sábado, 21 de julho de 2012

Filosofia e Matemática

«O medo da matemática é aquele pavor patológico e a humilhação confusa que a matemática provoca em centenas de milhões de pessoas, reacção que tem sido uma constante ao longo da história. Mas, enquanto a doença praticamente não mudou, as consequências para as suas vítimas, essas sim, mudaram dramaticamente. O medo da matemática, tal como a senilidade, é, na verdade, não um, mas o conjunto de vários males, cada um dos quais proveniente de determinada ideia errada acerca da matemática». (Michael Guillen)

O programa de Descartes pode ser resumido numa única expressão: matematização do mundo. O pai da filosofia moderna foi um matemático. Descartes criou a geometria analítica que consiste em reduzir qualquer problema de geometria ao correspondente problema algébrico, o qual é resolvido de forma simples e automática. No entanto, a geometria analítica, tal como é hoje ensinada, não se reconhece inteiramente na obra de Descartes, na qual descobrimos não tanto a geometria das coordenadas mas sobretudo a algebrização das construções de régua e compasso. O Discurso do Método de Descartes não é o livro que lemos habitualmente; ele continha três tratados científicos de grande interesse: a Dióptrica, um tratado de óptica que compreende uma teoria da refracção da luz que, pela primeira vez, dava a sua lei - a lei do seno - e um estudo dos novos instrumentos (telescópio, óculo de alcance); os Meteoros, um estudo dos fenómenos celestes, em especial dos fenómenos atmosféricos (nuvens, chuva, granizo, arco-íris e parélios); e a Geometria, um tratado de álgebra que revolucionou a concepção da matemática ao estabelecer uma ligação entre o domínio do espaço - quantidade contínua - e o domínio do número - quantidade discreta. A Geometria de Descartes contém uma teoria geral das equações com uma notação nova e, entre outras coisas, uma solução elegante, por métodos algébricos, do célebre problema geométrico de Pappus (Cf. Carl B. Boyer). O Discurso do Método mais não era do que o Prefácio destes três tratados científicos que a história da filosofia esqueceu. Ler o Discurso do Método sem ler a seguir os três tratados científicos equivale a não compreender a própria filosofia cartesiana. Descartes dedicava-se à ciência durante todos os dias da semana, reservando o Domingo para a especulação metafísica. No entanto, a metafísica é anterior à física. (:::/:::)

A Filosofia Contemporânea distanciou-se das matemáticas e das próprias ciências. Os filósofos marxistas dedicaram-se a muitos temas científicos mas de um modo superficial. O marxismo nunca chegou a produzir uma história marxista da matemática. Há, porém, algumas indicações nesse sentido. Assim, por exemplo, a teoria da racionalidade instrumental elaborada pela Escola de Frankfurt implica a articulação entre o desenvolvimento da matemática e o processo de formalização da razão, à luz do próprio desenvolvimento capitalista. A omissão da matemática não permite compreender o processo de dominação da natureza e do homem: o papel desempenhado pela ciência nesse processo de dominação depende da sua matematização. O fascínio dos números está ligado ao poder que eles concedem a quem os domine. Darei apenas um exemplo para reforçar a ligação estreita entre os números e o mercado. Imagine o leitor que, ao passar pela montra de uma sapataria, vê um par de sapatos que deseja comprar: os sapatos custam 50 euros e o leitor só tem 25 euros no bolso. Como não pode "tirar 50 de 25", o leitor resolve o problema dizendo que voltará amanhã. O que o leitor não sabe é que reside aqui uma das questões fundamentais da matemática donde decorreu todo o seu progresso ulterior. Os Hindus descobriram que se podia atribuir uma significação válida a subtracções tais como "50 tirados de 25", bastando admitir a existência de números negativos, que se designam uniformemente sob o nome de dívidas. Quando se tiram 50 de 50, fica zero: a subtracção obriga-nos a considerar o zero como um número, ao qual se aplicam as propriedades dos números naturais. No século XII, Bhaskara viu isso: o zero é o número cardinal de certos conjuntos, os chamados conjuntos vazios ou nulos. Sem o zero os números negativos - popularizados pelo termómetro - não poderiam ter sido concebidos. O conjunto dos números ordinários ou positivos e dos números negativos constitui o conjunto dos números qualificados: a todo o número positivo - natural, fraccionário, incomensurável - corresponde um número negativo. (:::/:::) Estas breves considerações são suficientes para mostrar que a crítica da racionalidade instrumental tem como alvo preferencial todo o projecto kantiano: a fúria do idealismo alemão dissolveu a própria realidade ou, mais precisamente, a realidade que opõe resistência à dominação. As questões kantianas devem ser reformuladas e, no decorrer desse processo, transfiguradas: a racionalidade instrumental é racionalidade matemática antes mesmo de ser racionalidade tecnológica. As matemáticas modernas surgiram com Descartes: a partir de 1637 escolhem-se habitualmente as primeiras minúsculas - a, b, c ... - para designar constantes e as últimas - x, y, z ... - quando se deseja exprimir quer variáveis, quer incógnitas. A notação literal - a representação das grandezas por letras, às quais se podem atribuir quaisquer valores - apareceu com a álgebra, abrindo uma nova era e criando uma linguagem internacional. (Fonex: acabo de dar uma machadada na narrativa de Adorno/Horkheimer!) Ora, a filosofia de Descartes é a filosofia da época da manufactura, o que quer dizer que é a filosofia da burguesia ascendente que desejava conquistar e dominar o mundo. A noção de homem como "dono e senhor da natureza" resume já a fúria do idealismo, a tendência filosófica que anda associada estruturalmente à dominação da natureza. A crítica da racionalidade instrumental dirige-se à fúria do idealismo: ela não pode recuar até à Grécia Antiga sem alterar o seu dispositivo conceptual, porque a noção de que "saber é poder" não se fundamenta na experiência, como pensava Bacon, mas na matematização do mundo, a qual não foi levada a cabo pelos gregos. A matemática é a linguagem da dominação: eis uma definição da matemática que faz estremecer os matemáticos, cuja ideologia espontânea de cientista é o platonismo. (:::/:::)

