«Os mesmos homens que estabelecem as relações sociais em conformidade com a sua produtividade material produzem também os princípios, as ideias, as categorias, em conformidade com as suas relações sociais. Assim, estas ideias, estas categorias são tão pouco eternas quanto as relações sociais que exprimem. São produtos históricos e transitórios». (Karl Marx)
«As ideias da classe dominante são, em qualquer época, as ideias dominantes: a classe que constitui a força material dominante na sociedade, por exemplo, constitui ao mesmo tempo a sua força intelectual dominante. A classe que tem ao seu dispor os meios de produção materiais controla ao mesmo tempo os meios de produção mental, (isto é, teórica) de modo que, em consequência, as ideias daqueles a quem faltam os meios de produção mental ficam, em geral, submetidos a esse (controle ideológico). As ideias dominantes nada mais são do que a expressão ideal das relações materiais dominantes - as relações materiais dominantes tomadas como ideias (interiorizadas pelos oprimidos) - e, portanto, das relações (materiais) que fazem de uma classe a classe dominante: consequentemente, são as ideias da sua dominação». (Karl Marx)
Já publiquei aqui alguns textos sobre o racionalismo crítico de Karl Popper (1902-1994). Quando este professor primário ultra-conservador da Filosofia morreu, com a idade avançada de 92 anos, no decorrer dos quais disse muitas palermices, alguns jornais anunciaram a sua morte desejada com este título falso: "O Homem que matou Marx e Freud". O título não é congruente com o racionalismo crítico que diz ser contra a violência e a eliminação física dos adversários, mas expressa bem o desejo secreto dos conservadores e dos neoliberais que acolheram a filosofia de Popper. Eles viram nela, sobretudo no seu anti-historicismo, a expressão ideológica adequada para legitimar, garantir e salvaguardar os seus interesses de classe: o ódio contra a mudança que Popper atribui a Platão é o seu próprio ódio contra a revolução. A sua crítica do historicismo foi movida pelo seu próprio interesse em remover o suporte teórico que anima e vitaliza a praxis política revolucionária: o pensamento dialéctico de Hegel e de Marx, cuja arqueologia ele recua até Heráclito, Platão e Aristóteles, como se estes filósofos gregos tivessem sido historicistas. O anti-historicismo de Popper pode ser refutado com a ajuda dos seus próprios procedimentos críticos, mas não é essa a via que vamos seguir neste texto preparatório: o nosso objectivo é desenvolver um modelo crítico em miniatura da doutrina anti-historicista de Popper, tendo como pano de fundo o confronto entre a sua obra A Sociedade Aberta e os seus Inimigos e a obra A Destruição da Razão de Georg Lukács. Ambas as obras procuram explicar o advento do totalitarismo no século XX e perspectivam-no como resultado do triunfo do irracionalismo: Popper responsabiliza o pensamento dialéctico pela experiência totalitária que identifica malvadamente com a experiência soviética do "comunismo", desprezando o horror do nazismo e dos campos de concentração, enquanto Lukács explica correctamente a revolta contra a razão como resultado da imobilização da dialéctica. Hoje, graças à crise financeira de 2008, podemos facilmente compreender o alcance ideológico da mistificação neoliberal popperiana: ao escolher o marxismo como alvo preferencial da sua falsificação, Popper abre o caminho ao totalitarismo global: algo como a experiência desumana dos campos de concentração nazis está a suceder hoje à escala global. Bruno Bettelheim relatou essa experiência em primeira mão, mas Popper não o leu, porque pensou ter refutado não só o marxismo mas também a psicanálise: as falsificações de Popper pressupõem já aquilo que visam: a destruição do self. (O racionalismo crítico é masturbação mental, o que equivale a dizer que a sua morte e a morte do seu criador coincidem: o racionalismo crítico morreu em Agosto de 1994, como testemunham os discursos dos seus seguidores - W. H. Newton-Smith, Peter Lipton, E. G. Zahar, John Worral, Donald Gillies, David Miller, Peter Clark, Michael Redhead, Günter Wächtershäuser, John Watkins, Michael Smithurst, Kenneth Minogue, Graham Macdonald, Bryan Magee, Hubert Kiesewetter, Anthony O'Hear e, mais recentemente, George Soros - que abandonaram o "mestre" logo que este morreu. O elogio fúnebre foi realmente uma deserção colectiva: os desertores aproveitaram a ocasião solene para enterrar o cadáver do "mestre" e as suas teorias!)
