segunda-feira, 6 de dezembro de 2010

Prós e Contras: Exercício de Cidadania

«(Nos Estados capitalistas de hoje) não governa nenhum credo nem visão do mundo, mas uma insípida mediocridade e a apatia do indivíduo frente à fatalidade e àquilo que vem de cima. A nossa missão actual é, acima de tudo, assegurar que no futuro não se volte a perder a capacidade para a teoria e para a acção que nasce dela, nem sequer numa futura época de paz, na qual a rotina diária pudesse favorecer a tendência para esquecer de novo o problema. Devemos lutar para que a humanidade não fique desmoralizada para sempre pelos terríveis acontecimentos do presente, para que a fé num futuro feliz da sociedade, num futuro de paz e digno do homem, não desapareça da terra.» (Max Horkheimer)

Doença, loucura e morte foram os anjos negros que velaram o berço de Edvard Münch ao nascer: o quadro Melancolia (1894-95) aqui reproduzido não só traduz o ódio que o pintor nutria pela figura tradicional da mulher burguesa e o pânico que lhe provocava o novo modelo feminino surgido após a libertação, mas também a minha própria visão da cidadania em tempo de crise: o tema de hoje do debate Prós e Contras. A bancarrota cultural da sociedade portuguesa leva-me a encarar os portugueses como cidadãos mutilados: o interesse da classe dominante na situação da educação gerou nestas últimas décadas cidadãos metabolicamente reduzidos, incapazes de pensar para além do imediatismo da sua condição vegetativa e de resistir à irracionalidade do sistema social vigente. Portugal é, mais do que nunca, o túmulo do pensamento independente: a produção universitária em série de analfabetos diplomados colide com a ideia de um futuro feliz para o país. Portugal carece de inteligência cultivada: os zombies portugueses sentem-se intimidados pela cultura superior e pelo conhecimento. A história do pensamento português fornece-nos um exemplo clássico de eliminação do adversário: António Sérgio não suportava a "vaidade" de Oliveira Martins ou mesmo dos ilustres portuenses; a sua obra polémica é alimentada mais pela crítica subjectiva do que pela crítica objectiva de perspectivas teóricas. Fátima Campos Ferreira pensa que as Universidades portuguesas são "boas", mas não são e o próprio debate nas suas diversas ondas e derivas opinativas desiguais mostrou precisamente isso: a bancarrota cultural da sociedade portuguesa promovida activamente pelas políticas da educação, do ensino superior e da cultura. Pensar que temos "boas" universidades é abdicar do futuro: as Universidades portuguesas são literalmente antros comportamentais.