Adenda. Nunca pensei que iria viver na conjuntura-tempo mais indigente da história do homem: o que me preocupa não é tanto a pobreza material mas sobretudo a indigência cognitiva e a atrofia dos órgãos mentais dos meus contemporâneos. A actividade teórica é - hoje em dia - uma actividade solitária: aqueles que se dedicam a ela constroem teorias para ninguém, simplesmente porque não há público inteligente para elas. E sem público inteligente não há verdadeiramente discussão racional das teorias propostas: os públicos existentes comportam-se como meros ladrões que se apropriam das ideias alheias para uso caseiro. Tudo isto é estranho e, no caso português, muito triste: Possuímos todos os instrumentos necessários para elaborar teorias completas e, no entanto, não há ninguém capaz de os utilizar de um modo inteligente e racional. O homem contemporâneo perdeu capacidades mentais e cognitivas: quanto maior é o número de diplomados analfabetos, menor é o número daqueles indivíduos dotados de competências racionais. A massificação do ensino universitário liquidou o próprio conhecimento que deveria promover. Em Portugal, tudo é mais difícil porque, além do desemprego estrutural e da ausência de uma cultura do mérito, nunca houve uma verdadeira tradição teórico-crítica: os portugueses nunca tiveram apetência genuína pelo conhecimento, fugindo da razão como o Diabo foge da Cruz. O ensino transformou-se num sistema de mentira institucionalizada. Portugal é uma invenção mentirosa. E os portugueses são os seres humanos mais arcaicos que habitam a Terra. Teixeira de Pascoaes comparou-os com os macacos e, de facto, as universidades portuguesas são autênticos parques zoológicos de animais arcaicos. Os comentadores políticos portugueses que desfilam pelos canais de TV continuam a mencionar o "papão comunista" para justificar o capitalismo selvagem que se apoderou do mundo global desde o Colapso do Mundo Comunista. Infelizmente, os portugueses são demasiado indigentes - mental e cognitivamente - para compreender que estão perante os verdadeiros "papões" que bloqueiam o futuro do país. As conjunturas mudam a um ritmo alucinante, mas os rostos da mentira institucional são sempre os mesmos. Portugal afunda-se na estupidez das suas pseudo-elites, a enorme turba medíocre de devoradores dos bens públicos.

Em construção. J Francisco Saraiva de Sousa

terça-feira, 17 de julho de 2012

Teoria Quântica e Filosofia

«A teoria quântica aboliu a noção de objectos fundamentalmente separados, introduziu o conceito de participação em substituição ao de observador, e pode vir a considerar necessário incluir a consciência humana na sua descrição do mundo». (Fritjof Capra)

«A natureza nada sabe sobre imperfeições; a imperfeição é uma percepção humana da natureza. Enquanto parte da natureza, somos também perfeitos; é a nossa humanidade que é imperfeita. E, ironicamente, é devido a essa nossa capacidade para a imperfeição e para o erro que somos livres - uma liberdade que nenhuma pedra nem nenhum animal pode saborear. Sem a possibilidade de erro e sem a real indeterminação que a teoria quântica implica, a liberdade humana não faz sentido. O Deus-que-joga-aos-dados libertou-nos». (Heinz R. Pagels)

«A essência da interpretação de Copenhaga é que o mundo deve ser realmente observado para ser objectivo. A realidade tem existência apenas quando a observamos. Vemos que, de acordo com a interpretação da mecânica quântica segundo a escola de Copenhaga, o universo indeterminado tem outra consequência - a realidade criada pelo observador. A noção de que o mundo existe num estado bem definido independentemente da intervenção humana chegou ao fim. Há qualquer coisa de muito especial no mundo quântico; podemos domesticá-lo com a nossa matemática, mas o certo é que ele é estranho - muito mais estranho do que podemos imaginar visualmente». (Heinz R. Pagels)

