quinta-feira, 18 de setembro de 2008

Walter Benjamin: História e Redenção (2)

«Os assassinados são defraudados até mesmo da única coisa que a nossa impotência pode garantir-lhes: a recordação». (Theodor W. Adorno)
«O dom de atiçar através do passado a chama da esperança pertence apenas ao historiógrafo perfeitamente convencido que diante do inimigo, e no caso deste vencer, nem sequer os mortos estarão em segurança. E este inimigo não tem cessado de vencer». (Walter Benjamin)
«Os verdadeiros indivíduos do nosso tempo são os mártires que atravessaram os infernos do sofrimento e da degradação na sua resistência à conquista e à opressão, e não as personalidades bombásticas da cultura popular, os dignatários convencionais. Esses heróis não celebrados expuseram conscientemente a sua existência como indivíduos à aniquilação terrorista que outros arrolam inconscientemente através dos processos sociais. Os mártires anónimos dos campos de concentração são os símbolos da humanidade que luta para nascer. A tarefa da filosofia é traduzir o que eles fizeram numa linguagem que será ouvida, mesmo que as suas vozes finitas tenham sido silenciadas pela tirania». (Max Horkheimer)
Apesar de ser hoje em dia uma ideia desacreditada, devido em grande parte à crítica demolidora que lhe foi dirigida por Tocqueville, Burckhardt, Schopenhauer, Nietzsche, Kierkegaard, Max Weber, Ernest Renan, Max Nordan, Georges Sorel, Henry & Brooks Adams, John Bury, W.R. Inge, Austin Freeman, Oswald Spengler, Frederick Teggart, T.S. Eliot, James Joyce, Ezra Pound, Yeats e Aldous Huxley, o progresso é uma ideia enraizada na tradição ocidental que implica o avanço de toda a humanidade num processo gradual, por etapas, que se iniciou num passado primitivo remoto e que se dirige inexoravelmente para um futuro distante e glorioso, de acordo com o plano inicial traçado pela Providência ou pela necessidade histórica. Esta ideia é inseparável de outra ideia: a de um tempo vazio e homogéneo que flui de modo linear, automático, contínuo e infinito. Presente implicitamente no teorema do estoicismo médio sobre o Estado Universal, a ideia de progresso atinge o seu esplendor protótipo na obra de Santo Agostinho, onde a história se converte imediatamente em história da salvação, e consuma-se no conceito kantiano de uma História Universal ou cosmopolita.
Progresso, tempo homogéneo e vazio e História Universal são conceitos que se articulam numa mesma concepção da história: a marcha triunfal dos vencedores e dos opressores. Ciente disso, Benjamin é peremptório: "A ideia de um progresso da espécie humana através da história é inseparável da sua marcha através de um tempo homogéneo e vazio. A crítica à ideia de uma tal marcha é o fundamento necessário da que é dirigida contra a ideia do progresso em geral" (Tese XIII). Num só e mesmo movimento, Benjamin elabora uma nova concepção do tempo e da história, na perspectiva dos vencidos, que opõe à ideologia do progresso que glorifica a história dos vencedores.
A Nova Concepção de Tempo. Desde muito cedo, Benjamin procurou superar a concepção homogénea, vazia, puramente quantitativa do tempo. Assim, nos seus estudos sobre o drama barroco (Trauerspiel) e sobre a tragédia, opõe o tempo da história ao tempo mecânico e vazio dos relógios que se manifesta na regularidade das transformações espaciais, e, no seu texto sobre o romantismo alemão, opõe a concepção qualitativa do tempo, o infinito temporal qualitativo (qualitative zeitliche Unendlichkeit) do messianismo romântico, para o qual a vida da humanidade é um processo de realização (Erfüllung), à concepção vazia e infinita do tempo, o infinito temporal vazio (leeren Unendlichkeit der Zeit), das ideologias do progresso (Ideologie des Fortschritts). Já Georg Lukács tinha recusado a quantificação abstracta do tempo, com o recurso a citações d'O Capital onde Marx denunciava o trabalho maquinal do operário reduzido a "carcaça do tempo": "O tempo perde assim o seu carácter qualitativo, mutável, fluído: fixa-se num continuum exactamente delimitado, quantitativamente mensurável, cheio de «coisas» quantitativamente mensuráveis (os «trabalhos realizados» pelo trabalhador, reificados, mecanicamente objectivados, separados com precisão do conjunto da personalidade humana), num espaço". Na Tese XV, Benjamin opõe o tempo dos calendários, "monumentos de uma consciência da história cujo menor traço parece ter desaparecido na Europa desde há cem anos", ao tempo dos relógios: "Fazer coincidir o reconhecimento de uma qualidade com a medição de uma quantidade foi obra dos calendários, que, com os dias feriados, como que deixam livres os espaços da rememoração". E, ainda a propósito de Baudelaire, Benjamin tira uma ilação: "Os sinos, que outrora acompanhavam os dias festivos, foram, como os homens, expulsos do calendário. Parecem-se com as pobres almas que andam de um lado para o outro, mas não têm história".
