quinta-feira, 3 de março de 2011

Platão e a Filosofia da Mente

«Ler Platão é um grande prazer. É mesmo uma grande alegria. Os seus textos admiráveis, em que uma perfeição única da forma se alia a uma profundidade única do pensamento, resistiram à usura do tempo. Não envelheceram. Continuam vivos. Vivos como nos dias longínquos em que foram escritos.» (Alexandre Koyré)

O título é enganador, porque não pretendo analisar a filosofia da mente de Platão (427-347) e resgatar para o nosso tempo indigente a sua análise tripartida da mente, em diálogo permanente e produtivo com as neurociências cognitivas e espirituais. Em Portugal, todos falam abusivamente das doutrinas esotéricas de Platão sem terem lido as suas obras: os luso-espíritos indigentes - reféns da superstição em segunda mão e do seu próprio arcaísmo mental - atribuem a sua própria mediocridade àquele que foi o Grande Pai da Filosofia. As obras de Platão resistiram à usura do tempo, é certo, mas precisam ser resgatadas sempre de novo para ficarem protegidas da indigência mental e cognitiva do nosso tempo que «democratizou» a Filosofia e a Ciência como se toda a gente fosse capaz de as cultivar. O platonismo tal como é apregoado e difundido desfigura o pensamento genuíno de Platão, que, como sabemos, não é acessível ao leitor comum. Porém, para quem nasceu naturalmente filósofo, é relativamente fácil confrontar os tristes e feios mortais de Portugal que anseiam pela imortalidade da sua alma indigente com a sua própria mediocridade visceral, bastando para tal recorrer ao Banquete de Platão.

O Banquete inclui-se nos diálogos intermédios de Platão, ao lado de Parménides, Fédon, Fedro, A República e Teeteto, e, no que se refere à natureza da alma, lança um sério desafio hermenêutico à teoria tripartida da alma, tal como a podemos articular a partir dos diálogos Fédon, A República, Fedro e Timeu que, apesar da diversidade das exposições, permitem esboçar uma teoria coerente da mente. O Banquete expõe um discurso pronunciado por Sócrates num Symposion, no qual relata o que afirma ter aprendido com uma sábia sacerdotisa, Diotima de Mantineia. Uma vez que Sócrates nega neste discurso a imortalidade da alma, entregando-a à usura e ao desgaste da doutrina do fluxo, torna-se muito difícil conciliar a doutrina da imortalidade dos vestígios - e dos feitos - com a doutrina da imortalidade da alma racional inerente à teoria tripartida da mente. Todo o homem, sendo mortal, precisa de procriar, tanto no plano físico como no plano espiritual, porque esta é a única forma de imortalidade que lhe é acessível. A nossa identidade persiste ao longo do nosso breve trajecto vital unicamente através de uma renovação contínua e, tal como a nossa identidade durante a vida, a nossa imortalidade depois da morte persiste unicamente através daquilo que engendrámos em vida. No plano físico, o nosso desejo de imortalidade através da procriação conduz-nos ao amor heterossexual e à fundação de uma família. No entanto, o homem que está espiritualmente grávido - gravidez espiritual - procura outro homem - amor homossexual - com quem possa engendrar uma linhagem espiritual. A linhagem espiritual é a sabedoria e a virtude e engendrar sabedoria e virtude significa expressar pensamentos nobres e sérios acerca das coisas do mundo, como fazem os poetas, os inventores e os filósofos. A procriação só pode ter lugar «no belo» e esta é a razão pela qual a prenhez espiritual traz consigo a paixão física. A esta etapa passional e erótica do processo, geralmente alcançada por todos, segue-se a etapa em que se passa deste amor a um corpo belo ao amor a todos os corpos belos - da «beleza da forma à forma da beleza» - e depois, sucessivamente, ao amor à beleza espiritual, à beleza da conduta, à beleza do conhecimento e, finalmente, à própria beleza que o iniciado na visão final aprecia não já como a propriedade de qualquer coisa em particular mas simplesmente tal como é em si mesma. Em cada um de nós mortais há a capacidade de amar tudo o que é belo e esta capacidade inata é inseparável do nosso desejo de criar ou de expressar. O nosso amor ao belo liga-se directamente à paixão física e o nosso desejo de criar só pode dar-nos prazer quando ocorre, graças à paixão que a possibilita, essa relação íntima com o outro. As coisas valiosas só podem ser obtidas quando a paixão física por um objecto particular se espiritualiza e se «sublima» em amor, não pelo objecto, mas pela propriedade que nesse objecto o capacita a desencadear a paixão. Os iniciados realizam esta espiritualização quando transitam do amor a um membro da classe dos particulares belos para o amor a toda a classe de particulares belos como objectos de paixão, e, a seguir, para o amor à propriedade comum a todos eles. No Banquete, Platão refere apenas os corpos humanos como objectos particulares, não só porque são os únicos objectos belos capazes de excitar a paixão, dando início a todo o processo, mas também porque a paixão que desencadeiam implica a relação íntima com o outro tão necessária à procriação espiritual.