Conseguiu Popper refutar o historicismo que atribui a Hegel e a Marx? Há uma diferença fundamental entre as dialécticas históricas de Hegel e de Marx: Hegel limita-se a contemplar a história concluída, olhando para o passado e os seus horizontes, isto é, para uma essência já revelada nos fenómenos que chegaram a ser, enquanto o saber de Marx procura transformar o mundo e ajudar a construir um mundo melhor. A dialéctica materialista não se fecha sobre a história contemplada, porque o seu saber não se refere simplesmente a um passado susceptível de ser conhecido, mas a um devir efectivo em formação: o conhecimento dialéctico é, ele próprio, um factor de mudança. Em termos popperianos, usados contra o seu anti-historicismo, o "activismo" de Marx - a tarefa política de transformar o mundo - não pode ser divorciado do seu "historicismo". O historicismo de Hegel não faz previsões históricas, como é evidente: «Já em Hegel o espírito absoluto da história tem os seus elementos nas massas, mas só encontra expressão adequada na filosofia. E o filósofo aparece apenas como instrumento através do qual o espírito absoluto, que faz a história, chega à consciência de si próprio depois de se ter completado o movimento histórico. A participação do filósofo na história limita-se assim à consciencialização subsequente: o filósofo chega post festum» (Karl Marx). De acordo com a própria definição artificial de Popper, Hegel não é um historicista no sentido de fazer previsões históricas: a filosofia da identidade que Popper lhe atribui, vendo nela a apologia do status quo - um argumento marxista! - é alvo da crítica materialista da dialéctica idealista de Hegel: a dialéctica materialista constitui-se como crítica do pensamento da identidade, e a sua concepção da história não é determinista, como supõe Popper. Reduzir o marxismo a uma filosofia determinista da história, atribuindo-lhe diversos determinismos - o sociológico, o economicista ou o tecnológico, sem decidir claramente por um deles, é esquecer que, num mundo feito pelo homem, a própria dialéctica é uma relação sujeito-objecto: Marx nunca negou a liberdade do homem e o seu papel fundamental no processo histórico, em nome de um determinismo económico absoluto capaz de conduzir ao "socialismo". Quando distingue entre a corrente fria e a corrente quente do marxismo, Ernst Bloch mais não faz do que chamar a atenção para a dialéctica do determinismo e da liberdade: a economia capitalista entregue à sua própria lógica imanente não irá conduzir de modo pacífico e automático à construção de um mundo melhor: cabe à subjectividade, que trabalha e que se perde na alienação, a tarefa de romper a objectivação, que a confronta de fora como se fosse uma potência natural estranha, de modo a «funcionar» como parteira de uma nova sociedade. Ao contrário do que diz Popper, cuja exposição pretensamente crítica da doutrina marxista omite por má-fé a teoria da alienação e do fetichismo da mercadoria, de modo a emprestar-lhe fraudulentamente as noções gregas de essência e de fenómeno, Marx não hipostasia a história, como se os homens fossem meros instrumentos dessa entidade metafísica que os usa para atingir os seus próprios objectivos. Contra essa visão metafísica da história veiculada pela "Escola Crítica", Marx afirmou que «a história não faz nada: "não possui riquezas imensas", "não trava batalhas". São os homens vivos, reais, que fazem tudo isso, possuem coisas e travam batalhas. Não é a "história" que utiliza os homens como um meio de alcançar - como se ela fosse também uma pessoa - os seus próprios fins. A história não é mais do que a actividade dos homens perseguindo os seus objectivos». (:::)