Benjamin elabora, portanto, uma concepção qualitativa do tempo, fundada sobre a descontinuidade do tempo histórico, que lhe permite levar a cabo a crítica do progresso e da sua concepção meramente quantitativa do devir da história como um continuum de aperfeiçoamento constante e de modernização benéfica, cujo motor reside no progresso científico e técnico. Benjamin rompe com esta filosofia do progresso e defende uma concepção qualitativa do tempo histórico. Em vez de destacar o futuro, Benjamin procura actualizar o passado, inspirando-se directamente na concepção messiânica judaica da temporalidade: "É sabido que era proibido aos Judeus predizer o futuro. Pelo contrário, a Tora e a oração ensinam-se na comemoração. Para eles a comemoração desencantava o futuro ao qual sucumbiam os que procuram instrução junto dos adivinhos. Mas nem por isso o futuro se tornava um tempo homogéneo e vazio para os judeus. Porque nele cada segundo era a porta estreita pela qual podia passar o Messias" (Tese XVIII, B). Uns versos de T.S. Eliot ajudam a compreender a necessidade de rever o conceito filosófico de progresso: "Parece, à medida que envelhecemos,/ Que o passado tem outro padrão e deixa de ser uma simples/ sequência -/ Ou sequer um desenvolvimento: este último em parte uma/ falácia/ encorajada por superficiais noções de evolução, / Que se torna, no espírito popular, uma forma de repúdio do/ passado". No nosso tempo, as pessoas repudiam ou renegam o passado, que, como sabemos, constitui o alicerce sagrado sobre o qual cresce a civilização ocidental com autenticidade, criatividade e liberdade. Sem um passado representado pelos ritos, tradições e memória, não pode haver raízes, e sem raízes os mortais estão condenados a permanecer isolados no tempo, como almas que já não têm história. Para as classes oprimidas, o tempo não é homogéneo como o dos relógios, mas qualitativamente diferenciado e descontínuo, e também não é vazio, mas preenchido com o tempo actual ou o agora (Jetztzeit), que faz explodir e interromper a continuidade da história, introduzindo "estilhaços messiânicos" (Tese XVIII, A). Só esta concepção do tempo permite rasgar o campo da história às classes oprimidas e abri-lo activa e politicamente à novidade utópica irredutível à sequência ou desenvolvimento mecânico, repetitivo e quantitativo.
A Nova Concepção de História. A Tese VII ajuda a compreender a concepção de história proposta por Benjamin. "Reviver uma dada época", esquecendo "tudo aquilo que se passou em seguida", tal como recomendavam Fustel de Coulanges ou Ranke ao historiador, constitui o método historiográfico derrotado pelo materialismo histórico: o método da intropatia. O investigador historicista entra em intropatia com o vencedor: "Ora todo aquele que domina é sempre herdeiro dos vencedores. A intropatia com o vencedor beneficia sempre, por consequência, aqueles que dominam. (...) Todos aqueles que até agora conseguiram a vitória participaram desse cortejo triunfal em que os senhores de hoje marcham sobre os corpos dos vencidos de hoje. A este cortejo triunfal pertencem também os despojos como sempre foi uso". A esta perspectiva da "história dos vencedores", comprometida com a ideologia do progresso, Benjamin opõe a perspectiva de uma "história dos vencidos", inspirada na gravura do anjo de Paul Klee (Tese IX). O materialismo histórico tem como missão "fazer explodir a continuidade da história", cujo tempo flui sempre igual a si mesmo, nivelando tudo: "A grande Revolução introduziu um novo calendário. (...) Na tarde do primeiro dia de combate (da revolução de Julho), verificou-se que em vários locais de Paris, independentemente e no mesmo momento, se tinha disparado contra os relógios" (Tese XV). A paragem ou interrupção do tempo rompe a continuidade da história, ao mesmo tempo que permite emergir uma outra história, a do "salto dialéctico, a revolução tal qual a concebeu Marx" (Tese XIV). Isto significa que a interrupção funciona em Benjamin a dois níveis: ao nível teórico, a tarefa do historiador marxista é produzir rupturas eficazes na continuidade da história, e, ao nível prático, cabe às classes oprimidas levar a cabo a revolução. Não distinguir entre estes dois níveis conduz à apatia e ao conformismo: a rememoração é insuficiente para realizar a grande interrupção histórica, a "obra da libertação" (Tese XII).