O que nos importa destacar aqui não é a teoria do Eros Pedagógico ou do Amor e da Amizade de Platão, perspectivada à luz histórica dos rituais de iniciação dos povos indo-europeus, mas sim a sua exposição do desejo de procriação do belo: a natureza mortal do homem anseia pela imortalidade, mas a única forma de imortalidade que pode alcançar é deixar atrás de si um vestígio da sua passagem pela vida. Embora seja considerado o mesmo ser desde a sua juventude até à sua velhice, os componentes que formam o corpo e a alma do homem estão sempre a mudar e a sua vida só persiste graças à contínua substituição dos componentes desgastados pela usura do fluxo: a persistência dos objectos mortais, ao contrário dos objectos divinos que são sempre os mesmos, consiste simplesmente em deixar um vestígio ou uma marca que resista ao seu perecimento. O mortal participa no imortal precisamente graças ao vestígio que deixa atrás de si, e é, por isso, que os homens querem deixar algo - uma obra imortal - atrás de si quando morrerem. A dificuldade desta concepção do ego exposta por Sócrates - o eu humano como consciência da própria identidade através da mudança das diversas fases da vida - reside no facto de estabelecer uma «analogia» entre a sucessão dos estados mentais que garante a identidade de um indivíduo ao longo do seu ciclo vital e a sua relação com o filho. Com efeito, o filho não é uma continuação do pai no mesmo sentido em que o Pedro de quarenta anos é uma continuação do Pedro de vinte anos, e, como a paternidade biológica parece ser um método menos eficiente para garantir esse vestígio imortal, podemos reformular a concepção platónica da paternidade espiritual nesta direcção: a aversão à morte - ou, inversamente, o desejo de imortalidade - compreende uma aversão ao abandono do mundo comum e a única forma de lograr um posto permanente no mundo é imitando Homero ou Shakespeare, Goethe ou Rilke, Dante ou Cervantes, Camões ou António Nobre. Para Platão, como escreve Werner Jaeger, «todo o eros espiritual é procriação, ânsia de cada um se eternizar (imortalizar) a si próprio numa façanha ou numa obra amorosa de criação pessoal que perdure e continue a viver na recordação dos homens. Todos os grandes poetas e artistas foram procriadores deste tipo e são-no igualmente, no mais alto grau, os criadores e modeladores da comunidade estatal e doméstica. Aquele que tem o espírito repleto de força geradora busca algo de belo em que gerar. Se encontra uma alma bela, nobre e bem formada, acolhe de braços abertos o ser humano na sua totalidade e expande-se nele em discursos sobre a arete, sobre a conformação que um homem excelente deve ter, sobre o que deve fazer ou deixar de fazer, e procura educá-lo. E no contacto e trato com ele concebe e dá à luz o que trazia dentro de si. Pensa continuamente no outro, quer ele esteja ausente quer presente, e cria em união com ele o que nasceu. A sua comunhão é um vínculo mais forte que o dos filhos do corpo e o seu amor mais duradouro que o dos esposos, pois une-os algo de mais formoso e imortal. Homero e Hesíodo, Sólon e Licurgo são para Platão os supremos representantes deste eros na Grécia, pois com as suas obras geraram nos homens muita virtude. Poetas e legisladores são uma e a mesma coisa na pedagogia que as suas obras encarnam. Assim encarada, Platão considera a tradição do espírito grego, desde Homero e Licurgo até ele próprio, uma unidade espiritual. É em redor da poesia e da filosofia, por muito que na sua opinião o conceito daquela esteja distante da verdade e da realidade, que se ata como laço de união a ideia de paideia, a qual brota do eros para se converter em arete».