Ao definir o historicismo como a doutrina, segundo a qual a história é regida por leis específicas, históricas ou evolutivas, que o homem deve conhecer para prever o seu destino, Popper distancia-se claramente do espírito dessa imensa revolução espiritual do Ocidente que foi o historicismo, tal como foi analisado por Dilthey, Troeltsch, Croce e Meinecke. O historicismo tal como o define Popper não tem nada a ver com o historicismo real: Popper inventa os seus próprios alvos teóricos, gerando objectos teóricos artificiais que atribui depois aos chamados irracionalistas, sem os ter lido em primeira mão, para a seguir os criticar, isto é, os refutar. Popper refuta as suas própria criações teóricas artificiais, simplificando-as de modo grotesco, como se estivesse a refutar as teorias genuínas dos chamados filósofos oraculares, em especial dos filósofos que «previram» ou «profetizaram» o colapso do capitalismo. A profunda ignorância de Popper revela-se desde logo no modo como estabelece a génese do historicismo. Em vez de a procurar onde ela realmente se encontra, isto é, nos sistemas de Leibniz (Alemanha), Shaftesbury (Inglaterra) e Vico (Itália), que iniciaram a demolição da crença no carácter absoluto das verdades de razão, com o objectivo de conquistar um novo sentido do histórico, Popper recua-a no tempo até àquilo a que chama o seu modelo mais simples e antigo: a doutrina do povo eleito, segundo a qual a história deve ser interpretada à luz de uma visão teísta, reconhecendo Deus como o autor da peça representada no palco da história. Como pretende retomar mais tarde a moral cristã para dar um suporte não-racional ao seu racionalismo crítico, Popper aponta a sua artilharia defeituosa contra o judaísmo: Deus escolheu como instrumento do seu plano um - o povo judeu - entre todos os povos, confiando-lhe a missão de assumir a herança da Terra. E vemos a seguir Popper - sem escrúpulo intelectual - a derivar por mera substituição o fascismo ou o racismo e o marxismo da doutrina do povo eleito: o povo eleito é substituído no primeiro caso pela raça eleita - a raça ariana segundo Gobineau, e, no segundo caso, pelo proletariado. A semelhança entre esta perspectiva de Popper e a visão de Karl Löwith é mais aparente do que real: além de não responsabilizar os judeus pelo holocausto, como faz Popper, Löwith procura demonstrar que a filosofia da história - termo forjado por Voltaire - se inicia com a fé hebraica e cristã na salvação e termina com a secularização do seu esquema escatológico, mas sem cometer o erro popperiano de atribuir aos gregos uma filosofia da história. Encarar a filosofia da história como resultado da secularização da escatologia hebraica e cristã não inviabiliza a perspectiva de que o pensamento histórico propriamente dito começa apenas na época moderna, com o século XVIII, até porque não há qualquer afinidade entre uma teologia da história e uma filosofia da história consequente, como demonstrou Hannah Arendt: o repto marxista ao esquema de Löwith encontra-se na filosofia da esperança de Ernst Bloch. Os textos de Marx citados no parágrafo anterior desmentem a interpretação que Popper faz do seu historicismo como o empenhamento em descobrir o sentido da história, como se este fosse uma lei eterna pré-fabricada - um destino traçado de antemão - e imposta à acção dos homens que fazem efectivamente a "sua" história, e não a "história" da História. Com recurso ao seu célebre dualismo de factos e de decisões, mais tarde teorizado como dualismo de factos e de padrões (políticas), Popper afirma que, embora a história não tenha um sentido, podemos dar-lhe um sentido, interpretando-a do ponto de vista de nossa luta pela sociedade aberta, por um regime da razão, pela justiça, igualdade, liberdade e pelo controlo do crime internacional. Popper desvirtua a teoria marxista da história para se apropriar de modo abstracto - no vazio - dos seus "frutos": a luta permanente pela realização prudente dos sonhos de um mundo melhor. O herói filosófico de Popper, Sócrates, não é de todo estranho a Hegel e a Marx. A criação por si mesmo do saber absoluto converte-se na criação do homem por si mesmo através do trabalho e da luta, e o devir para si do Espírito converte-se em história real, que existe unicamente como uma história dialéctico-material, como uma história agitada pela luta de classes, ao fim da qual aparece como meta a emancipação do homem. Hegel e Marx tomaram como tema da história humana a inscrição gravada no Templo de Delfos, a mesma inscrição que orientou Sócrates: "Conhece-te a ti mesmo". Porém, em Marx, o conhecimento de si mesmo não é a mera filosofia da auto-consciência, mas antes o conhecimento que o operário adquire de si mesmo ao compreender-se como homem convertido em mercadoria e, ao mesmo tempo, como um sujeito criador