Para Benjamin, compete à "revolução do proletariado" ou das classes vencidas da História operar a interrupção messiânica do curso do mundo. Alimentada e estimulada pelas forças da rememoração, esta revolução será capaz de restaurar a experiência perdida, abolir o inferno e a fantasmagoria da mercadoria, quebrar e rasgar o círculo maléfico do sempre-igual e libertar a humanidade da angústia mítica e os indivíduos da condição de autómatos. Isto significa que, na perspectiva de Benjamin, a revolução não é uma continuação do progresso ou mesmo um aprofundamento da revolução francesa, mas a interrupção destruidora e redentora da história dos vencedores: a actualização da Erfahrung histórica perdida. Na sua obra O Livro das Passagens, Benjamin afirma que "a concepção autêntica do tempo histórico repousa completamente sobre a imagem da redenção (Erlösung)" e, na Tese II, é dito que "a imagem de felicidade é inseparável da de redenção". Isto significa que a revolução é simultaneamente utopia do futuro e redenção messiânica. Embora voltada para a recuperação e salvação do passado, a busca pela experiência perdida orienta-se na direcção do futuro messiânico: "O Messias não vem apenas como redentor; ele vem como vencedor do anticristo" (Tese III).
Para Benjamin, a consciência instalada no movimento das coisas, dos indivíduos e das ideias dominantes contribui para que esse movimento cronológico prossiga a sua marcha triunfal nesse contínuo homogéneo que é a História dos vencedores. Escapar à tirania deste movimento que promove a "eterna repetição do mesmo" (Auguste Blanqui) e que consagra o "sempre igual" constitui a tarefa fundamental da concepção dialéctica da História, que deve operar uma "actualização" do passado e arrancar a tradição ao conformismo que procura dominá-la (Tese VII). Declínio (Verfall) e Salvação (Erlösung) constituem efectivamente conceitos nucleares da filosofia messiânica da História de Benjamin, mas é preciso olhar a sua dialéctica intrínseca nestes termos: a modernidade destruiu a experiência e, portanto, a tradição, e compete à filosofia marxista operar a recuperação dialéctica da história cultural até alcançar o ponto em que "todo o passado tenha sido trazido para o presente numa apocatástase" (Origínes), isto é, numa recuperação messiânica de tudo e de todos, a restituição integral da História (Ernst Bloch), aquilo a que a mística judaica chama "Tikkoun".
Ora, o messianismo que orienta a filosofia da história de Benjamin, o seu elemento teológico, não representa uma espécie de compensação ou de atitude passiva e resignada que aguarda a vinda do Messias, mas visa primordialmente intensificar a luta política emancipadora. Sem o elemento teológico, o materialismo histórico não pode conduzir a revolução/redenção (Tese I), isto é, forçar a chegada do "Reino da Liberdade" (Marx). Hegel e Marx estavam cientes da necessidade de submeter a visão dialéctica do progresso a uma revisão crítica: a noção social-democrata de que o progresso envolvia a própria humanidade e não apenas as suas habilidades e competências cognitivas mostrou ser falsa, a partir do momento em que a cronologia linear da história produziu o fascismo e o totalitarismo e aprisionou os homens nos campos de concentração. Em última análise, liberto desse momento falso, o progresso está presente na noção benjaminiana de que a felicidade das gerações vindouras implica inevitavelmente a ideia de redenção. Ou dito de modo enfático: o progresso é redenção, conceito perfeitamente vislumbrado por Guerra Junqueiro, ou, pelo menos, o progresso pode ser associado à luta constante que visa paralisar e bloquear o triunfo do mal radical. (FIM)
J Francisco Saraiva de Sousa