Os físicos e os filósofos estão centrados nos problemas de interpretação da teoria quântica, na tentativa de dar uma resposta à pergunta: O que é a realidade quântica? É falso afirmar que, no mundo contemporâneo, os filósofos deixaram de estar preocupados com as questões clássicas que preocupam os físicos. Basta referir dois nomes - Samuel Alexander e Alfred North Whitehead - para desmentir essa afirmação de John D. Barrow. O objectivo deste texto é reafirmar o meu compromisso: contribuir para a clarificação da filosofia da teoria quântica. Noutro dia, assisti a uma conversa entre um engenheiro, um estudante de engenharia e um electricista formado na antiga escola industrial: o que me chocou nessa conversa foi a estupidez arrogante dos dois primeiros intervenientes. Embora não seja especialista em mecanismos eléctricos, compreendi desde o início a armadilha que o electricista prático montou para confrontar os diplomados arrogantes com a sua estupidez: eles desconheciam algumas leis físicas básicas que o electricista utiliza quando conserta os electrodomésticos. Este episódio mostra o estado do ensino superior em Portugal: a produção em série de burros diplomados, não só no campo das letras, o que não é surpreendente, mas também nas áreas das ciências e das engenharias. Nós, os amantes do conhecimento, somos oásis vulneráveis rodeados por um imenso deserto de estupidez diplomada que está a liquidar a cultura superior: a ralé diplomada ao abrigo do processo de Bolonha funciona como uma espécie de formigueiro que invade os oásis de conhecimento para os paralisar ou mesmo destruir. Nas universidade portuguesas, não há lugar para o mérito: o mecanismo que as domina expulsa do seu seio a competência, de modo a garantir a perpetuação da mediocridade instalada. Os burros afastam os competentes para não serem confrontados com a sua burrice visceral: o ensino universitário português é uma terrível mentira. Não adianta tentar descobrir argumentos ou exemplos para atenuar essa verdade essencial: a captura das universidades portuguesas pelo bando organizado dos burros diplomados. A universidade portuguesa - privada e pública - é lixo. Produzir textos sobre mecânica quântica é perder audiência - e esta perda é sintomática: ela indica o vazio cognitivo instalado nos cérebros dos burros diplomados. A arrogância que exibem é uma espécie de mecanismo de compensação: os "génios" portugueses (sic) são génios ocultos; eles nunca se revelam porque não há nada para ser revelado. Neste imenso deserto da estupidez, só temos um caminho a seguir para escapar à malvadez pseudo-diplomada: dialogar com os verdadeiros génios que já morreram há muito tempo. Falar com os mortos é, no fundo, um monólogo que nos livra da nefasta companhia dos vivos que povoam os espaços criativos da sociedade. A indigência cognitiva predominante é avessa à produção de grandes teorias, as quais não têm público. Perdidos nesta imensa mobilização da ignorância, somos obrigados a buscar a nossa própria salvação privada, em vez do compromisso com o projecto da esperança social. Fechamo-nos à sociedade da estupidez para lhe resistir: o nosso desejo é assistir ao seu colapso.

Os meus últimos textos apresentaram o materialismo aleatório como a filosofia mais adequada da mecânica quântica. No entanto, a interpretação de Copenhaga tem sido usada para liquidar o próprio materialismo. Não foi por mero acaso que referi Whitehead. Como se sabe, Whitehead é o autor de duas obras fundamentais, para já não referir Principia Mathematica escrita em colaboração com Russell: Science and the Modern World (1926) e Process and Reality (1929), nenhuma das quais foi traduzida em língua portuguesa. A sua filosofia é muito complexa e difícil: quem não tenha treino filosófico e científico não compreende o seu conteúdo. Aqui vou apenas elucidar brevemente a sua crítica do materialismo, a partir da sua obra de 1926. Na base do materialismo encontra-se a teoria de que existe a matéria ou de que só existe a matéria, sendo a matéria concebida como algo a que lhe é próprio a localização simples (simple location), uma simples localização no espaço e no tempo. Nesta concepção da matéria, o tempo é um acidente da matéria imutável e o instante (instant) carece de duração. Para Whitehead, a matéria tal como a concebe o materialismo é uma dupla-abstracção: o ente é concebido unicamente nas suas relações com outros entes e, destas relações, tomam-se em consideração apenas as relações espaço-temporais. O esquema materialista desenvolveu-se com Galileu e tornou-se em esquema dominante na ciência da natureza. Apesar disso, Whitehead considera-o falso pelo facto de negar a existência objectiva das qualidades secundárias, entrando assim em confronto ou desacordo com a experiência, e a responsabilidade humana. Whitehead vai mais longe quando afirma que o materialismo destrói o seu próprio fundamento, a indução, porque se as partículas materiais se encontram isoladas e apenas entrelaçadas mediante relações espaço-temporais, não é possível, com base no que ocorre num ente, concluir nada sobre o que está a ocorrer noutro ente. A crítica do materialismo realizada por Whitehead é extremamente abstracta: o que foi dito é suficiente para a apreender, mas o seu carácter abstracto exige uma clarificação. A filosofia é, para Whitehead, o esforço de racionalização completa da experiência humana. Aristóteles dizia que só há ciência do geral, o que significa - na linguagem de Whitehead - que não há conhecimento sem abstracções. No entanto, apesar do pensamento ser abstracto por necessidade, Whitehead está consciente de que as abstracções são perigosas quando conduzem à intolerância intelectual, a qual exclui da realidade todos os elementos que não se acomodam no esquema-sistema abstracto. A intolerância intelectual mais não é do que a propensão a considerar os seus princípios como outros tantos dogmas e a tomar as abstracções pela própria realidade. Whitehead deu-lhe o nome de falácia da concreção fora de lugar (fallacy of misplaced concretness), a qual ameaça liquidar a cultura superior.  A filosofia tem como tarefa principal criticar as abstracções, examinando as ideias que os cientistas aceitam sem objecção e comparando os diversos esquemas abstractos. Além disso, a filosofia constrói o seu próprio sistema teórico, a partir de intuições mais concretas que as intuições da ciência, tomando-as emprestadas aos artistas e aos génios religiosos e articulando-as com as suas próprias intuições. A necessidade da filosofia num mundo cada vez mais indigente resulta do facto dela submeter os sistemas abstractos fabricados por esses homens à vigilância da razão. A filosofia é racional não só no desempenho desta tarefa de exame crítico dos sistemas abstractos, mas também no seu método: a razão não pode continuar a capitular perante a ditadura dos factos. Ao denunciar esta capitulação da razão perante os factos, Whitehead defendeu o regresso de um verdadeiro racionalismo, o qual se fundamenta na intuição imediata da racionalidade do mundo. Ora, esta ideia de que o mundo se encontra dominado por leis lógicas e pela harmonia estética não pode ser mostrada indutivamente ou demonstrada dedutivamente, porque ela resulta de uma intuição directa, cuja crença (belief) correspondente torna possível a ciência e a filosofia. O racionalismo proposto por Whitehead já não é o racionalismo clássico: o fundamento das coisas deve ser procurado na natureza dos entes reais determinados, porque lá onde não há ente não há fundamento. O regresso do concreto - o contacto com o concreto - é um tema comum às filosofias de Whitehead e de Husserl, para as quais a experiência que nos revela a verdade não se reduz ao conhecimento sensível. A crítica materialista da fenomenologia, em especial da teoria da intuição, foi realizada por Georg Lukács. O carácter empirista da metafísica de Whitehead revela-se no facto de ser descritiva: o filósofo explica o abstracto e descreve o concreto.