Com o objectivo de denunciar o arcaísmo mental dos portugueses, vou retomar a teoria de Eros para reforçar a teoria da reminiscência de Platão. É certo que a teoria de Eros não se vincula positivamente com a teoria da imortalidade da alma, mas permite completar e enriquecer a ideia de conhecimento como produção activa do espírito, tal como é apresentada nos diálogos Ménon e Teeteto. A interpretação habitual da teoria da reminiscência como puro efeito e resíduo passivo de uma contemplação anterior que deixou as suas marcas na alma - do mesmo modo que deixa a impressão sensível na imaginação e na memória - conserva a aparência superficial do mito órfico, sem levar em conta que no Ménon a aquisição do conhecimento constitui não só uma conquista mas também uma verdadeira geração que o espírito efectua activamente. O mito da contemplação anterior ao nascimento reduz a reminiscência à pré-existência de um conhecimento, constituído pelos vestígios impressos na alma pela contemplação anterior. Ora, no diálogo que estabelece com o escravo, Sócrates mostra que há uma ignorância prévia: o processo de reminiscência começa quando o indivíduo reconhece a sua própria ignorância. O mal-estar produzido pelo reconhecimento da sua própria ignorância leva-o a desejar sair dessa situação desagradável através da busca activa do conhecimento do desconhecido. Porém, a consciência da própria ignorância não resulta da comparação realizada entre a opinião falsa e a ideia verdadeira, como supõe superficialmente o mito da contemplação anterior, mas procede da crítica ou da refutação directa da opinião falsa, examinada na sua consistência interna e nas suas relações com experiências e noções já aceites como verdadeiras. Este procedimento gnoseológico justifica-se pelo princípio da unidade orgânica da realidade objectiva como condição logicamente necessária da unidade subjectiva das nossas noções: todas as nossas noções formam um sistema orgânico unitário, no seio do qual cada noção conduz às outras noções. A vinculação mútua de todos os conhecimentos converte-nos em investigadores activos e, neste sentido, a reminiscência significa investigar e aprender com os outros (maiêutica), no sentido rigoroso em que o receber noções ou a ajuda de outrem implica a existência da vontade de aceitar e compreender. Como escreve Hannah Arendt: «Àquilo a que Platão chamou mais tarde dialegesthai, Sócrates chamava, pelo seu lado, maiêutica, a arte da parteira: queria ajudar os outros a fazerem nascer aquilo que eles próprios de certo modo pensavam, a descobrirem a verdade na sua doxa. Este método ganha sentido a partir de uma dupla convicção: cada homem tem a sua própria doxa, a sua própria abertura ao mundo, e Sócrates deverá, portanto, começar sempre por fazer perguntas. (...) Sócrates queria fazer mostrar-se esta verdade que cada qual potencialmente possui. Se quiséssemos permanecer fiéis à sua metáfora da maiêutica, poderíamos dizer: Sócrates queria tornar a cidade mais verdadeira fazendo vir à luz as verdades dos seus diferentes cidadãos. O método a seguir para esse efeito é aquilo a que chama dialegesthai, o falar com alguém sobre alguma coisa -, mas esta dialéctica traz mais verdade, não destruindo a doxa ou opinião, mas revelando, pelo contrário, na opinião a sua própria verdade. O papel do filósofo, portanto, não é governar a cidade, mas ser o "moscardo" - não é dizer verdades filosóficas, mas tornar os cidadãos mais verdadeiros».