Prós e Contras foi hoje (6 de Dezembro) palco da cidadania em tempo de crise: diversos cidadãos comuns expressaram as suas perspectivas sobre o estado de miséria generalizada do país. Nomeio apenas as figuras que estiveram no palco central, embora as melhores perspectivas tenham sido expressas pelos outros convidados da plateia: Olímpia Resende (Administração Fiscal), Ana Almeida (cardiologista), José Luís Peixoto (escritor), Salvador Mendes Almeida (Fundação de deficientes físicos), José Gil Duarte (gestor turístico) e Maria João Barros (enfermeira). À primeira vista, o debate superou as expectativas de Fátima Campos Ferreira, mas, se pensarmos bem, a cidadania exibida enferma dos mesmos vícios que nos mergulharam nesta crise nacional. A visão dominante foi esta: 30 anos perdidos sem lideranças fortes, competentes e exigentes (Olímpia Resende). Porém, como vivemos em democracia, a crítica das diversas lideranças políticas que governaram Portugal nos últimos trinta anos implica necessariamente a crítica dos cidadãos que votaram nelas. Como disse um professor da plateia (Saavedra), falhámos todos, visto que todos acreditaram no Pai Natal, aliás um padrasto maléfico que não foi nada justo na distribuição social da riqueza nacional, incluindo os fundos financeiros provenientes da União Europeia. Ora, se dermos algum crédito à tese de que hoje os portugueses estão mais informados (Ana Almeida) do que estavam em 1983, quando o FMI pousou na Portela, então somos obrigados a questionar a qualidade da informação fornecida pelas figuras mediáticas - as celebridades bombásticas e saloias do triste centralismo lisboeta - e pelo sistema de ensino e de educação. De um modo geral, os convidados foram mais propensos a denunciar o negativismo dos telejornais (José Luís Peixoto) do que a qualidade do ensino administrado pelas escolas e universidades portuguesas, apesar destas instituições estarem intimamente ligadas - e talvez de modo corrupto ou ilícito. Com efeito, cidadãos bem informados, curiosos e dotados de boas ferramentas teóricas não se deixam enganar facilmente: os portugueses foram enganados porque desejaram ser enganados (Maria João Barros), pensando mais com a barriga do que com a cabeça. E, o que é preocupante, mostraram desejar continuar a ser enganados: os discursos do jovem arquitecto ou de Salvador Mendes Almeida mostraram que as gerações mais jovens - as dos recibos-verdes e do emprego precário - continuam deslumbradas com a possibilidade de riqueza fácil, de preferência garantida pelo Estado-Papá. Continuam a exigir ao Estado aquilo que este já não pode dar: as excepções à medida de austeridade de redução dos salários da função pública - o caso Açores - mostram que não há coesão social - e muito menos solidariedade - em Portugal. Apesar de vivermos uma situação de vida ou de morte, os portugueses parecem alimentar a mesma esperança que os levou a encarar a entrada na UE e na zona Euro como a salvação nacional. A esperança messiânica não se concretizou, mas a desilusão ainda não está verdadeiramente instalada: os portugueses têm dificuldade em encarar a realidade de frente, sem drogas paliativas, e, sobretudo, em assumir responsabilidade pelo seu triste fado (José Gil Duarte). Alguém disse que o maior erro da geração dos 35 aos 50 anos reside no facto de ter ficado deslumbrada com a riqueza aparente e fácil - riqueza resultante do endividamento público e privado irracional, deixando os partidos esvaziar-se. A solução proposta é entrar nos partidos e exigir novas lideranças, de resto uma solução infantil que pode encobrir outro interesse mais egoísta e mesquinho: usar os partidos políticos como plataformas para promover os interesses privados em detrimento do interesse nacional. Pessoas que se deixaram enganar por lideranças políticas e económicas medíocres, deslumbradas como estavam - e continuam a estar - com a riqueza fraudulenta em si e para si, não merecem credibilidade: o futuro de Portugal não pode ser confiado a pessoas arrependidas. Saavedra só acordou desse sonho de vida fácil há cerca de seis meses, mas nem todos os portugueses desejam acordar para a realidade. A sociedade civil opõe resistência à mudança social qualitativa: o sentimento de medo referido por José Duarte deve ser visto como medo de perder uma vida improdutiva e inautêntica - consumida no consumo embrutecedor de bens e de serviços - sustentada e garantida pelo Estado.

