«Já foi dito: quem se entende de economia, tão-somente, nem sequer isto compreende. O culto exclusivo das utilidades económicas tira não só a compreensão do significado intelectual e moral da existência humana, mas a capacidade de orientar o progresso». (Victor Viccari)
D. António Ferreira Gomes citou esta frase de Victor Viccari no seu texto intitulado Economismo ou Humanismo (1958), onde confronta o seu humanismo personalista cristão com o pensamento económico de Karl Marx. Não pretendo impugnar a leitura que o Bispo do Porto fez da filosofia dialéctica de Marx: a identificação que operou entre a dialéctica materialista e o economismo é absolutamente contrária ao espírito crítico que move todo o marxismo e foi denunciada pelo próprio Marx na sua obra Miséria da Filosofia. O Bispo do Porto não compreendeu a teoria da alienação exposta nos Manuscritos de 1844 e a teoria do fetichismo da mercadoria apresentada n'O Capital, precisamente as teorias que seduziram alguns leitores católicos de Marx: Pierre Bigo, Jean-Yves Calvez ou mesmo Henri de Lubac. No entanto, embora não tenha lido as obras de Auguste Cornu e sobretudo de Ernst Bloch, o Bispo do Porto antecipou uma teoria teológica desenvolvida de modo brilhante por Wolfhart Pannenberg: "o pecado é a verdadeira alienação, é a adopção dum falso eu". O economismo que não tem nada a ver com o humanismo integral de Marx é, de facto, o pecado. Basta ler algumas célebres passagens de O Capital, onde Marx utiliza abundantemente uma linguagem teológica, sobretudo quando fala do poder nivelador do dinheiro que apaga todas as distinções, para constatar que a noção de alienação como pecado não colide com o espírito crítico e revolucionário da obra que perspectivou o processo de acumulação primitiva do capital como o pecado original do capitalismo. Sempre que se demarcou dos abusos do liberalismo e do individualismo exacerbados, em nome do "conteúdo positivo do socialismo", o Bispo do Porto mais não fez do que reclamar a herança de Marx, apesar de não ter compreendido a dialéctica da aparência e da essência. Ora, sem esta compreensão, não é possível manter um diálogo produtivo com a cultura moderna - uma cultura crítica, sobretudo com o marxismo que a moldou: os chamados mestres da suspeita - Marx, Nietzsche e Freud - quebraram todos os ídolos. O Bispo do Porto tem toda a razão quando afirma que "o homem tem de ser resgatado" e reconquistado para si mesmo. Porém, depois de consumada a tarefa demolidora de desmistificação dos ídolos, já não podemos refazê-los e retomá-los para resgatar o homem. Doravante, habitamos o abismo e o homem deve aprender a viver sem procurar consolo e refúgio junto desses velhos narcóticos: o fim da história foi o último grande ídolo a cair. A reconciliação será para sempre uma tarefa não-cumprida até que a catástrofe elimine definitivamente o homem da Terra.
Noutro dia, no debate da SicNotícias moderado por Ana Lourenço, que teve lugar numa sala da Câmara Municipal do Porto, Rui Rio afirmou desconhecer o significado do termo economicismo, o que é deveras estranho quando confessado por um homem que dirige os destinos da cidade que teve D. António Ferreira Gomes como seu bispo. O célebre Bispo do Porto, como lhe chamou o Papa João Paulo II, criticou severamente o economismo, e esta crítica continua a ser pertinente na actual conjuntura nacional de crise profunda, não só por causa da sua perspectiva humanista, mas também por assumir corajosamente a crítica radical do positivismo que invadiu a "ciência económica" nas últimas décadas. No pensamento social e político do Bispo do Porto, a crítica do economismo assume a forma de uma crítica radical do positivismo economicista, levada a cabo em nome de uma perspectiva humanista: a economia é feita para o homem e não o homem para a economia. Este núcleo humanista da crítica do economismo partilha-o o Bispo do Porto com todo o pensamento filosófico herdeiro de Marx. "Pôr o humano ao serviço da economia" não pode ser atribuído ao - suposto - humanismo integral de Marx, e o Bispo do Porto teve isso presente quando criticou o positivismo utilizado pelos economistas do sistema estabelecido para excluir a crítica marxista da economia política do âmbito da "ciência económica": ao filiar o economismo num "fatalismo altamente difuso", D. António Ferreira Gomes mais não faz do que retomar a crítica marxista do economicismo fatalista, tal como surge na Miséria da Filosofia. Em linguagem marxista, o positivismo é denunciado e desmistificado como uma ideologia que glorifica o status quo: o economismo - sobretudo o economismo neoliberal do nosso tempo indigente - "naturaliza" uma realidade económica histórica que pode ser efectivamente transformada pela praxis consciente dos homens que lutam contra a exploração e a opressão. Aquilo que é pode ser transformado naquilo que não é mas que devia ser: a economia - liberta do discurso pseudo-científico dos economistas deslumbrados com a riqueza em si e para si - deve ser colocada ao serviço da humanidade dos homens. O Bispo do Porto soube demarcar-se quer do "avanço do liberalismo sem freio", quer da "hipertrofia do economismo sem preocupações sociais", afinal as faces da mesma moeda neoliberal que hoje nos lança no abismo negro sem fundo: «um economismo total, universal e supremo, tão difuso que parece ter ocupado já as vielas, reino tradicional do "fado e perdição", tal economismo epidémico (e obsessivo) é motivo para pensar».
D. António Ferreira Gomes parece ter sido um leitor atento da obra de Francis Bacon: usar a sua teoria dos ídolos contra o marxismo faz sorrir, porque a teoria marxista reconhece na teoria de Bacon uma das primeiras tentativas filosóficas de elaboração de uma teoria geral da ideologia. Com efeito, a teoria dos ídolos de Bacon exige que o pensamento se despoje de todas as opiniões prévias. (:::)
(Em construção) J Francisco Saraiva de Sousa
1 comentário:
O retrato do Bispo foi pintado pelo Medina!
O texto ainda não está concluído, e, como há debate prós e contras hoje, vou ver se o termino amanhã - a ele e o comentário do debate!
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