segunda-feira, 14 de maio de 2012

A Filosofia segundo Louis Althusser

Louis Althusser (1918-90)
«(...) Apenas com Lenine pode enfim tomar corpo o sentido da frase profética da XI Tese sobre Feuerbach. (Até aqui) "os filósofos não fizeram mais do que interpretar o mundo: trata-se agora de o transformar" (Marx). Promete esta frase uma filosofia nova? Não o creio. A filosofia não será suprimida: a filosofia permanecerá a filosofia. Mas, sabendo o que é a sua prática e sabendo o que ela é, ou começando a sabê-lo, pode por isso transformar-se pouco a pouco. Então, menos que nunca, poderemos dizer do marxismo ser uma filosofia nova: uma filosofia da praxis. No cerne da Teoria Marxista existe uma ciência: uma ciência inteiramente singular, mas uma ciência. O elemento novo que o marxismo introduz na filosofia é uma nova prática da filosofia. O marxismo não é uma (nova) filosofia da praxis, mas uma prática (nova) da filosofia.» (Louis Althusser)

Louis Althusser exerceu um grande impacto sobre o meu desenvolvimento filosófico, e, durante um certo período precoce da minha vida intelectual, eu fui "althusseriano". A citação em epígrafe extraída de Lenine e a Filosofia motivou uma célebre polémica entre mim e um professor de Filosofia que me acusou de ser um "aristocrata" infiltrado no seio da filosofia marxista. Eu tinha-lhe apresentado um projecto revolucionário de trabalho intitulado Lógica e Revolução, sobre o qual escrevi algumas linhas nucleares de desenvolvimento. O projecto encantou-o de tal modo que ele dizia nas aulas que eu estava a anos-luz de distância dos meus colegas. É certo que, como qualquer ser humano, gosto de ser elogiado, mas, quando o elogio adquire feição afectiva, o meu sistema imunitário reage violentamente, refazendo a bolha de protecção que me defende da invasão alheia. Em vez da realização desse projecto, demoli nas aulas a sua própria concepção da filosofia da praxis. O resultado previsto desta demolição foi converter a proximidade em distância crítica: ele não deixou de me admirar, mas amuou e morreu quatro ou cinco anos depois da nossa célebre polémica. Um outro resultado desta demolição ocorreu alguns anos mais tarde quando resolvi dar um curso de filosofia centrado em torno do Curso de Filosofia para Cientistas, pronunciado por Louis Althusser em Outubro-Novembro de 1967 na Escola Normal Superior (Paris). Este curso foi publicado com o título Filosofia e Filosofia Espontânea dos Cientistas (1974). Na altura, fiz circular entre os alunos uma versão escrita do curso, que deveria constituir o corpo central deste texto, pelo menos esta era a minha intenção, se a tivesse encontrado algures no meio da papelada. Como ainda não a encontrei, e desejando partilhar as teses de Althusser defendidas nesse curso de filosofia para cientistas, resolvi reproduzi-las aqui, sem as comentar e as desenvolver. Um dos propósitos da actividade filosófica de Althusser era a elaboração de um conceito científico de Filosofia, mais precisamente a formulação de uma teoria científica da Filosofia. Em Pour Marx e Lire le Capital, Althusser definiu a filosofia como "teoria da prática teórica". O Curso de Filosofia para Cientistas dá início a uma reformulação substancial deste conceito inicial de filosofia que não se ajustava à filosofia em geral e à filosofia marxista em particular. Althusser nunca chegou a escrever uma obra sistemática sobre a sua teoria científica da filosofia. Esta encontra-se dispersa em diversos textos programáticos, dos quais destaco Lenine e a Filosofia, Posições, Elementos de Autocrítica, Sobre o Contrato Social, Resposta a John Lewis, Sobre o Trabalho Teórico, A Transformação da Filosofia seguido de Marx e Lenine perante Hegel, Ideologia e Aparelhos Ideológicos de Estado, Nuevos EscritosSobre a Reprodução (obra póstuma) e O Futuro é Muito Tempo (obra póstuma). O carácter fragmentário destes textos dificulta a compreensão do conceito althusseriano de filosofia e da sua desconstrução (Derrida) do conceito clássico de materialismo, de modo a poder ligar ao materialismo dos encontros aleatórios - a sua derradeira concepção do materialismo, inspirada em Lucrécio - a concepção heideggeriana do "nada" como "vazio primordial", mas três desses textos - Resposta a John Lewis (1972), Elementos de Autocrítica (1972) e Defesa da Tese de Amiens (1975) - redefinem claramente a filosofia como "luta de classes na teoria". Filosofia e Filosofia Espontânea dos Cientistas é uma obra profundamente marcada pela filosofia de um filósofo não mencionado no corpo do texto: Ludwig Wittgenstein. Um modo de reconstruir o conceito althusseriano de filosofia é confrontá-lo com o conceito de filosofia de Wittgenstein. A Filosofia, não sendo uma ciência, deve tentar obedecer às normas ou regras do discurso científico, forjando conceitos e articulando-os em teses, isto é, proposições capazes de serem justificadas, se não por demonstrações formais, pelo menos por argumentos coerentes. Eis as teses propostas e enunciadas por Althusser:

Tese 1. As proposições filosóficas são teses.
Tese 2. Toda a tese filosófica se afirma justa ou não.
Tese 3. A filosofia não tem como objecto os objectos reais, ou um objecto real no sentido em que uma ciência tem um objecto real.
Tese 4. A filosofia não tem um objecto no sentido em que uma ciência tem um objecto.
Tese 5. Existem "objectos filosóficos", se bem que a filosofia não tenha objecto (no sentido da Tese 4): "objectos" interiores à filosofia.
Tese 6. A filosofia é feita de palavras, organizadas em proposições dogmáticas chamadas teses.
Tese 7. As teses são ligadas entre si sob a forma dum sistema.
Tese 8. A filosofia "estampa-se" duma forma particular, diferente: para os outros. Para ela, a filosofia não se engana. Não há erro filosófico.
Tese 9. Uma proposição ideológica é uma proposição que sendo o sintoma duma realidade diferente da que visa, é uma proposição falsa na medida em que tem por objecto a própria realidade que visa.
Tese 10. A palavra de ordem da interdisciplinaridade é uma palavra de ordem que exprime hoje na maioria dos casos uma proposição ideológica.
Tese 11. A filosofia não é nem uma disciplina interdisciplinar nem a teoria da interdisciplinaridade.
Tese 12. A filosofia enuncia teses que dizem respeito efectivamente à maior parte dos pontos sensíveis dos problemas ditos de "totalidade". Mas como a filosofia não é ciência do todo, não dá solução a estes problemas. Ela intervém doutra maneira: enunciando teses que contribuem para desimpedir a via para a justa posição destes problemas. (Althusser explicita a noção de totalidade no seu texto A Transformação da Filosofia, onde afirma que a filosofia tem um exterior.)
Tese 13. A filosofia enuncia teses que reúnem e produzem não conceitos científicos mas categorias filosóficas.
Tese 14. O conjunto das teses e das categorias filosóficas que aquelas produzem podem ser reunidas sob e funcionar como um método filosófico.
Tese 15. O método filosófico é, pela sua modalidade e funcionamento, diferente dum método científico.
Tese 16. A filosofia não responde às questões da "origem" e dos "fins últimos", porque a filosofia não é nem a religião nem a moral.
Tese 17. A questão da "origem" e dos "fins últimos" é uma proposição ideológica.
Tese 18. As questões da "origem" e dos "fins últimos" são proposições ideológicas extraídas da ideologia religiosa e moral que são ideologias práticas.
Tese 19. As ideologias práticas são formações complexas de montagens de noções-representações-imagens nos comportamentos-condutas-atitudes-gestos. O conjunto funciona como normas práticas que governam a atitude e a tomada de posição concreta dos homens em relação a objectos reais e problemas reais da sua existência social e individual, e da sua história.
Tese 20. A filosofia tem por função traçar uma linha de demarcação entre o ideológico das ideologias, por um lado, e o científico das ciências, por outro. (A filosofia é, acima de tudo, uma prática, uma actividade.)
Tese 21. A ideologia científica (ou dos cientistas) forma corpo com a prática científica: é a ideologia "espontânea" da prática científica.
Tese 22. Todas as linhas de demarcação que traça a filosofia reconduzem-se a modalidades duma linha fundamental: entre o científico e o ideológico.
Tese 23. A distinção entre o científico e o ideológico é interior à filosofia. É o resultado da intervenção filosófica. A filosofia faz corpo com o seu resultado, que constitui o efeito-filosofia. O efeito-filosofia é diferente do efeito do conhecimento (produzido pelas ciências).
Tese 24. A relação da filosofia com as ciências constitui a determinação específica da filosofia. (Apesar de nomear Gramsci e Lenine, Althusser deixa de lado uma outra determinação fundamental: a relação da filosofia com a política ou mesmo com a arte.)
Tese 25. Na sua prática científica, os especialistas das diferentes disciplinas reconhecem "espontaneamente" a existência da filosofia e a relação privilegiada da filosofia com as ciências. Este reconhecimento é geralmente inconsciente: pode tornar-se, em certas circunstâncias, parcialmente consciente. Mas permanece envolvido então nas formas próprias do reconhecimento inconsciente: estas formas constituem a "filosofia espontânea dos cientistas" (FEC).