Eu sou um teórico crítico e, nessa qualidade, não posso perder a oportunidade para desenvolver o pensamento crítico e dialéctico, procurando introduzir a razão no mundo. Ora, esta função social da Filosofia exige uma análise profunda da sociedade portuguesa e do carácter nacional: os cidadãos comuns não estão acima da crítica, até porque eles também são responsáveis pela situação de miséria em que vivemos. Detesto privar, isto é, "socializar" com portugueses, porque sei que essa "luso-socialização" é pura perda de tempo. Não podemos construir um mundo novo com indivíduos que se alienaram do mundo ou discutir racionalmente fragmentos do mundo com criaturas desprovidas de conceitos teóricos e históricos! Entre portugueses reina a futilidade! Algumas intervenções neste debate entre cidadãos comuns confirmam a minha desconfiança em relação à capacidade analítica dos portugueses: Ana Almeida defendeu - e bem! - a optimização dos cuidados médicos, sugerindo a atribuição de prémios ou o aumento salarial como estímulos pecuniários para obter esse efeito; o estudante de arquitectura desconhece o mundo anterior ao seu nascimento, como se o mundo tivesse surgido depois do seu nascimento e a função da escola fosse prepará-lo para usufruir sem esforço uma vida de riqueza; Salvador Mendes Almeida anseia - em nome da igualdade castradora - pela colaboração do Estado para converter o país numa arena de deficientes físicos e mentais; a vendedora ambulante de castanhas, além de fazer da castanha assada um prato típico de Lisboa, gosta que as pessoas tenham inveja de si e do seu triunfo na vida; José Luís Peixoto prefere o protesto à resignação, como se a produção cultural real fosse promovida pelos subsídios do Estado; Olímpia Resende quer que o Estado pague atempadamente as suas dívidas aos privados, como se a crise de valores - a sua versão da inversão dos valores! - derivasse do atraso desses pagamentos; José Duarte anseia por uma economia ao serviço do homem, ao mesmo tempo que usa e promove as velhas receitas económicas, precisamente as que colocaram o homem ao serviço da economia, para operar essa mudança mental de paradigmas; e Saavedra acordou demasiado tarde para a realidade nua e crua do país. Enfim, intervenções deste tipo mostram claramente que a sociedade civil portuguesa está dependente do Estado. A sociedade portuguesa está efectivamente doente, como disse Maria João Barros: as soluções sectoriais propostas por alguns destes cidadãos comuns derivam de uma análise errada da situação de crise do país: em vez do emagrecimento saudável do Estado, as soluções propostas engordam-no cada vez mais, ao mesmo tempo que alimentam o cenário terrível de um país de velhos (Ana Almeida) a cuidar da sua própria decadência física e mental. Ora, este comportamento egoisticamente geriátrico e necrófilo corrobora a minha tese da bancarrota cultural da sociedade portuguesa. Se as escolas e as universidades portuguesas tivessem cumprido a sua real função, teríamos assistido a um outro tipo de debate mais inteligente e construtivo entre cidadãos adultos, responsáveis e suficientemente competentes para não con-fundir num mesmo mundo simbiótico o mundo interior e o mundo exterior. Em vez de um debate entre adultos racionalmente competentes, assistimos a um debate entre adultos que se comportam como crianças perante o Estado e o mundo comum. Seria demasiado fácil recorrer novamente ao depoimento do estudante de arquitectura para esclarecer o fenómeno regressivo que acabei de diagnosticar, mas prefiro acentuar a insensibilidade social exibida pelos presentes em relação ao sem-abrigo, cuja participação teve piada, além de ter sido relevante, bem como a sua indiferença intelectual em relação às propostas do "sueco amante de Portugal". Apesar de terem esbarrado contra ouvidos fechados ao conhecimento crítico, estas duas participações detectaram as raízes estruturais da crise nacional: as famílias que cercaram Salazar - isto é, o Toni - são as mesmas que cercam as lideranças políticas da III República. A solução de mudar de capital é, portanto, pertinente, como meio para combater a corrupção e o centralismo exacerbado, mas esta mudança não precisa ser física para realizar o efeito pretendido, bastando não concentrar na capital política a capital social, a capital económica, a capital financeira, a capital comunicacional e a capital cultural. A definição kantiana de iluminismo - como a saída do homem da sua menoridade de que ele próprio é culpado - ajuda-nos a compreender o atraso estrutural de Portugal: um povo infantilizado anseia sempre por lideranças fortes (Olímpia Resende) ou pela vinda de estrangeiros (o FMI de José Luís Peixoto), porque nunca foi capaz ao longo da sua história de se servir do entendimento sem a orientação de outrem. Cientes da menoridade do povo português, e aproveitando a efeméride da morte de Francisco Sá Carneiro - aquele que nunca demonstrou efectivamente as suas qualidades de líder político, prestando-se por isso aos abusos da mitologia política, o PSD e o CDS já sonham com uma nova Aliança Democrática, isto é, com a vinda de um novo ciclo ditatorial. Um Presidente, uma maioria absoluta no Parlamento e um Governo de Direita Conservadora e Reaccionária! E o povo imbecilizado (Guerra Junqueiro) aplaude a sua própria dominação!

J Francisco Saraiva de Sousa

5 comentários:

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Deixo algumas premissas ocultas, até porque já foram explicitadas noutros textos aqui no blog. Estou cansado de Portugal! :(

Francisco disse...

Vivas, sou o aluno de arquitectura que participou neste prós e contras. Estive a ler a sua analise sobre o programa e achei bastante certa e interessante. Pessoalmente acho a sua analise sobre a minha pessoa errada (só porque sou eu, se fosse outra pessoa acharia que estava bem =P ), mas pronto, vou deixar passar essa critica pessoal e vou começar a seguir este blog de perto.

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Caro Francisco

Peço-lhe que não interprete o que disse como uma crítica pessoal. Compreendi a sua perspectiva e a sua revolta: partilhamos essa mesma revolta. Aqui no post concentrei a minha atenção sobre o "modo de dizer", que tipifiquei para criticar um determinado grupo ou segmento da sociedade portuguesa. Geralmente, não faço críticas pessoais, até porque não conheço as pessoas. Critico tipos representativos da sociedade...

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Neste momento, os USA - logo a seguir a Holanda - chefiam a lista de utentes de língua não-portuguesa que frequentam este blog. Outro facto interessante é a procura dos russos e dos croatas!

Francisco disse...

É um blog com qualidade, por isso é que eles vêm cá :) Ou então andam a aprender português-brasileiro e sentem necessidade de exercitar a língua ohoh