Whitehead tem razão quando afirma que o materialismo perdeu actualidade quando surgiram a teoria ondulatória da luz, a teoria atómica, a teoria da conservação da energia e a teoria evolucionista. Todas estas teorias descobriram factos que rompem com os marcos do materialismo. Porém, o golpe fatal que "matou" o materialismo foi-lhe dado pela teoria quântica, que, segundo Whitehead, exige uma concepção orgânica da própria matéria. A filosofia do organismo elaborada por Whitehead que culmina com uma teoria de Deus teve eco em Portugal na filosofia criacionista de Leonardo Coimbra. Ela reconhece os seguintes factos da experiência: a mudança, a duração (endurance), a interpenetração (interfusion), o valor, o organismo e os objectos eternos. E o seu principal argumento contra o materialismo continua a ser mais filosófico do que "quântico": o materialismo é definido como a doutrina que atribui realidade a uma abstracção cómoda e até mesmo fecunda no domínio da ciência, mas o corpo - tal como foi concebido por Galileu e Descartes - não existe. O conceito fundamental da filosofia da natureza de Whitehead é o de acontecer ou acontecimento (event), o qual abarca todos os outros conceitos, tais como os de mudança, persistência, interpenetração, valores, organismos e objectos eternos. (Os matemáticos e os físicos tendem a ser muito platónicos: há um mundo abstracto - o mundo das ideias - que priva Deus da sua liberdade infinita!) O mundo não é composto de coisas isoladas umas das outras, mas de acontecimentos ou daquilo que ocorre ou acontece (happens). Um corte temporal do acontecer é um caso (occasion). Todo acontecer é uma captação e um organismo. Uma captação porque apreende em si o universo inteiro. E um organismo porque as suas partes não se encontram justapostas mas formam um todo e o todo determina as partes. Daqui resulta que cada acontecer é, como a mónada de Leibniz, um espelho do universo. O acontecer é a unidade sintética do universo como captado ou apreendido e o mundo uma comunidade orgânica gigantesca em que tudo é influído por tudo e em que não existe uma única relação externa. (Usei o termo "acontecer" em vez de "acontecimento" para evitar introduzir cristalizações ou imobilidades num universo dinâmico!) As noções de espaço e de tempo usadas por Whitehead para mostrar o erro do materialismo - o espaço como abstracção das relações de interpenetração recíproca dos aconteceres e o tempo como abstracção das durações sucessivas dos aconteceres - aproximam a sua filosofia da filosofia vitalista de Bergson, embora rejeite o seu anti-intelectualismo. O contributo de Whitehead para a clarificação da filosofia da teoria quântica foi reconhecido por David Bohm: «A noção de que a realidade deve ser entendida como processo é muito antiga, remontando pelo menos a Heráclito, segundo o qual tudo flui. Em tempos mais modernos, Whitehead foi o primeiro a dar a essa noção um desenvolvimento sistemático e extensivo». O ponto de partida de Whitehead e de Bohm é o mesmo, a noção de realidade como processo, mas as implicações daí derivadas são diferentes: David Bohm elaborou uma teoria da ordem implicada, segundo a qual qualquer elemento contém, dobrado dentro de si, a totalidade do universo que inclui tanto a matéria como a consciência. Bohm é um físico que se notabilizou graças à teoria das variáveis ocultas. A sua primeira teoria foi elaborada em 1951 com base em ideias expostas em 1926 por Louis de Broglie. Segundo esta teoria, existe no espaço, além dos campos de forças, um potencial quântico, que, ao contrário desses campos de forças, não transporta energia e não pode ser detectado directamente. As partículas sofrem-lhe os efeitos e, de certo modo, servem-se dele para comunicar entre si. Assim, por exemplo, nas experiências sobre o paradoxo EPR, as duas partículas que se afastam uma da outra estão permanentemente ligadas por esse potencial quântico: a medição que efectuamos numa delas modifica instantaneamente o potencial que exerce influência na outra, e daí a correlação que observamos entre os resultados das medições. O potencial quântico é a variável oculta não local da teoria de Bohm, a qual também explica a experiência de Aspect e a experiência das fendas de Young. No entanto, a teoria de Bohm deixa de servir quando as partículas, animadas de uma velocidade próxima da luz, colidem entre si e dão origem a outras. Para explicar este último fenómeno, é necessário fazer intervir a teoria da relatividade de Einstein. A teoria de Bohm não foi conciliada com essa teoria: a explicação deste fenómeno é dada pela teoria quântica relativista de campo. (Bohm abdicou dos gravitões!) Mais tarde, em 1980, Bohm elaborou a sua teoria da ordem implicada, de resto já em gestação no tal potencial quântico: a noção básica é a de que a realidade mais profunda não é o espírito, nem a matéria, mas uma realidade de dimensão superior que lhes serve de base comum e na qual prevalece a ordem implicada, onde deixam de ter validade as noções de espaço e de tempo. Esta teoria tem o mérito de propor um novo modelo de realidade que se opõe à visão do mundo como algo fragmentado: a noção do mundo como totalidade adquire assim um novo estatuto científico. (A teoria estocástica de Edward Nelson permite conciliar a teoria da relatividade e a noção de potencial quântico.) A noção de acontecimento como espelho do universo - de Whitehead - traz consigo a noção de totalidade expressiva, a de Leibniz e a de Hegel, com a qual Marx rompeu. Não admira que a filosofia de Whitehead implique como seu coroamento uma teoria de Deus, isto é, uma teologia, que retém alguma coisa do materialismo da necessidade e da teleologia. Há, porém, uma outra noção de totalidade que rejeita as noções de Origem, Sujeito e Fim: o materialismo aleatório - esboçado por Althusser - convida-nos a pensar o mundo como processo sem sujeito. O materialismo aleatório afirma-se na sua diferença radical conquistando as posições e as linhas de defesa do adversário: o que quer dizer que, para elucidar a realidade quântica, deve confrontar-se com as teorias filosóficas rivais, desalojá-las e tomar posse dos seus territórios. A teoria quântica não pode rejeitar o conceito de potencial quântico por ser a criação arbitrária de uma nova entidade física, ao mesmo tempo que «namora» com um nada ideológico que é Deus (no sentido religioso do termo). Mas o materialismo aleatório também deve abrir-se à estranheza radical do mundo quântico: abertura mental deve ser a atitude dos filósofos e dos cientistas que trabalham nas últimas fronteiras do conhecimento, nas quais não é possível traçar uma linha de demarcação entre filosofia e ciência. Afinal, a última palavra não pertence a ninguém.

