-se como qualquer coisa de ganz andere, radical e totalmente diferente: não se assemelha a nada de humano ou cósmico; em relação ao ganz andere o homem tem o sentimento de sua profunda nulidade, o sentimento de "não ser mais do que uma criatura" - ou seja - segundo os termos com que Abraão se dirigiu ao Senhor - de não ser "senão cinza e pó"». (2001, p.16). Diante do numinoso irrompe em nós, o sentimento do mysterium tremendum, daquele mistério que faz tremer. Tal arrebatamento «pode se espalhar na alma como um calafrio. É a onda de quietude de um profundo recolhimento espiritual. Esse sentimento pode transformar-se também num estado de alma constantemente fluído, semelhante a uma ressonância que se prolonga por muito tempo, mas que termina por se apagar na alma que volta a seu estado profano. Pode também surgir bruscamente na alma como choques e convulsões. Pode conduzir a estranhas excitações, a alucinações, a transportes e a êxtases». (Otto, 1985, p.180).
Este "tremendo", é, portanto, um dos aspectos do numinoso. No Antigo Testamento, há muitos sinónimos que exprimem o frémito sagrado. Por exemplo, no Êxodo 23.27: "Enviarei o meu temor diante de ti, desconcertando a todo povo aonde entrares, e farei que todos os inimigos te virem as costas". Ou Jô 9.34: "Ele afastaria de mim a vara de Deus, para que eu não enlouquecesse com seu terror". Vê-se, então, que Rudolf Otto, em vez de se preocupar em estudar as ideias tradicionais sobre Deus e religião, detém-se na análise das modalidades da experiência religiosa, sobretudo no que ela comporta de irracional.
Diferentemente de Otto, Eliade (2001, p.17) propõe analisar o fenómeno do sagrado em toda a sua totalidade, e não apenas no que ele comporta de irracional. Segundo Eliade, «não é a relação entre os elementos não-racional e racional que nos interessa, mas sim o sagrado na sua totalidade». E a primeira definição que se pode dar ao sagrado é que ele se opõe ao profano. Eliade afirma ainda que o sagrado e o profano são duas modalidades de ser no mundo, duas situações existenciais assumidas pelo homem ao longo de sua história. Tais modos «não interessam unicamente à história das religiões ou à sociologia, não constituem apenas o objecto de estudos históricos, sociológicos, etnológicos. Em última instância, dependem das diferentes posições que o homem conquistou no Cosmos e, consequentemente, interessam não só ao filósofo, mas também a todo investigador desejoso de conhecer as dimensões possíveis da existência humana». (Eliade, 2001, p.20). Ele utiliza o termo hierofania, em seu sentido etimológico, isto é, que algo de sagrado se nos revela. A história das religiões é constituída por um número expressivo de hierofanias, pelas manifestações das realidades sagradas.
Em relação ao comportamento do homem moderno diante do sagrado, Eliade afirma: «O homem ocidental moderno experimenta um mal estar diante de inúmeras formas de manifestações do sagrado: é difícil para ele aceitar que, para certos seres humanos, o sagrado possa manifestar-se em pedras ou árvores, por exemplo. Mas, como não tardaremos a ver, não se trata de uma veneração da pedra como pedra, de um culto da árvore como árvore. A pedra sagrada, a árvore sagrada não são adoradas como pedra ou como árvore, mas justamente porque são hierofanias, porque “revelam” algo que já não é pedra, nem árvore, mas o sagrado, o ganz andere». (Ibid., 2001, p.18). Essa dessacralização é muito forte em nossa época. Em vez de contemplarmos os entes como espaços de manifestação do sagrado, de uma realidade que os ultrapassa, procuramos nos apropriar deles, extraindo-lhes somente aquilo que atende aos nossos interesses imediatistas. A perda da capacidade de contemplar o numinoso que se manifesta em tudo que existe, leva o homem contemporâneo a um desenraizamento que o distancia de tudo, tornando-o um estrangeiro