O Banquete reforça a exigência platónica de actividade na aquisição do conhecimento humano, completando o processo que conduz à conquista do saber - exposto nos diálogos Ménon e Teeteto - com o processo inverso pelo qual se chega à sua perda. A reminiscência enquanto capacidade inata que, mediante o seu trabalho permanente de esforço, logra gerar conhecimentos encontra-se constantemente ameaçada - na mente mortal - pela possibilidade real de perder o conquistado: o esquecimento ameaça permanentemente a conquista cognitiva realizada pela actividade da mente humana, na medida em que esta, sendo mortal, está submetida à mudança. A actividade da mente humana desenrola-se no tempo e no movimento e, por isso, é completamente distinta da contemplação divina da verdade eterna presente de chofre e na sua totalidade. Para a mente humana, a conservação da ciência é fruto de uma criação contínua e constantemente renovada: o conhecimento que o espírito gera deve ser constantemente renovado para que o esquecimento não o cubra com as suas trevas. Por outras palavras, o conhecimento precisa ser gerado sempre de novo sem cessar - a cada instante - pela actividade do espírito, a fim de que a ciência se mantenha sempre presente nele ao longo de uma determinada duração temporal. O diálogo Fedro confirma plenamente este princípio, identificando a reminiscência com o exercício permanente da actividade interior que visa conservar a ciência. Quando Theuth - o inventor da escrita e do alfabeto - se dirigiu ao rei egípcio Tamos, comentando «Este é um ramo do conhecimento, ó rei, que tornará os Egípcios mais sábios e de melhor memória», como se tivesse «descoberto o remédio da memória e da sabedoria», o rei - opondo-se - respondeu-lhe: «Engenhosíssimo Theuth, um homem é capaz de criar os fundamentos de uma arte, mas outro deve julgar que parte de dano e de utilidade possui para quantos dela vão fazer uso. Ora tu neste momento, como pai da escrita que és, por lhe quereres bem, apontas-lhe efeitos contrários àqueles que ela manifesta. É que essa descoberta provocará nas almas o esquecimento de quanto se aprende, devido à falta de exercício da memória, porque, confiados na escrita, é do exterior, por meio de sinais estranhos, e não de dentro, graças a esforço próprio, que obterão as recordações. Por conseguinte, não descobriste um remédio para a memória, mas para a recordação. Aos estudiosos oferece a aparência da sabedoria e não a verdade, já que, recebendo, graças a ti, grande quantidade de conhecimentos, sem necessidade de instrução, considerar-se-ão muito sabedores, quando são ignorantes na sua maior parte e, além disso, de trato difícil, por terem a aparência de sábios e não o serem verdadeiramente». A evocação de recordações ou de lembranças é aqui claramente diferenciada da reminiscência: a primeira - por ser pura passividade e recepção - é obtida do exterior e favorece o esquecimento, enquanto a segunda - por ser actividade e criação incessante - é obtida do interior e conserva a ciência. Esta diferenciação permite a Platão encarar a reminiscência como faculdade activa de criação e de renovação de conhecimentos. Deste modo, Platão permanece fiel à tradição socrática: o esforço da geração espiritual vincula-se ao mal-estar produzido pela consciência da própria ignorância que desperta no homem a vontade e o impulso de investigar e de conhecer. A teoria do Eros como fonte de toda a aspiração espiritual vincula-se assim à teoria da reminiscência: a alma, que anseia ter o que não tem e deseja saber o que não sabe, está consciente de possuir em si mesma o poder de alcançar a verdade. Ao ampliar o conceito de Eros, estendendo-o a toda a vontade humana e a toda a aspiração humana ao Bem, Platão dissolve a distinção entre Eros e Poiesis, colocando em Eros toda a ânsia de geração espiritual ascendente ou de criação activa: «o sentido e a razão de ser de toda a paideia é fazer o Homem triunfar dentro do homem» (Werner Jaeger).