J Francisco Saraiva de Sousa

quinta-feira, 12 de julho de 2012

Althusser, Materialismo Aleatório e Mecânica Quântica

Oporto: House Music
Finalmente, depois de uma busca que durava há mais de três anos, descobri duas obras já dadas como perdidas na minha biblioteca, uma das quais da autoria de Althusser. Nutro uma enorme admiração pelo pensamento filosófico de Althusser: considero que foi um dos poucos filósofos contem-porâneos que mais contribuiu para a elaboração de uma teoria da filosofia e de uma teoria da ideologia. A filosofia, sobretudo a filosofia académica em Portugal, tem estado entregue nas últimas décadas a pessoas profun-damente incompetentes e imbecis: o resultado disso é a morte da própria filosofia. Se Portugal tivesse sido dirigido por uma elite do poder esclarecida, não teria chegado à situação de bancarrota cultural - científica e filosófica - em que vive. Hoje sabemos que Portugal tem sido governado por uma classe dirigente medíocre e mafiosa, cujos membros usam a universidade para promover os seus próprios interesses: um político português que transita para o ensino superior é, por natureza, um anti-professor. A estupidez começou primeiro na política, para logo a seguir invadir o mundo dos negócios e o mundo universitário. Portugal é o reino da estupidez fraudulentamente diplomada pelas universidades particulares criadas para esse fim: diplomar a ralé portuguesa que usa os aparelhos partidários não para fomentar políticas de desenvolvimento nacional, mas para benefício próprio. O atraso estrutural de Portugal em todos os níveis sociais deve-se à mediocridade das suas elites e ao imobilismo social que geram para salvaguardar as suas posições e interesses. A indigência cognitiva dos portugueses contribui para a sua própria auto-exclusão do processo civilizacional. É por isso que não levo a sério os portugueses: conheço-os demasiado bem para saber que as suas palavras, os seus diplomas e as suas posições não têm valor. Portugal está mergulhado na mentira institucional. A teoria da ideologia de Althusser permite pensar esta mentira institucional, mas não é sobre ela que pretendo pensar: a minha atenção vai incidir sobre a "filosofia para o marxismo" proposta pelo último Althusser. Numa entrevista concedida a Fernanda Navarro, Althusser esboçou as linhas gerais do materialismo aleatório, encarando-o como a filosofia mais adequada para a teoria marxista da história. Este esboço não está isento de dificuldades teóricas, sobretudo quando tenta articular as anteriores posições teóricas tomadas por Althusser nesse campo de batalha que é a filosofia. O materialismo dos encontros aleatórios seduz-me, pela simples razão de ir ao encontro de duas "propriedades" da mecânica quântica: o indeterminismo e a não-localidade, as quais implicam uma certa globalidade. Althusser não fala uma única vez da mecânica quântica, embora o seu materialismo aleatório possa ser repensado como uma crítica da interpretação ortodoxa da mecânica quântica, a da Escola de Copenhaga. E o seu anti-humanismo teórico - o de Marx - pode ser repensado como a rejeição do Princípio Antrópico. Quem é que ainda não leu as patetices espiritualistas sobre o princípio antrópico cosmológico escritas por Errol E. Harris? É preferível alimentar a imaginação com a filosofia da natureza proposta por Rupert Sheldrake, a qual tem uma ligação metafórica com a teoria dos campos quânticos! Não é preciso falar directamente da mecânica quântica para contribuir para a elaboração da filosofia mais adequada para justificar os seus fundamentos. Steven Weinberg relata-nos um episódio muito instrutivo sobre a relações entre filosofia e ciência: «Há cerca de um ano, enquanto Philip Candelas (do departamento de física da Universidade do Texas) e eu esperávamos pelo elevador, a nossa conversa centrou-se num jovem teórico que fora bastante promissor enquanto estudante de doutoramento e que depois desaparecera. Perguntei a Phil o que teria interferido com a investigação do