«A interpretação do passado, muito mais quando abrange um largo teatro e época de acção, supõe uma filosofia subjacente. A nosso ver, a história não obedece apenas a um determinismo geográfico e económico. Não ignoramos que a trama comum do passado é tecida pelo esforço dos homens, na luta quotidiana com a natureza e sob o acicate das necessidades primárias. Negar, porém, a parte das aspirações espirituais e da criação individual na história é reduzi-la a um arremedo inumano de ciência. /Sobre a talagarça da infra-estrutura económica, moldada por sua vez pelo meio geográfico, cujo estudo de conjunto historiador algum, digno do seu tempo, pode dispensar, as grandes correntes espirituais e as fortes personalidades que as encarnam, bordaram o íris das crenças religiosas, dos novos conceitos da ciência e da filosofia, das múltiplas expressões das artes, ou a marca das vontades poderosas, ao serviço dos interesses próprios ou gerais, tanto maiores e mais fecundos quanto mais o individual se fundiu com o colectivo. /Uma escola moderna, eivada de sentido geométrico, tem procurado resolver os problemas da história como se fossem teoremas, filtrando as suas averiguações através dum fino e complicado crivo de análises críticas, números, gráficos e estatísticas, abolindo as individualidades do seu relato e ignorando por sistema que todos os ideais participam da fé e toda a progressão humana representa um processo do espírito e uma conquista da liberdade. Por via de regra, os historiadores desse tipo afadigam-se no trabalho meritório de apuramento e discussão das fontes, mas esquecem-se de subordiná-las, como dizia Benedetto Croce, à fonte suprema, à autoridade da consciência humana, historicamente viva e activa. /Nessa escola de historiografia não enfileiramos. Acreditamos, sim, que os descobrimentos portugueses, se obedecem a factores geográficos e económicos - verdade indiscutível -, participam dum longo processo espiritual, que visa, tanto como o conhecimento científico do planeta e o seu enquadramento no Universo, a sagração religiosa da natureza e da vida, a humanização e a libertação das consciências - gesta dolorosa e épica cujas fontes e referências supremas são a História Trágico-Marítima e Os Lusíadas». (Jaime Cortesão)
Jaime Cortesão (1884-1960) é um ilustre historiador da Escola do Porto, pelo menos durante um largo período da sua vida, antes de ser corrompido pelas ideias pseudo-racionalistas e idealistas de António Sérgio, que escreveu a grande História dos Descobrimentos Portugueses numa chave universal e humanista. Infelizmente, nem a obra do historiador, nem a sua filosofia dos descobrimentos portugueses, são conhecidas pelo grande e pequeno públicos: o público português não é dado à leitura e ao estudo. Jaime Cortesão não partilha com Alexandre Herculano a desconfiança pela filosofia da história: a interpretação do período longo dos descobrimentos portugueses supõe uma filosofia, como afirma, que interpretei em chave epistemológica - num estudo de juventude - como uma mudança de paradigmas: Jaime Cortesão realiza em 1928 um ajuste de contas com a sua anterior consciência da história, usando a concepção marxista da história e a geo-história para romper com a interpretação heróica encarnada pela figura do Infante D. Henrique, outro ilustre portuense, que desempenhou um papel crucial nas descobertas e na expansão portuguesas. Os conceitos de geo-história e de tempo longo - a longa duração - que partilha com Braudel legitimam esta leitura epistemológica: a nova concepção da história não nega os determinismos geográfico e económico, mas anima-os com a acção das individualidades que encarnam os interesses colectivos. Jaime Cortesão estava mais próximo da interpretação marxista da história do que supunha: o seu "humanismo" não contraria essa concepção, até porque não é verdadeiramente um humanismo teórico que procura explicar a história a partir das peripécias da essência humana. É muito difícil descobrir uma antropologia em acção no pensamento de Jaime Cortesão: o seu humanismo universalista mais não é do que a substituição do humanismo renascentista pelo humanismo prático protagonizado pelos portugueses: «O que ao findar o século XV põe termo à Idade Média não é nem podia ser o Renascimento clássico; não é o regresso às fontes, por mais puras, da Antiguidade, mas a integração do homem no seu habitat e o súbito acesso às fontes novas e inesgotáveis que em todo o planeta se oferecem à sua sede de conhecimento, de poderio e de riqueza» (J. Cortesão). Jaime Cortesão define, numa primeira aproximação, Os Lusíadas como «a epopeia duma pequena Pátria, que descobriu e unificou o Mundo, pelo conhecimento, pelo amor e pela fé». A teoria geral dos descobrimentos portugueses de Jaime Cortesão integra os descobrimentos dentro de uma problemática histórica universal, de modo a destacar e a compreender o lugar eminente que aos Portugueses cabe na história da civilização: o descobrimento e a unificação do Mundo pelo conhecimento. Acusando os historiadores estrangeiros de não terem dado a importância devida aos Portugueses na criação dos Tempos Modernos, Jaime Cortesão retoma a filosofia elaborada pela Escola do Porto para mostrar que a grande transformação do pensamento mundial é obra dos descobrimentos portugueses, com os quais desponta, pela primeira vez, o humanismo universalista, que «tende à designação do homem, não pelo regresso aos limitados cânones da Antiguidade (greco-romana), mas, ao contrário, como resultado duma experiência nova e universal, que permitiu a comparação e unificação de todas as idades de cultura e tipos de humanidades». Ora, como já tinha mostrado a filosofia da Escola do Porto, esse humanismo universal foi cantado por Camões, cuja concepção genial tomou «como motivo