Tinha prometido não comentar as teses enunciadas por Althusser, mas, quando reproduzi a tese 24, a tese central de todo o curso, não resisti e teci um comentário crítico, nomeando uma ausência: a relação da filosofia com a prática política. Althusser reconhece que a filosofia tem outras determinações, que desempenham um papel fundamental na sua existência, funcionamento e formas, nomeadamente a sua relação com as concepções do mundo através das ideologias práticas e teóricas. Aliás, no decorrer do curso, ele próprio elucida esta ligação da filosofia com as concepções do mundo, sem no entanto lhe dar a forma de tese. Contudo, apesar da consciência deste nexo de determinações, toda a sua atenção é dirigida para a relação da filosofia com as ciências: «A relação da filosofia com as ciências não é a dum discurso no seu tema "específico", ou até no seu "objecto" (visto que a filosofia não tem objecto). Esta relação é constitutiva da especificidade da filosofia. Fora da sua relação com as ciências, a filosofia não existiria». Althusser dedica quase dois terços do curso a comentar a tese 24, utilizando o último terço para exemplificar as suas análise filosóficas finas com a crítica da Lição Inaugural da Cátedra de Biologia Molecular de Jacques Monod no Colégio de França, publicada pelo jornal Le Monde de 30 de Novembro de 1967. As Edições Rés (Porto) publicaram em língua portuguesa a Lição Inaugural de Monod, bem como a crítica de Althusser e de Piaget: Das Ciências na Filosofia, Da Filosofia nas Ciências (1975). A crítica althusseriana da filosofia espontânea e da concepção do mundo de Monod é, a todos os títulos, exemplar. Encontramos aí em acção o modo como a filosofia funciona na sua relação com as ciências, traçando linhas de demarcação entre o científico e o ideológico. As três teses que Althusser atribuiu mais tarde a Lenine podem ser enumeradas aqui:

Tese 26. A filosofia não é uma ciência. A filosofia é distinta das ciências. As categorias filosóficas são distintas dos conceitos científicos. (Esta tese repete algumas teses anteriores.)
Tese 27. Se a filosofia é distinta das ciências, existe entre a filosofia e as ciências um vínculo privilegiado. Este vínculo é representado pela tese materialista da objectividade. (Althusser desenvolve melhor a tese materialista da objectividade no seu texto Resposta a John Lewis. Quando escreveu O Acaso e a Necessidade, Monod (1970) apresentou o postulado da objectividade da natureza como "a pedra angular do método científico". Uma cedência à crítica althusseriana da sua lição inaugural? Porém, ele conserva a noção idealista de noosfera - a teoria da selecção das ideias - e a ética do conhecimento. Monod não só fez filosofia espontânea de cientista, como também teve a ousadia de fazer filosofia propriamente filosófica, quando atribuiu à filosofia a esfera dos valores, da qual os homens de hoje se "alienaram".)
Tese 28. Lenine retoma uma tese clássica que Engels expusera em Ludwig Feuerbach e o Fim da Filosofia Clássica Alemã, mas dá-lhe um alcance sem precedentes. Esta tese incide sobre a história da filosofia conhecida como história de uma luta secular entre duas tendências: o idealismo e o materialismo. A clarificação desta tese exige a enunciação de uma nova tese:
Tese 29. Lenine define a essência última da prática filosófica como uma intervenção no domínio teórico. Esta intervenção reveste-se de uma dupla forma: teórica, pela formulação de categorias definidas; e prática pela função destas categorias. Esta função consiste em traçar uma linha de demarcação, no interior do domínio teórico, entre ideias consideradas verdadeiras e ideias consideradas falsas, entre o científico e o ideológico. Os efeitos deste traçado também são duplos: positivos no que servem a uma determinada prática - a prática científica -, e negativos na medida em que defendem esta prática contra o perigo de certas noções ideológicas, neste caso as do idealismo e dogmatismo. São estes, no mínimo, os efeitos produzidos pela intervenção filosófica de Lenine.
Tese 30. É a filosofia materialista quem traça esta linha de demarcação para preservar a prática científica dos assaltos da filosofia idealista, o científico, dos ataques do ideológico. Lenine soube distinguir entre "crise da ciência" e crises de crescimento, como aquelas que ocorreram no domínio da física, associando a primeira à filosofia idealista. Ora, se é a filosofia materialista quem traça a linha de demarcação entre o científico e o ideológico no domínio teórico das ciências, então podemos ser levados a concluir que a tendência idealista se identifica com o ideológico que ameaça bloquear o crescimento do conhecimento científico do mundo. Deste modo, Althusser priva-se da tese marxista da superação da metafísica, imposta pela suspeita do seu carácter ideológico, a menos que defina o materialismo como superação da metafísica entendida como sistema idealista que impõe a identidade entre o racional e o real lá onde ela não existe. Coube a Max Horkheimer desenvolver esta concepção da dialéctica materialista no seu brilhante ensaio Hegel e o Problema da Metafísica (1932). Porém, não encontramos na sua obra essa concepção da dialéctica materialista como crítica do princípio de identidade. Mas as dificuldades de Althusser agravam-se quando enunciamos uma outra tese da sua autoria:
Tese 31. A filosofia define-se por um duplo vínculo: o vínculo da filosofia com as ciências e o vínculo da filosofia com a política. A filosofia representa a luta de classes, isto é, a política, no domínio das ciências. Eis aqui o inicio de uma teoria filosófica. Althusser atribui ao materialismo uma dupla valência: uma valência teórica que consiste em proteger a prática científica dos assaltos ideológicos, e uma valência prática, isto é, política, que consiste em garantir a mudança social qualitativa ansiada pelas classes sociais ascendentes. O seu conceito científico de filosofia permite testar e controlar empiricamente a tese da dupla valência do materialismo, até porque esse conceito faz parte integrante não da filosofia mas da ciência da história fundada por Marx. Althusser é um filósofo inteligente, porque soube detectar uma ferida no seio da sua própria filosofia. O conhecimento científico da filosofia é, ele próprio, filosófico: «(...) deve-se ter cuidado com a ilusão de poder fornecer uma definição, isto é, um conhecimento da filosofia que possa fugir radicalmente à filosofia: não se pode atingir uma ciência da filosofia que seja uma "meta-filosofia", não se pode escapar radicalmente ao círculo da filosofia. Com efeito, todo o conhecimento objectivo sobre a filosofia é ao mesmo tempo posição na filosofia, portanto tese na e sobre a filosofia. (...) Não há discurso objectivo sobre a filosofia que não seja ao mesmo tempo filosófico, portanto discurso sobre posições na filosofia». Ao círculo da filosofia acrescenta a noção de justeza: «as proposições filosóficas, diferentemente das proposições científicas que se dizem verdadeiras, porque demonstradas ou provadas, são declaradas justas (ou não)». Não estando pré-estabelecida por uma autoridade superior que decide do justo, a justeza é o resultado de um ajustamento. Com estas noções práticas, justo e justeza, somos reconduzidos à Tese 2. O círculo fecha-se antes mesmo de termos compreendido a prática filosófica tal como a define Althusser. As dificuldades teóricas de Althusser lançam-nos desafios, aos quais só podemos responder se pensarmos todas as possibilidades de solução presentes nos seus textos fragmentários. Há muito trabalho teórico para realizar, se quisermos responder à pergunta: o que é isso - a filosofia?

Anexo. Li algures num blogue que a Fenomenologia do Espírito de Hegel é uma ontologia. Esta afirmação é absolutamente falsa e, se fosse feita num exame, o seu proponente devia ser chumbado sem apelo a tribunal de recurso. A ontologia hegeliana é a Ciência da Lógica. Consultem a Enciclopédia das Ciências Filosóficas: onde se encontram nesta obra a teoria do ser e/ou a fenomenologia do espírito? Coincidem? É certo que houve uma mudança de perspectiva, da qual resultou a reformulação da fenomenologia do espírito, mas o essencial mantém-se. 

J Francisco Saraiva de Sousa

2 comentários:

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Ya, a minha erudição é total! No entanto, sou criativo!

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Como é evidente, eu tenho algumas pistas para solucionar as dificuldades que apontei neste texto, mas, enquanto não descobrir a versão escrita do curso que dei, não vou partilhá-las. Encarem este texto como um desafio e um convite para pensar de modo filosófico. Portanto, um texto preparatório...