ex-estudante. Phil abanou a cabeça com tristeza e disse: "Ele tentou compreender a mecânica quântica"». Filosofia e ciência estão embarcadas no mesmo barco: se uma delas for derrubada ou afundada, a outra cai logo a seguir. A aliança entre filosofia e ciência é orgânica: não há filosofia sem ciência e não há ciência sem filosofia. Quando falamos do divórcio entre filosofia e física, devemos ter em conta que esse divórcio foi tematizado por uma filosofia que não representa toda a filosofia: trata-se, portanto, de um divórcio ideológico que desvirtua a cooperação entre pensamento filosófico e pensamento científico, para já não falar do pensamento religioso, que operou a grande revolução científica do século XVII, como demonstrou Alexandre Koyré. Apesar de criticar a "filosofia dos filósofos", Steven Weinberg reconhece que a mecânica quântica precisa da ajuda dos filósofos: «A ajuda de filósofos profissionais para tentarmos perceber o que estamos a fazer seria bem-vinda, mas, com ou sem a sua ajuda, continuaremos a fazê-lo». Os fundadores da mecânica quântica foram, eles próprios, filósofos: a filosofia não foi estranha ao nascimento da mecânica quântica, bastando ler os seus textos fundadores para detectar a sua presença. O facto de ser uma teoria ainda-não-concluída torna provavelmente a mecânica quântica pouco atractiva para os filósofos profissionais, embora um dos filósofos referidos por Étienne Klein - Jean-Paul Sartre - tenha referido o princípio de incerteza de Heisenberg para reforçar a sua filosofia (idealista) do sujeito, segundo Althusser, aceitando para todos os efeitos a interpretação da Escola de Copenhaga. Como é evidente, dado nunca ter abordado explicitamente este assunto, desconheço a posição de Althusser em relação à filosofia da mecânica quântica. No entanto, nas entrelinhas dos seus textos, detecto uma aproximação enigmática às posições tomadas por Karl Popper que odiava os membros da Escola de Copenhaga. Na linguagem de Althusser, podemos dizer que a interpretação da Escola de Copenhaga é dominada por uma tendência idealista, contra a qual se deve definir uma posição materialista. Althusser é um filósofo materialista, não um materialista mecanicista mas um materialista pluralista: o seu pluralismo tem algumas afinidades com o pluralismo de Popper, embora divirja dele no que respeita à teoria da história. O reducionismo de Weinberg - a sua atitude face à natureza - não teria seduzido Althusser. Mas, se tivesse lido outros filósofos além de Wittgenstein, Weinberg teria sido seduzido pelo materialismo aleatório de Althusser. Como tenho defendido nos últimos textos, a mecânica quântica só estará concluída quando despoletar uma imensa revolução filosófica. Os heróis do materialismo aleatório de Althusser - Demócrito, Leucipo, Epicuro e Lucrécio - devem ser substituídos pelos físicos das partículas elementares, se quisermos fazer desse novo materialismo a filosofia da mecânica quântica. Há, no entanto, um obstáculo a ser superado: a interpretação da Escola de Copenhaga é mais favorável à unificação da ciência do que a interpretação materialista ou realista. No entanto, em vez de desistir da tarefa de pensar os fundamentos da mecânica quântica, devemos recordar a engenhosa ilustração dada por Althusser para pensar as duas tendências da filosofia: o filósofo idealista é o homem que, ao tomar o comboio, conhece desde o início da sua viagem as estações de saída e de chegada, a origem e o fim do trajecto, enquanto o filósofo materialista toma sempre o comboio "em marcha", sem conhecer nem a origem nem o destino da sua trajectória. Com esta ilustração, acabo de tomar uma posição filosófica que me possibilita converter uma tese idealista numa tese materialista, sem abdicar da tarefa de unificar a ciência e a filosofia. Faço-o movido pelo interesse de alcançar um objectivo teórico: uma filosofia para o marxismo - ciência da história - é também uma filosofia para a mecânica quântica. A unificação foi sempre o grande sonho da razão.