em terra própria. A respeito desta atitude do homem contemporâneo, o funcionário da técnica, como dizia Heidegger, diante do sagrado, afirma Umberto Galimberti (2003, p.75) que vivemos: «Um hoje que é tempo de pobreza extrema porque, como diz Hölderlin, "não mais existem os deuses que fugiram, e ainda não existem os que devem vir". O lugar que o sagrado deixou vazio é hoje ocupado por palavras religiosas que, fechadas no cálculo dos valores, limitam-se a circunscrever o recinto do agir. Assim a essência do homem empobrece quando, à sombra de religiões cuja única preocupação parece ser a dimensão ética, procura dar sentido à dor, educar para o amor, preparar-se para a morte, esquecendo o apelo de Rilke: As dores são desconhecidas, o amor não se aprende, a injunção que nos chama a entrar na morte permanece obscura. Somente o canto sobre a terra consagra e celebra».
A meu ver, esta fuga dos deuses a que se refere Hölderlin, em grande parte pode ser atribuída à hegemonia de um tipo de paradigma científico cuja visão se atém apenas na descrição redutivista dos entes, deixando de lado tudo aquilo que não cabe na estreita terminologia deste modelo de ciência. A fim de nos protegermos dos perigos de uma visão redutivista, torna-se fundamental o resgate de um olhar que contemple a riqueza dos símbolos da humanidade, sobretudo que valorize o tesouro arquetípico que jaz no inconsciente coletivo do homem. Talvez, a partir desta mudança de visão, os "deuses" possam voltar de seu exílio e nos comunicar a beleza de sua mensagem.
1.2. Função Religiosa da Psique. Antes de se abordar a função religiosa da psique, deve-se entender a concepção de Jung sobre o temo religião. Este conceito é derivado, pelos Padres da Igreja, por exemplo, Santo Agostinho, de religare, isto é, unir novamente, neste caso, o homem a Deus. Além deste significado, Jung apresenta outra derivação do termo religião, o vocábulo latino religere. De acordo com Jung (1978, par.6): «religião é - como diz o vocábulo latino religere - uma acurada e conscienciosa observação daquilo que Rudolf Otto acertadamente chamou de "numinoso", isto é, uma existência ou um efeito dinâmico não causado por um acto arbitrário. Pelo contrário, o efeito se apodera e domina o sujeito, mais sua vítima do que seu criador. Qualquer que seja a sua causa, o numinoso constitui uma condição do sujeito, e é independente de sua vontade».
Como se poder notar por meio desta definição, Jung não se refere a uma determinada profissão de fé religiosa. A sua preocupação é com a experiência religiosa originária do homo religiosus, que ainda não foi maculada por visões estreitas disseminadas por certas instituições religiosas. Segundo Jung (1978, par.10), «os conteúdos da experiência (religiosa) foram sacralizados e, via de regra, enrijeceram dentro de uma construção mental inflexível e, frequentemente complexa». Isto não significa, prossegue ele, que se trata de uma petrificação sem vida. Ao contrário, ela pode significar um tipo de experiência religiosa para muitas pessoas.
Em seus estudos dos arquétipos do inconsciente coletivo, Jung chegou à conclusão de que o homem possui uma função religiosa natural. A esse respeito é interessante observar o relato de Jung sobre místico suíço Nicolau van de Flüe ("Bruder Klaus"). O irmão Nicolau, conta-nos Jung (2002), teve uma visão da Trindade. O efeito de tal visão foi tão grande, a ponto de ele mandar pintá-la na parede de sua cela. A visão de Bruder Klaus foi representada numa pintura da época e está preservada na Igreja paroquial de Sachseln: "é uma mandala dividida em seis partes, cujo centro é o semblante coroado de Deus" (Jung, 2002, par.12). Em seu êxtase, a visão que aparecera a Bruder Klaus era tão terrível que o seu semblante se desfigurou, de tal forma que as pessoas se assustavam quando o viam, passando a temê-lo. Podemos, então, pensar naquele mysterium tremendum, de que fala Otto, cuja força pode nos arrebatar, deixando-nos aturdidos.