12 comentários:

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

A interrupção feita ontem para ver o FCPorto a vencer novamente deixou-me preguiçoso, mas vou ver se retomo o pensamento para concluir este post. :)

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Este post reconduz para os posts anteriores sobre Walter Benjamin, onde a sua concepção da história foi desenvolvida. Evitei a repetição e não tratei da escrita da nova historiografia.

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Interrompi abruptamente este post, reconduzindo para os anteriores, porque vejo uma dificuldade no pensamento de Benjamin que se tornou evidente quando citei os versos de Eliot: abandonar o progresso tout court significa também renegar o passado e actualmente o presente é um tempo meramente metabólico. O metabolismo uniformiza o tempo, ou melhor, torna-o demasiado homogéneo, ameaçando completamente a experiência histórica e política.

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Contudo, ainda retomarei os dois últimos parágrafos: explicitar a perspectiva dos vencidos, com a qual estou de acordo.

A experiência da temporalização do tempo é destruida por esta sociedade metabolicamente reduzida e, neste campo, a cyberpesquisa pode clarificar a eternidade metabólica: liquidação da memória e da imaginação, distorção do espaço, ilusão de um tempo instantâneo, simplificação da linguagem, redução da atenção e da consciência, etc. De certo modo, estamos diante de uma redução antropológica: o homem é reduzido à sua animalidade; a sua humanidade é liquidada. Curiosamente, as éticas do ambiente e dos animais confirmam isso: Peter Singer é o seu paladino burreco. Tratar os animais como humanos ou os humanos como animais significa a mesma coisa: destruição do pensamento, liquidação da humanidade e da sua história. É antropo-suicídio total! Mais vale matar P. Singer e seus seguidores ou entregá-los a devoração dos crocodilos; afinal, têm o mesmo "valor intrínseco"! Isto significa que, no plano da teoria, devemos rever a noção de progresso e relançá-la.

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Este é o final:

"Ora, o messianismo que orienta a filosofia da história de Benjamin, o seu elemento teológico, não representa uma espécie de compensação ou de atitude passiva e resignada que aguarda a vinda do Messias, mas visa primordialmente intensificar a luta política emancipadora. Sem o elemento teológico, o materialismo histórico não pode conduzir a revolução/redenção (Tese I), isto é, forçar a chegada do "Reino da Liberdade" (Marx). Hegel e Marx estavam cientes da necessidade de submeter a visão dialéctica do progresso a uma revisão crítica: a noção social-democrata de que o progresso envolvia a própria humanidade e não apenas as suas habilidades e competências cognitivas mostrou ser falsa, a partir do momento em que a cronologia linear da história produziu o fascismo e o totalitarismo e aprisionou os homens nos campos de concentração. Em última análise, liberto desse momento falso, o progresso está presente na noção benjaminiana de que a felicidade das gerações vindouras implica inevitavelmente a ideia de redenção. Ou dito de modo enfático: o progresso é redenção, conceito perfeitamente vislumbrado por Guerra Junqueiro, ou, pelo menos, o progresso pode ser associado à luta constante que visa garantir o triunfo do mal radical."

André LF disse...

Olá, Francisco! Percebo que a sua força criativa nunca arrefece :)
Não tive tempo de ler os seus últimos textos, mas o farei em breve.
Ando afastado em decorrência de atividades das quais lhe falei: trabalhos de pós-graduação, estudos preparatórios para concursos, etc. Muita sensaboria... Não tenho visto a Papillon, a Denise e o Manuel.
Um abraço!

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Não sei o que se passa com este post, mas não está a aceitar as alterações. Porém, não vou reeditá-lo... :(

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Olá André

Também não os tenho visto; devem ter perdido a "pica". Sim, é preciso ter paciência e serenidade para levar a cabo essas tarefas mais rotineiras.

Abraço

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Estou lixado com o blogue. Penso que os técnicos estão a baralhar o meu esquema ou então é mero ruído da crise financeira. Logo agora que ia tratar da decadência e da morte do mundo e da civilização!

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Este blogue vai tornar-se a voz da morte da civilização, sem romper com as virtudes da violência: fractura total! Morte! Cruzes, cruzes, cruzes...

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

A Juventude Socilista precisa ser mais fracturante: o socialismo é fractura total; anseia por um novo mundo, nova vida, novo homem. Nunca foi a glorificação dos poderes obscuros da corrupção instalada nos poderes. Fractura, fractura, fractura, eis o lema da juventude socialista. Inconformismo total! Open Mind total!

Força Juventude Socialista!

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

E não se esqueçam do Conhecimento! Sem a sua luz não pode haver mudança social qualitativa! Precisamos fracturar a sociedade e os seus poderes e dar o Salto Qualitativo! Revoluções umas atrás das outras: ansiamos aqui e agora por um novo mundo liberto da corrupção. Força JS!