Althusser é um filósofo surpreendente e, ao mesmo tempo, irritante: ele nunca levou até ao fim todas as suas brilhantes "intuições". A sua proposta de uma filosofia para o marxismo implica necessariamente uma revisão substancial da teoria da história e da sociedade de Marx, mais conhecida pela designação de materialismo histórico. Depois da aproximação que realizei entre a teoria da evolução de Darwin e a teoria da história de Marx, chegou a hora de a reformular em função dos conhecimentos fornecidos pela mecânica quântica. Embora não a mencione uma única vez, a mecânica quântica está presente na reflexão de Althusser, em especial nos conceitos de singularidade e de acção à distância. Se Carl Sagan conhecesse a teoria da história de Marx, não teria escrito alguns disparates perigosos sobre as viagens no espaço e no tempo, sobretudo as viagens ao passado que, na sua perspectiva alucinada, permitiriam transformar a história numa "ciência experimental", com o resultado fatal de abolir o nosso próprio mundo histórico, em nome das viagens interestelares. Não é a teoria da relatividade restrita de Einstein que aqui está em causa, como é evidente, a qual afasta do nosso alcance uma das maneiras de alcançar as estrelas, a possibilidade de construção de uma nave mais rápida que a luz - o limite de velocidade cósmico, mas a própria noção de história de Sagan. Estou consciente de que piso terrenos tanto mais perigosos quanto mais persigo o objectivo de unificação da ciência e da filosofia. Não devemos seguir o exemplo do jovem candidato a físico que, ao procurar entender a mecânica quântica, desistiu da própria ciência. O caminho da ciência, como já dizia Marx, é extremamente difícil e, para muitos de nós, penoso, no sentido de não ser valorizado pelos nossos contemporâneos envolvidos em práticas consumistas destrutivas. O nascimento da mecânica quântica - sistema de teorias no qual as partículas não têm posições e velocidades exactamente definidas mas que, em muitos aspectos, se comportam como ondas, e, de forma semelhante, as ondas de luz se comportam, em muitos aspectos, como partículas - e a sua ruptura epistemológica com a física newtoniana já foram descritos diversas vezes por centenas de cientistas e filósofos da ciência. Aqui convém apenas recordar que a mecânica quântica substituiu o determinismo da física clássica pelo indeterminismo da nova física: «A física do século XX desenvolveu-se a partir da anterior física "clássica", inspirada na obra de Isaac Newton nos finais do século XVII. Newton descobriu as leis fundamentais do movimento e da gravitação e aplicou-as com enorme sucesso à descrição detalhada do movimento dos planetas e da Lua. No século que se seguiu às descobertas de Newton, uma nova interpretação do universo surgiu: o determinismo. De acordo com o determinismo, o universo pode ser encarado como um grande relógio mecânico posto em movimento no início dos tempos pela mão divina e depois abandonado. Dos maiores aos mais pequenos movimentos, toda a criação material evolui de uma forma que pode ser prevista com precisão absoluta pelas leis de Newton. Nada é deixado ao acaso. O futuro é tão precisamente determinado pelo passado como o movimento de um relógio. Apesar de as nossas mentes humanas não poderem, na prática, seguir o movimento de todas as partes deste grande mecanismo e, assim, conhecer o futuro, podemos imaginar que a mente omnipotente de Deus pode fazê-lo e, portanto, ver todo o passado e todo o futuro à sua frente como uma sucessão de montanhas» (Heinz R. Pagels). Quando os físicos entraram em contacto com a estrutura atómica da matéria em finais do século XIX, a imagem determinista do mundo começou a ruir, porque as unidades atómicas da matéria se comportavam de uma forma aleatória que a física determinista não podia descrever. Um conjunto de novas descobertas experimentais permitiu a elaboração de uma nova física, a teoria quântica, entre 1900 e 1926, evidenciando-se a ruptura com a física newtoniana depois de 1926: «Em que consiste esta peculiaridade quântica? A física da nova física quântica contrasta fortemente com a antiga física newtoniana, que veio substituir. As leis de Newton trouxeram a ordem ao mundo visível dos objectos e acontecimentos a que estamos habituados, como a queda de pedras, o movimento dos planetas, o fluir dos rios e as marés. As características básicas da imagem newtoniana do mundo eram o seu determinismo - o relógio do universo está totalmente determinado do princípio ao fim dos tempos - e a suposição tácita de que as pedras e os planetas existem objectivamente mesmo quando nós não os observamos directamente; se lhes voltarmos as costas, eles permanecem no mesmo sítio. Na teoria quântica, estas interpretações aparentemente sensatas do mundo (como o determinismo e a objectividade) não podem ser conservadas. Apesar de o mundo quântico ser racionalmente compreensível, não pode ser visualizado como o mundo newtoniano. (...) A teoria quântica não só nega a ideia tradicional de objectividade, como também destruiu a imagem determinista do mundo. De acordo com a teoria quântica, alguns acontecimentos, como as transições electrónicas nos átomos, ocorrem ao acaso. Não existe nenhuma lei física que nos diga exactamente quando é que uma transição vai ocorrer; o máximo que podemos fazer é determinar a probabilidade de uma dada transição. As mais pequenas rodas do grande relógio, os átomos, não obedecem a leis deterministas. Aos inventores da teoria quântica - Niels Bohr, Louis de Broglie, Erwin Schrödinger, Wolfgang Pauli, Werner Heisenberg e Paul Dirac, para já não falar de Albert Einstein - deparara-se mais uma diferença radical em relação à imagem newtoniana do mundo - a realidade criada pelo observador. Eles descobriram que a teoria quântica implica que aquilo que um observador decide medir influencia o resultado final dessa medida. O que acontece no mundo quântico depende da forma como o observamos. O mundo não existe independentemente da nossa observação; aquilo que existe depende em parte do que decidimos observar - a realidade é parcialmente criada pelo observador. São estas propriedades do mundo quântico - a sua falta de objectividade, a sua indeterminação, a realidade criada pelo observador - que o distinguem do mundo habitual percebido pelos nossos sentidos. É a elas que me refiro como "peculiaridade quântica"» (Pagels). A revolução quântica - e relativista - colheu de surpresa o marxismo, cujo materialismo, sobretudo o de Engels e Lenine, ainda se movia no quadro da tradição racionalista do materialismo da necessidade e da teleologia. Althusser compreendeu isso quando tentou pensar uma filosofia para o marxismo. A minha reflexão move-se na proximidade das teorias de tudo: vejo o materialismo aleatório como a janela através da qual podemos vislumbrar uma teoria unificada, capaz de fornecer explicações para uma grande variedade de factos, com uma contribuição mínima de premissas para as conclusões.