Sendo filho da pobreza (Penia) e da riqueza (Poros), Eros contém em si uma indigência em acção que produz nele uma necessidade permanente e uma abundância potencial que o mantêm em tensão contínua: «Condenado a uma perpétua indigência, está longe do requinte e da beleza que a maior parte das pessoas nele imagina... Rude, miserável, descalço e sem morada, estirado sempre por terra e sem nada que o cubra, é assim que dorme, ao relento, nos vãos das portas e dos caminhos: a natureza que herdou de sua mãe faz dele um inseparável companheiro da indigência. Do lado do pai, porém, o mesmo espírito ardiloso em procura do que é belo e bom, a mesma coragem, persistência e ousadia que fazem dele o caçador temível, sempre ocupado em tecer qualquer armadilha; sedento de saber e inventivo, passa a vida inteira a filosofar, este hábil feiticeiro, mago e também sofista!» Por causa desta sua situação e natureza, Eros ocupa um lugar intermédio entre a pobreza e a riqueza, o feio e o formoso, o mortal e o divino, a ignorância e a sabedoria, e este lugar situado no meio termo leva-o a amar a sabedoria: «No mesmo dia, tanto floresce e vive, segundo está senhor dos seus recursos, como morre para voltar à vida, graças à natureza do seu pai. Porém, os seus achados escapam-lhe continuamente das mãos, de tal sorte que nunca se encontra na indigência nem na riqueza. A verdade é esta: nenhum deus ama o saber ou deseja ser sábio (pois já o é), nem qualquer outro que possua o saber se dedica à filosofia, do mesmo modo que não são também os ignorantes que a ela se dedicam ou que aspiram a ser sábios! A ignorância acarreta efectivamente consigo este peso: é que os que julgam possuir em suficiência beleza, bondade e inteligência, nada disso possuem: e quem se não crê destituído não aspira, consequentemente, a um bem de cuja falta se não apercebe.» Descalço e sem-abrigo mas sedento de saber e cheio de mérito, Eros é, portanto, filósofo, isto é, amante da sabedoria, «pois se a sabedoria se conta entre as mais belas coisas e se o Amor é amor do Belo, forçosamente terá de ser filósofo e, como filósofo, situar-se no meio termo entre o sábio e o ignorante». A ânsia de saber nasce precisamente da consciência de que não se sabe, mas esta ignorância reconhecida é, num só e mesmo movimento, a consciência de que se possui interiormente o poder de procriar a sabedoria: o homem que anseia pelo saber sente-se engravidado - presa das dores do parto - e esta sua ânsia de posse duradoura do objecto amado é esforço de gerar e criar no Belo. Ora, o esforço de gerar é desejo de imortalidade, porque «a geração é, para o mortal, como que a possibilidade de se perpetuar e imortalizar».