Há vários registros desta experiência religiosa originária na Bíblia, nas histórias dos profetas. Como exemplo do vigor desta experiência, pode-se citar a conversão de Paulo. Durante a viagem de Saulo a Damasco, «[...] ele se viu repentinamente cercado por uma luz que vinha do céu. Caiu por terra e ouviu uma voz que lhe dizia: "Saulo, Saulo, por que você me persegue? Saulo perguntou: Quem és tu, Senhor? A voz respondeu: Eu sou Jesus, a quem você está perseguindo. Agora levante-se, entre na cidade, e aí dirão o que você deve fazer. Os homens que acompanhavam Saulo ficaram cheios de espanto, porque ouviam a voz, mas não viam ninguém. Saulo se levantou do chão e abriu os olhos, mas não conseguia ver nada. Então o pegaram pela mão e o levaram para Damasco. E Saulo ficou três dias sem poder ver, e não comeu nem bebeu nada"». (At. 9, 3-9).
A alma (psique), na concepção junguiana, tinha uma função religiosa. Sobre este aspecto da psique, Jung afirma: «Não fui eu que atribuí uma função religiosa à alma; simplesmente produzi os fatos que provam que a alma é naturaliter religiosa (naturalmente religiosa), ou seja, possui uma função religiosa. Esta função, porém, não foi inventada por mim, nem a introduzi na alma graças a um artifício de interpretação. Ela se produz por si mesma sem ser impulsionada a isso por qualquer opinião ou sugestão que seja». (Jung, 1970, par.14).
Muitos teólogos nunca conseguiram compreender as concepções de Jung acerca da função religiosa da psique. Alguns o acusavam de "deificar a alma". A esta acusação, ele respondia: «Não fui eu, mas o próprio Deus quem a deificou!» (ibid., par.14). Neste mesmo parágrafo, ele afirma: «quando demonstro que a alma possui uma função religiosa natural, e quando reafirmo que a tarefa mais nobre de toda a educação (do adulto) é a de transpor para a consciência o arquétipo de Deus, suas emanações e efeitos, são justamente os teólogos que me atacam e me acusam de psicologismo». Jung assevera que, se os valores supremos não estivessem depositados na alma, como mostra a experiência, a psicologia não o interessaria porque a alma não seria mais do que "miserável vapor".
Fordham afirma que o objectivo final da religião é a tentativa de expressar na consciência aquilo que vem do inconsciente coletivo. A principal função da religião, para o referido autor, é a união do homem exterior com o homem interior. Ele observa também que as diferentes religiões tentaram, ao longo da história, abarcar todas as demandas espirituais dos indivíduos, o que acabou por cristalizar a experiência religiosa primordial, transformada em dogmas e ritos muitas vezes sem sentido para o praticante.
Jung se preocupava com os riscos que a formalização estéril da experiência religiosa poderia produzir. Segundo ele (1970, par.12): «Pode acontecer que um cristão, mesmo acreditando em todas as figuras sagradas, permaneça indiferenciado e imutável no mais íntimo de sua alma, porque seu Deus encontra-se completamente fora e não é reencontrado em sua alma. Seus motivos e interesses decisivos e determinantes assim como seus impulsos não provêm de forma alguma da esfera do cristianismo, mas de uma alma inconsciente e indiferenciada que é, como sempre, pagã e arcaica. A civilização cristã mostrou-se assustadoramente vazia: nada mais do que um verniz externo; o homem interior permaneceu intocado, alheio à transformação. O estado de sua alma não corresponde mais à crença que ele professa. O desenvolvimento do Cristo em sua alma não acompanhou a evolução exterior. Pouquíssimos seres viveram a imagem divina na sua dimensão mais intima de suas almas».