de valores, o que supera de modo revolucionário o seu carácter de mercadoria. Em Marx, a prática da inscrição do Templo de Delfos é uma suspensão efectiva da alienação que desemboca na praxis. Merleau-Ponty não está muito longe da verdade quando afirma que o marxismo, mesmo sendo incapaz de dar forma à história mundial, permanece bastante forte para desacreditar as outras soluções: o marxismo não é uma hipótese qualquer, substituível amanhã por outra; ele é a única filosofia da história que enuncia as condições sem as quais não haverá humanidade no sentido de uma relação recíproca entre os homens, nem racionalidade na história. Renunciar a esta filosofia da história equivale a renunciar à razão histórica e, como sucedeu depois da Queda do Muro de Berlim que consagra o triunfo do neoliberalismo, a desistir da luta pela realização do humanismo: a força da teoria de Marx reside precisamente na sua capacidade para nos fazer compreender que a humanidade não é humanidade senão de nome enquanto a maior parte dos homens vive por procuração, e que uns são senhores, outros escravos. Como escreve Merleau-Ponty: «Fora do marxismo, só há o poder de uns e a resignação de outros. As razões pelas quais aderimos ao marxismo e dele não nos desligamos facilmente, quaisquer que sejam os "desmentidos da experiência", são agora claras: é que, colocadas na perspectiva dessa única filosofia da história, as "sabedorias históricas" aparecem como fracassos. O marxismo tem um primeiro título, todo subjectivo, a beneficiar de um sursis: é que ele é o único humanismo que ousa desenvolver as suas consequências». Ao desvalorizar a história, em nome de uma razão hipostasiada - Popper desconhece a teoria sociológica da razão de Durkheim! - e de uma liberdade abstracta, Popper contribuiu mais para o fortalecimento de uma sociedade fechada do que para a construção de uma sociedade aberta: a sua tese do indeterminismo aplicada à história e aos assuntos humanos tem como resultado a negação tanto da liberdade como da história entendida como luta pela conquista da liberdade: negar os determinismos sociais em nome de uma liberdade individual abstracta é o mesmo que entregar o destino dos homens aos caprichos dos poderes dominantes. Embora pareça crer no poder libertador do conhecimento, Popper redu-lo a uma conversa interminável - mera troca desigual de argumentos sob coacção da lógica da dominação - que visa mais a instrumentalização das consciências do que a sua emancipação. O seu ataque à noção de liberdade avançada por Engels a partir de uma célebre frase de Hegel revela o cariz obscurantista da ideologia que opera no interior do pensamento de Popper: «A liberdade é a consciência da necessidade» (Engels). Em vez de procurar compreender esta noção de liberdade no seu contexto polémico - a crítica da "filosofia da realidade" de Dühring - e no âmbito de uma teoria da emancipação, Popper nega o poder emancipador do conhecimento quando coloca esta questão retórica: «Serão porventura aqueles que agem sob a pressão de determinantes bem conhecidas, por exemplo uma tirania política, libertados pelo conhecimento delas?» O tema da relação entre necessidade e liberdade é fundamental tanto para a dialéctica hegeliana e marxista como para a construção de um mundo melhor: a liberdade não é - em Hegel - apenas reconhecimento da necessidade, mas necessidade compreendida - a verdade da necessidade - que implica uma mudança nas condições reais de existência. O reconhecimento não pode efectivamente transformar a necessidade em liberdade, na medida em que a transição da necessidade para a liberdade exige uma dimensão do ser fundamentalmente diferente, transformação esta operada não pela liberdade de negação abstracta mas pela liberdade de negação concreta. Popper, que não captou bem o sentido desta relação dialéctica entre necessidade e liberdade, teme o conhecimento crítico que orienta a praxis de transformação qualitativa do mundo: o Evangelho segundo Sir Karl Popper é o evangelho da ignorância e, por isso, não devemos ficar espantados com o facto do seu racionalismo crítico se voltar na hora da verdade para a religião em busca da fé e não do conhecimento - a fé na razão tal como foi apregoada pelo seu fundador já defunto.