Todos aqueles ilustres homens - em especial os ilustres portuenses (Sampaio Bruno) - que ousaram pensar neste pequeno e periférico exílio estéril que é Portugal foram confrontados com a indigência mental e cognitiva do povo português. O facto deste triste, feio e macabro povo não ter produzido uma metafísica revela negativamente a índole do seu carácter colectivo: a ausência da sede de saber que caracteriza medularmente os portugueses faz deles instrumentos dóceis e submissos dessa feiticeira-mor que é a Inveja Patológica. Os portugueses são zombies que, apesar de serem destituídos de alma racional - a única imortal segundo a teoria tripartida da alma de Platão -, anseiam por uma imortalidade que não merecem: «Que é um homem, Se o primeiro bem e trato do seu tempo É só comer e dormir? Um animal, nada mais» (William Shakespeare). Quando pronunciou estas sábias palavras, Hamlet captou a natureza degradada daqueles homens que abdicaram da sua Humanidade: o seu receio em relação à chamada vida além túmulo é o receio universal de todos aqueles que, tendo dedicado a vida à busca do conhecimento, não desejam continuar a coexistir numa outra comunidade de vida espiritual com os ignorantes que esconderam em vida a sua situação miserável atrás de títulos, postos e diplomas fraudulentos. Como é que homens que se comportam como animais, dedicando todo o tempo da sua vida a comer, a fornicar sem gerar filhos e a dormir, podem ansiar pela imortalidade das suas almas indigentes? A perspectiva de continuar a coexistir depois da morte no mundo do além com tais criaturas que viveram sem cultivar a mente e orientá-la para o Bem é demasiado aterrorizadora para consolar o espírito daqueles que dedicaram a sua vida à Filosofia: a mente sã não deseja conviver - em nenhuma circunstância - com a mente enferma (Cf. William James) que se apropria ilícita e metabolicamente dos produtos simbólicos da sua actividade cognitiva, violando o princípio da autoria. Homero, Platão e Shakespeare coincidem nesta preocupação com a «vida depois da morte», que Hamlet encara como um pesadelo, a menos que a reencarnação como punição eterna das vidas de maldade nos liberte do seu convívio: a ideia do eu pessoal como aposta do eterno (conceito não-empírico de imortalidade) é sedutora e digna de ser pensada num tempo indigente como o nosso que fez da cultura algo passageiro. Porém, em vez de seguir este novo rumo, repensando a teoria tripartida da alma, o que interessa aqui frisar é que os portugueses não são somente meros animais que dedicam o seu tempo de vida a comer, a fornicar e a dormir sem cuidar da sua vida espiritual, mas também e sobretudo animais diabólicos que funcionam como aniquiladores das obras espirituais produzidas pelas almas superiores para conquistar a sua imortalidade "empírica" - de nome, fama, feitos e acção - na recordação dos homens vivos: o que aterroriza as mentes sãs não é tanto a ignorância activa dos portugueses, mas sobretudo e fundamentalmente a sua maldade visceral, alimentada e impulsionada pela inveja patológica, uma vez que ninguém digno da sua Humanidade quer viver com os seus assassinos (Sócrates). Os portugueses são criaturas negras do Mal Radical (Kant) que negam aos outros aquilo a que não têm acesso por mérito próprio: a imortalidade dos vestígios dignos de memória futura. A malvadez destes tristes, feios e macabros mortais que são os portugueses revela-se no facto de dedicarem grande parte da sua vida a apagar os vestígios imortais dos outros, fazendo da história de Portugal a história do eterno esquecimento. Com estas criaturas das trevas, a dialéctica negativa usada por Platão para identificar as aspirações de Eros converte-se em dialéctica da aniquilação - em vida e na morte - daqueles que se destacam do rebanho de apagadores ambulantes que é o povo português: o temor de Florbela Espanca de ser morta depois de morta - a segunda morte, o esquecimento activo da sua obra - é partilhado por todas as almas superiores portuguesas. Portugal é o túmulo das almas nobres que ousaram e ousam pensar e gerar no Belo e os zombies portugueses são os seus coveiros.

J Francisco Saraiva de Sousa

7 comentários:

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Termino amanhã porque parti os óculos, já são os terceiros que parto. :(

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Há pessoas que andam a dizer que eu e o meu blog somos contra a classe profissional X e Y, mas isso não é verdade: Eu sou contra a incompetência e a irracionalidade em todas as classes ou grupos sociais e profissionais.

Além disso, sou absolutamente livre e independente e tudo o que escrevo é guardado por uma universidade americana. Portugal tem o que merece: a ruína e a estupidez.

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Quanto ao post vou alterar algumas ideias e acrescentar outras - a paternidade espiritual, a imortalidade do vestígio, conduzindo todas elas ao início: a crítica da mente indigente dos portugueses. É provável que esteja concluído amanhã. Hoje tive trabalho extra e fiquei sem tempo.

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Bem, os amigos ingleses, americanos e canadianos dizem que sou o Nietzsche português: "descasco" nos tugas sem me sentir descascado. :)))

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Acrescentei uma citação de Hannah Arendt sobre a maiêutica socrática.

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Pretendia fazer hoje um post sobre a teoria da religião de Demócrito, mas quando agarrei os fragmentos vi como as nossas traduções são medíocres: os tradutores não distinguem entre imagens e ilusões, o que ilude a passagem da teoria das imagens para a teoria do medo, passando pela teoria das ilusões. Em suma, quem lê as traduções fica sem compreender realmente a teoria de Demócrito. Preciso ir às fontes, o que vai adiar o texto. :(

O que detecto nas traduções portuguesas e brasileiras não é só a ignorância dos tradutores, mas também a pobreza do seu universo psicológico - eus pouco diferenciados.

Mike Hussy disse...

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