Hillman (2004) também aborda a função religiosa da psique. Segundo ele, a função religiosa da psique aparece sob a forma de símbolos espontâneos que têm representações similares na religião, tais como a montanha, cruz, o jardim, o vento, o deserto e o bosque de árvores sagradas - imagens frequentes nos sonhos. A função religiosa, na concepção deste autor, também pode aparecer «através de motivos expressamente religiosos: a importância do amor, a luta contra o mal, o extermínio do dragão, a conversão ou cura milagres. Ou ainda sob a forma de insinuações ou percepções referentes à imortalidade, eternidade, metempsicose e questões sobre a morte, o após-vida, o julgamento da alma, o que é certo para ela, onde ela se encontra e para onde irá depois». (Hilmann, 2004, p.66).
Tais símbolos, apontados por Hillman, muitas vezes presentes na Bíblia, poderiam, utilizando-se a terminologia junguiana, ser considerados arquetípicos, isto é, imagens primordiais presentes no inconsciente colectivo. De acordo com Jung (2002, par. 99): «Há tantos arquétipos quantas situações típicas na vida. Intermináveis repetições imprimiram essas experiências na constituição psíquica, não sob a forma de imagens preenchidas de um conteúdo, mas precipuamente apenas formas sem conteúdos, representando a mera possibilidade de um determinado tipo de percepção e acção. Quando algo ocorre na vida que corresponde a um arquétipo, este é activado e surge uma compulsão que se impõe a modo de uma reacção instintiva contra toda a razão e vontade, ou produz um conflito de dimensões patológicas, isto é, uma neurose».
Observando-se estas afirmações de Jung, pode-se pensar que os símbolos bíblicos podem ser considerados arquetípicos na medida em que eles representam a "mera possibilidade de um determinado tipo de percepção e acção". A respeito dos símbolos religiosos, Jung (2000) afirma que a função deles é dar sentido à vida humana. Ele nos alertava para os riscos que a consciência ocidental corria ao desprezar a riqueza dos símbolos que compõem os mitos. Dessa forma, homem moderno vive a época da perda do numinoso. Este triste facto implica a perda de nossa razão de ser, do sentido de nossa vida. De acordo com Jung (2000b, par 583): «Tiramos de todas as coisas seu mistério e sua numinosidade e nada mais é sagrado. Mas como a energia nunca desaparece, também a energia emocional que se manifesta nos fenómenos numinosos não deixa de existir quando ela desaparece do mundo da consciência. Como já afirmei, ela reaparece em manifestações inconscientes, em factos simbólicos que compensam certos distúrbios da psique consciente. Nossa psique está profundamente conturbada pela perda dos valores morais e espirituais. Sofre de desorientação, confusão, medo, porque perdeu suas idées forces dominantes e que até agora mantiveram em ordem nossa vida. Nossa consciência não é mais capaz de integrar o fluxo dos epifenómenos instintivos que sustentam nossa actividade psíquica».
Esta incapacidade de integração não é possível, prossegue Jung, porque a própria consciência se privou dos órgãos pelos quais poderiam ser integradas as contribuições do inconsciente e dos instintos. Tais órgãos eram os símbolos numinosos, considerados sagrados pelo consenso comum. Como afirma Jung, um conceito como "matéria física", sem a sua conotação numinosa de "Grande Mãe", já não expressa o forte sentido emocional da "Mãe Terra". Entre os responsáveis por esta perda da numinosidade, Jung (2000b, par.585) menciona a visão cientificista de nossa época: «Por causa da mentalidade científica, nosso mundo se desumanizou. O homem está isolado do cosmos. Já não está envolvido na natureza e perdeu sua participação emocional nos acontecimentos naturais que até então tinham um sentido simbólico para ele. O trovão já não é a voz de Deus nem o raio seu projéctil vingador. Nenhum rio contém qualquer espírito, nenhuma árvore significa uma vida humana, nenhuma cobra incorpora a sabedoria e nenhuma montanha é ainda habitada por um grande demónio. Também as coisas já não falam connosco, nem nós com elas, como as pedras, fontes, plantas e animais. Já não temos uma alma da selva que nos identifica com algum animal selvagem. Nossa comunicação direta com a natureza desapareceu no inconsciente, junto com a fantástica energia emocional a ela ligada».