Os alvos do anti-historicismo de Popper são Marx e a política revolucionária. Porém, a relação de Popper com Marx é extremamente ambígua: Popper analisa vários aspectos da teoria de Marx, com os quais concorda; não os refuta, hipostasia-os em si mesmos, isolados das suas relações internas no seio da teoria, de modo a dar a cada um deles uma designação geral pejorativa, como por exemplo economicismo, activismo, filosofia oracular, sociologia do conhecimento, determinismo sociológico, futurismo moral, novo tribalismo ou historicismo económico. Usando a linguagem de Thomas Kuhn, podemos dizer que Popper não tem um paradigma alternativo capaz de operar uma revolução científica: o seu objectivo é mais político do que teórico. O uso abusivo de argumentos ad hominem testemunha precisamente essa ausência de alternativa teórica, desqualificando a autoridade intelectual de Popper que, temendo a revolução social, parece defender uma abordagem tecnológica da sociologia - matéria que desconhece! -, com o objectivo de travar as forças sociais dinâmicas da história. As distinções que estabelece entre profecia histórica e engenharia social e entre engenharia utópica e engenharia de acção gradual visam travar a política revolucionária, isto é, impedir a mudança qualitativa da sociedade. Popper reconhece-o claramente quando, após ter analisado a teoria do ciclo de negócios de Marx, sem a criticar, apela ao intervencionismo do Estado na aplicação de políticas anticíclicas. A unidade da ciência - ou do método - defendida por Popper concede o primado ao método sobre o objecto, sem levar em conta a especificidade do objecto das ciências sociais e humanas: Popper defende que os mesmos métodos e critérios se aplicam tanto às ciências naturais como às ciências sociais. O seu ataque contra a dialéctica da essência e da aparência é levado a cabo em nome de uma transparência social inexistente: ao tomar o mundo social por aquilo que aparenta e pretende ser, isto é, em função das suas definições oficiais - as definições sociais da classe dominante, Popper inviabiliza a crítica ideológica, fazendo a apologia do mundo estabelecido num suposto primitivo estado de inocência. Privado desta base racional e crítica, isto é, da necessidade de rasgar o véu ideológico que cobre a sociedade para a poder ver à luz da verdade, o seu princípio de uma sociedade aberta converte-se naquilo que sempre foi - um princípio de sociedade fechada que, confiante nos modelos matemáticos burgueses do putativo equilíbrio de mercado, não tolera a verdadeira dialéctica. A crise financeira de 2008 refuta cabalmente o optimismo oportunista de Popper: um dos seus discípulos entusiastas, George Soros, foi levado a romper com o seu racionalismo crítico, denunciando a falsidade da doutrina da unidade do método e a falácia do Iluminismo subjacente à sua cartilha pseudo-racionalista: Popper retoma de Marx o princípio da revolução permanente e aplica-o exclusivamente ao crescimento do conhecimento científico, ignorando ou fingindo ignorar a função manipulativa da razão na construção social da realidade. Para todos os efeitos, Popper abraçou a racionalidade instrumental e usou-a não para melhorar a sociedade e proteger a natureza, como é evidente, mas para anular a oposição e dissolver as diferenças num consenso de fundo generalizado. Vou dar dois exemplos do seu procedimento oportunista e obscurantista: falsificar as suas próprias falsificações do pensamento dialéctico alheio, o único capaz de deter as forças totalitárias em movimento neste mundo global dominado pela teologia de mercado (Marx).
1. Segundo Popper, Marx era um racionalista que, tal como Sócrates e Kant, acreditava na razão humana como base da unidade da humanidade, mas a sua teoria de que os nossos conhecimentos são determinados pelos interesses de classe minou o racionalismo, levando ao surgimento da sociologia do conhecimento. Mas que racionalismo é este? O racionalismo do direito natural que faz da razão imutável o tribunal da história e da crítica do conhecimento? As noções popperianas de razão e de natureza humana são as do direito natural, contra as quais se ergueu o historicismo real, não a ficção historicista de Popper: «Há um movimento contínuo de crescimento nas forças produtivas, de destruição nas relações sociais, de formação nas ideias; de imutável há apenas a abstracção do movimento - mors immortalis» (Karl Marx). (:::)
2. Popper herda de Hegel a natureza social da razão, mas distancia-se do seu pretenso "colectivismo". Hegel colectivista? Popper é intelectualmente desonesto! Na filosofia racionalista de Popper, o social é concebido como intercâmbio intelectual entre indivíduos concretos. A sua teoria social da razão é interpessoal e não-colectivista, como pensa ser - na sua ficção interna - a de Hegel e a de Marx. Popper converte a luta de classes de Marx, bem como a luta pelo reconhecimento recíproco de Hegel, a última das quais desconhece porque nunca leu uma das mais belas obras da Filosofia - a Fenomenologia do Espírito de Hegel, numa mera disputa intelectual. Curiosamente a crítica que Marx dirige a Hegel aplica-se igualmente a Popper: «Assim, a filosofia da história (de Hegel) não é mais do que a história da filosofia, da sua (dele) filosofia. Já não há "história segundo a ordem dos tempos", há apenas a "sucessão das ideias no entendimento"». Porém, a fúria idealista de Hegel é inofensiva quando comparada com a fúria histérica de Popper: Hegel estava convencido de que a história tinha chegado ao seu fim com a acção política de Napoleão, cabendo-lhe assim a tarefa de revelar no e pelo discurso verdadeiro a história concluída, enquanto Popper usa a disputa intelectual actual para evitar o salto qualitativo do reino da necessidade para o reino da liberdade, afirmando que vivemos no melhor mundo possível. (:::)
(Em construção) J Francisco Saraiva de Sousa