épico de inspiração esse descobrimento português do Mundo, nas suas origens, amplitude e consequências humanísticas». A expressão humanismo universalista capta uma nova concepção da humanidade: «Humanidades novas, totalmente ignoradas, surgem aos olhos dos navegadores, na orla ou no interior dos continentes», levando à «formação duma cultura nova, de base experimental e tendência crítica». É certo que Jaime Cortesão refere a vasta literatura etnográfica e etnocientífica dos portugueses, mas a sua filosofia tende a girar em torno do carácter peculiar que os descobrimentos e as navegações imprimiram à língua portuguesa, a língua de navegantes. Tal como Teixeira de Pascoaes, Jaime Cortesão está convencido de que a língua portuguesa formada na lide com o mar incorpora uma nova concepção do mundo unificado, uma moral e uma filosofia do homem universal: «A cada passo, todos nós, Portugueses e Brasileiros, falamos sem o saber, tão comuns se tornaram certas expressões, uma língua de bordo. O mais sedentário de nós, quando fala, continua, pela força da tradição, a navegar». A imagética náutica - o imaginário de navegadores - incorporada na língua portuguesa faz dela uma língua universal: o Português cantado por Camões é o homem «para quêm o perigo é o sal da vida; todos os homens, camaradas; e a Pátria, na própria frase do Poeta, toda a Terra». O humanismo camoniano é humanismo universalista, que funde Pátria e Humanidade na mesma síntese, sem distinguir entre nacionalismo e universalismo, entre arianos e semitas, entre brancos e negros, entre ricos e pobres. Para Jaime Cortesão, «a mais alta definição d'Os Lusíadas seria: o poema da fusão do Homem com o Universo. /Eles são o poema de uma cultura nova, de formação essencialmente portuguesa - aquilo a que chamámos o humanismo universalista -, sentido novo da vida, feito juntamente de juízo crítico e de fé, de obediência e rebeldia, de fria observação experimental e proselitismo ardente; de comunhão divina e amor humano; e, mais que tudo, duma larga, generosa e fraterna compreensão dos outros homens e dos outros povos. Aqui, nesta capacidade de compreender e amar a diversa humanidade, na larga efusão da simpatia, no quente abraço de fraternidade com que se conquista o próprio inimigo, como acontece na história e no Poema, com o mouro Monçaide, em Calecute, está verdadeiramente gravada a marca lusitana» (J. Cortesão). Infelizmente, Ernst Bloch desconhecia Os Lusíadas que fazem da Terra a Pátria da Identidade de todos os Homens: a fantasia náutica dos portugueses é fantasia geográfica que sonha com o Paraíso Terrestre, a fusão do Éden e do Eldorado como o ideal radical da utopia geográfica que visa a constituição futura da terra como casa do homem. Reinventar a sociedade portuguesa é, nesta hora obscura, redescobrir e resgatar o nosso passado, usando-o para projectar o futuro novo. Reescrever a nossa história é abrir as portas ao futuro: o descobrimento do Mundo é a chave que abre a nossa sociedade à globalização. A nossa fantasia primordial é náutica, isto é, geográfica e, num segundo momento, erótica: «Es erscheint dem Menschen so natürlich, mit der Einbildungskraft die Schranken des Raumes zu überschreiten, ein Etwas jenseits des Gesichtskreises zu ahnen, welcher den Meeresspiegel abgrenzt, das man selbst in jenem Zeitalter, wo die Erde noch als eine ebene oder nur unbedeutend an ihrer Oberfläche konkave Scheibe betrachtet wurde, zu dem Glauben geführt werden konnte, es gebe jenseits des Gürtels, welchen der homerische Ozean bildete, noch eine andere Wohnung für die Menschen, eine andere Ökumene, gleich wie die Lokaloka der indischen Mythen ein Gebirgsring, der jenseits des siebenten Meers liegen soll» (A. von Humboldt). A Teoria do Porto Fantasia - o porto seguro - encontra no Canto IX o seu arqui-fundamento geo-erótico e oceânico. J Francisco Saraiva de Sousa
4 comentários:
Hummm... e eis que J Cortesão me surpreende novamente. Afinal, os portugueses foram etnógrafos, mas as obras em diversas línguas não chegaram a ser reunidas. Nunca disse que não havia grandes portugueses, mas a maioria é basura que esquece os grandes.
Claro, não vou expor a teoria dos descobrimentos, mas há nela algo que é dissonante: eu gosto da mística franciscana, mas é difícil atribuir-lhe a origem espiritual dos tempos modernos. A Reforma é o elemento chave e ainda hoje sentimos os seus efeitos aqui no sul atrasado.
Bem, J cortesão estudou algumas dessas etnografias, mas com excepção do descobrimento do Brasil e do seu humanismo universalista - novas humanidades - não elabora uma etnohistória.
Os portugueses descobriram o mundo, mas não souberam explorá-lo.
Bem, resta-nos o sonho atlântico de J Cortesão: a comunidade alargada de língua portuguesa - a língua dos navegadores falada por portugueses e brasileiros.
Um homem fascinante!
Este post é um conjunto de notas para pesquisa futura: a brincar estou a lançar um projecto de reinterpretação de Portugal e, dada a minha erudição e criatividade infinita, sou o único português a poder levá-la a cabo.
Se a minha voz silenciar, Portugal fica privado da visão que tenho do nosso lugar no mundo: pensamento não partilhado é mortal e não pode ser reinventado. :(
Que curioso: uma instituição inglesa financeira ofereceu-me um prémio avantajado de libras, mas ainda não compreendi o objectivo da coisa. O meu auditório anglo-saxónico é enorme. :)
E outra enviou-me por correio um cheque. Eles devem pensar que Portugal é como os USA, mas infelizmente não é: aqui reina a miséria real e mental.
De facto, nascer português é uma fatalidade, porque ficamos sem horizontes e sem oportunidades. Também recebi uma distinção de um site de futebol que divulgou um vídeo sobre o FCPorto. Giro!
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