Ele afirmava que fenómenos como as representações simbólicas são muito irritantes para um intelecto científico, pois não se deixavam formular de maneira satisfatória ao modo lógico de pensar. Além desta visão cientificista que obstaculiza nosso acesso ao numinoso, os próprios representantes do cristianismo, contribuem, através de interpretações redutoras da riqueza do simbolismo religioso, para que tal acesso seja prejudicado. É muito frequente a ênfase no aspecto exterior das celebrações e liturgias religiosas, em detrimento do acesso aos conteúdos numinosos presentes na nossa psique. A conseqüência desta visão religiosa deturpada pelo formalismo estéril pode ser observada na perda da fé religiosa. Segundo Jung (2000b, par.565-566): «[...] em nossa época há muitas pessoas que perderam sua fé em uma ou outra das religiões do mundo. Já não reservam nenhum lugar para ela. Enquanto a vida flui harmoniosamente sem ela, a perda não é sentida. Sobrevindo, porém o sofrimento, a situação muda às vezes drasticamente. A pessoa procura então subterfúgios e começa a pensar sobre o sentido da vida e sobre as experiências acabrunhadoras que a acompanham. Desde tempos imemoriais as pessoas criaram concepções de um ou mais seres superiores e de uma vida no além. Só a época moderna acredita poder viver sem isso. Pelo fato de não se poder ver, com a ajuda do telescópio e do radar, o céu com o trono de deus e pelo fato de não se haver provado (com certeza) que os entes queridos ainda vagueiam por aí com um corpo mais ou menos visível, supõe-se que essas concepções não sejam verdadeiras. Enquanto concepções não são, inclusive, “verdadeiras” o bastante, pois acompanharam a vida humana desde os tempos pré-históricos e ainda agora estão prontas a irromper na consciência na primeira oportunidade. É lamentável a perda dessas convicções».
Mas a perda do acesso ao numinoso, assevera Jung, é compensada pelos símbolos de nossos sonhos e também pela função religiosa da psique. Por meio desta, o indivíduo poderá acessar os conteúdos sagrados em si, estabelecendo com o Si-mesmo uma verdadeira re-ligação (religare), sendo este contacto fundamental para uma existência mais rica e autêntica. Desta forma, apresenta-se ao indivíduo uma tarefa crucial para o seu processo de individuação: a de estabelecer uma relação com as imagens numinosas que existem dentro de seu inconsciente. Para tornar possível este contacto, é preciso atenuar a influência do estéril formalismo religioso que impede o acesso a tais imagens. (Procurou-se neste post estabelecer, de forma genérica, algumas considerações sobre o numinoso e o sagrado e sobre a função religiosa da psique.)
REFERÊNCIAS
BÍBLIA SAGRADA. Edição Pastoral. São Paulo: Paulus, 1990.
BÍBLIA DO PEREGRINO. Novo Testamento. 2. ed. São Paulo: Paulus, 2000.
ELIADE, Mircea. O sagrado e o profano. São Paulo: Martin Fontes, 2001.
GALIMBERTI, Umberto. Rastros do sagrado: o cristianismo e a dessacralização do sagrado. São Paulo: Paulus, 2003.
HILLMAN, James. Uma busca interior em psicologia e religião. 4.ed. São Paulo: Paulus, 2004.
JUNG, Carl Gustav. Psychologie et Alchimie. Paris: Éditions Buchet/ Chastel, 1970.
______. Psicologia e religião. O.C. XII/1. Petrópolis: Vozes, 1978.
______. A natureza da psique. O.C. VIII/2. 5.ed. Petrópolis: Vozes, 2000a.
______. A vida simbólica. O.C. XVIII/1. Petrópolis: Vozes, 2000b.
______. Os arquétipos do inconsciente coletivo. O.C. IX/1. 2. ed. Petrópolis: Vozes, 2002.
OTTO, Rudolph. O sagrado. São Paulo: Imprensa Metodista, 1985.
André LF

20 comentários:

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

André

Depois formato melhor o seu post. :)

André LF disse...

Ok, Francisco!
O que achou do texto?

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Gostei muito do seu texto e fiquei com vontade de ler atentamente Jung, cujo contributo para a filosofia da religião tem sido negligenciado pela filosofia, com excepção de um ou outro filósofo. Penso que captou muito bem as ideias/força de Jung e de um modo elegante e rigoroso, estabelecendo pontes com outros autores. Bom post!

Gostei da referência a Hölderlin e ao seu conceito de fuga dos deuses. Uma excelente articulação de bons autores!

Alterei os parágrafos para economizar o espaço. E destaquei alguns conceitos ou noções fundamentais.

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

A bibliografia pode servir como orientação para a sua aquisição no Natal.

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

André

Também vou editar um post de um amigo teólogo: é a atmosfera do Natal! É sobre a comunidade da esperança!

Seria interessante confrontar as perspectivas de Jung, Freud, Fromm e James sobre a filosofia da religião.

Deste modo, ganho tempo para pensar melhor os neuroestudos sobre Yoga e a meditação.

André LF disse...

Fico feliz que tenha gostado!
A sua sugestão de confrontar as perspectivas de Jung, Freud, Fromm e James sobre a filosofia da religião é excelente. Trata-se de um trabalho de fôlego :)

André LF disse...

Francisco, Jung é um pensador muito profundo cuja obra lamentavelmente não foi bem aproveitada pelos pós-junguianos. Eles não tiveram o brilhantismo do mestre :(
A propósito, redigi um texto sobre a história e a definição dos principais conceitos presentes na obra de Jung.
Posso lhe enviar o texto assim que eu o revisar.

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Ok, até é importante divulgar Jung, porque aqui em Portugal Jung não é muito estudado, suponho.

Estava a pensar aconselhar alguns livros a comprar nesta quadra natalícia, mas é uma ideia vulgar na blogosfera. Cada um de nós propunha um ou dois livros e, depois, fazia um post sobre leituras aconselhadas.

André LF disse...

A sua idéia é boa. Porém não sei como estão os recursos financeiros dos nossos amigos da blogosfera depois desta crise... Aqui a situação é muito grave.
Eu estava acostumado a importar livros franceses e norte americanos. Agora deixei de fazê-lo porque os preços deles estão na estratosfera :(
O Brasil é um país de poucos leitores. E aqueles que amam os livros- como é o meu caso- tem de enfrentar muitas dificuldades para conseguir tê-los.

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Sim, aqui também as coisas estão mal. Os livros estão caros, mas os estrangeiros são mais baratos. Se não fosse o Estado, dois ou três Bancos já tinham falido e deve haver um quarto a falir.

Estive a ver livros: muito lixo a ser publicado. Os ingleses já estão a reler Marx e os clássicos, mas em Portugal não há cultura ou investigação genuína: é tudo emprego e vida fácil e falsa.

Não há ninguém interessado na pesquisa, porque o que interessava era criar um grupo de investigação, independente das aulas: os alunos são "coisas" sem vocação e alienadas. Mas os governos portugueses são tendencialmente reduzidos e corruptos. Aqui já conhecemos os corruptos, um já foi preso.

Já tentei formar esse grupo mas ninguém quer trabalhar a sério: só pensam em consumir e apropriar-se das coisas já feitas ou conversa vazia, de improviso reduzido.

A nossa geração não tem futuro: até 2013 vai ser lançada uma arma nuclear com vasto poder destrutivo. Terrorismo, corrupção, abuso de poder, terra doente, capitalismo selvagem, regressão cognitiva e muita inveja e estupidez: tudo isso nos rouba a vida. :(

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Ah e os empresários portugueses são muito avessos à cultura genuína. Para eles, o que conta é a aparência gerida por labregos que fingem ser da elite. Nunca investiriam num tal projecto, a menos que tenham algum favor a pagar a alguém que tem cunha. Portugal é uma miséria cultural...

Tempos difíceis os nossos: o futuro evapora-se no abismo da noite nuclear.

André LF disse...

Você fez uma análise muito lúcida. Nossa época é muito obscura e pobre de valores.
A cultura é desvalorizada, os jovens estão deslumbrados com o consumo fácil e alienados, os figurões metabolicamente reduzidos nunca saem do poder...
O futuro da nossa geração é repleto de trevas. A maioria das pessoas com quem converso quer apenas se adaptar. Nunca questionam os alicerces sórdidos que sustentam a nossa sociedade. Adaptar-se a um mundo doente é uma atitude saudável?

André LF disse...

Cada vez mais, percebo que se torna hegemônico o diagnóstico de Nietzsche sobre a consciência de rebanho. Poucos são aqueles que submetem a uma crítica lúcida os valores de sua época e procuram fazer da própria existência uma obra de arte.

Fräulein Else disse...

Oi André,

obrigada por me ter ido visitar, já percebi q tem um ensaio seu publicado, mas estou cheia de trabalho q se prolongará até às tantas da madrugada (em Portugal são 00h40) por isso leio amanhã à tarde. :)

Eu quero o "Almas Mortas" do Gógol pelo Natal! :)

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Oi Else

Uma boa opção esse livro. Conheço bem e adoro Gógol e outros autores russos desde a minha puberdade! Há uma edição nova, portanto, outra tradução melhor que a da Europa-América.

Renato Martins disse...

Boas,

Ainda nao li o post e passei logo para os comentarios.

Gostava de dizer que concordo em absoluto quando se fala do que se fez com Jung e de quem usa o seu nome para comercios improprios.

os misticos pop trataram de usar o seu belo nome para justificar todo o tipo de pensamentos esotericos quando o pobre jung apenas os estudava seriamente. Há já muitos anos que leio Jung e venho prometendo um post sobe ele para repor precisamente esta verdade. Que ele nunca deixou de ser um psicologo e em alguns casos um filosofo; que nunca deixou de ser um estudioso, um cientista a tentar explicar certos fenomenos fora da esfera cientifica.

caro Francisco: se queres criar um grupo serio vamos a isso :-) antes que a bomba atomica caia em 2013 (nao sei onde foste buscar essa)

abraço

Manuel Rocha disse...

Este blog tem o mau hábito de não facilitar a vida a quem se ausente por uns dias: sofre para se actualizar !

;)

Fräulein Else disse...

Eu descobri a literatura russa já tarde! Na minha puberdade tinha amas-secas malditas: Sade, Lautrèamont, Rimbaud, Baudelaire, Miller, Poe... enfim...

Ah! E vi abaixo que vai falar de yôga - lerei atentamente! Sou praticante e na minha adolescência cheguei a estudar bastante sobre o assunto, inclusivé um pouquinho de sânscrito. :) praticava/pratico yôga tântrico, mais especificamente dakshinara shara tantrika nirshwara samkhia yoga. :)

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Oi amigos

Renato: essa informação foi dada em conferência por um responsável da Defesa dos USA e isto a propósito da segurança, do Paquistão e dos atentados na Índia.

Estou absorvido com a filosofia yoga. :)

Fräulein Else disse...

André,

Li agora o seu texto e gostei: está bastante claro e abre várias vias de reflexão pertinentes.
A música é o novo instrumento da função religiosa da psychê - ouço Chet Baker neste momento e cumpre perfeitamente a alienação e o êxtase.
Mas cumprirá o sentido da vida? Não. É preciso estar-se atento à chegada dos deuses novos (que Hölderlin também anuncia), porque a verdade só se encontra se ela vier até nós e se nós tivermos capacidade de a reconhecer, como num simples sussurro de uma pedra ou de uma árvore. :)