A teoria do materialismo aleatório esboçada por Althusser é ainda uma teoria provisória que deve ser reformulada à luz dos novos conhecimentos fornecidos pela mecânica quântica, tendo como leituras de fundo as obras The Principles of Quantum Mechanics de P. A. M. Dirac (1947), Mathematical Foundations of Quantum Mechanics de J. von Newmann (1955) e The Many-Worlds Interpretation of Quantum Mechanics de B. S. De Witt & R. D. Graham, org. (1973), entre algumas outras obras clássicas. Ela foi esboçada como uma filosofia para o marxismo. Daí que o seu conceito central seja uma nova concepção da história dos homens. Althusser retoma Demócrito e os mundos de Epicuro para recordar a sua tese central: antes da formação do mundo, uma infinidade de átomos caia no vazio, em forma paralela. Esta tese central tem duas implicações fundamentais: 1) não havia absolutamente nada formado antes de haver mundo, e 2) todos os elementos do mundo existiam já isolados, desde toda a eternidade, antes mesmo de haver mundo. Esta tese central e as suas implicações devem ser reformuladas em função dos novos conhecimentos físicos adquiridos. Mas a sua implicação filosófica fundamental pode ser formulada deste modo: antes da formação do mundo não existia nenhuma Origem, Sentido, Causa, Razão ou Fim. O materialismo aleatório rejeita toda a teleologia porque não é um materialismo do sujeito, mas o materialismo de um processo sem sujeito que domina a ordem do seu desenvolvimento, sem um fim atribuível. Foi Epicuro quem defendeu a não-anterioridade do Sentido, opondo-se assim a Platão e a Aristóteles.  A seguir adveio o clinamen, isto é, um desvio que ocorre sem se saber como, nem quando nem onde. O clinamen desencadeia o desvio de um átomo na sua queda no vazio e provoca um encontro com outro átomo. O mundo nasceu de uma sequência durável de encontros, mais precisamente de um desvio aleatório e não da Razão ou da Causa Primeira. Mas o encontro não cria nada por si mesmo: o encontro dá realidade aos próprios átomos que, sem ele e o desvio, não seriam mais do que elementos abstractos e isolados, sem consistência nem existência. Só depois de formado o mundo é que se instaura o reino da razão, da necessidade e do sentido. O que interessa no materialismo aleatório não é tanto a descrição que Epicuro deu dele, a qual deve ser revista, mas o facto dele possibilitar pensar um materialismo de um processo sem sujeito. Ora, esta noção encontra-se, de algum modo, incorporada na proposta sem fronteira de Hartle-Hawking, segundo a qual o espaço e o tempo imaginário formam, em conjunto, uma superfície finita em extensão mas sem fronteiras ou limites. Assim, o espaço-tempo seria como a superfície da Terra, mas com mais duas dimensões. Ora, ao defender que o universo não tinha fronteiras no começo, sendo um todo auto-contido, Hawking descarta-se de Deus porque, num tal universo, Ele não é necessário para dar início ao universo, o qual existe por si mesmo, sem que Deus o tivesse criado. Em vez de se entregar à tarefa de pensar a filosofia da mecânica quântica, Althusser prefere pensar a recusa heideggeriana da questão da Origem, Causa e Fim do mundo como um movimento contemporâneo análogo ao atomismo e ao epicurismo: Heidegger não só recusou a questão da origem, como também - sob inspiração de Epicuro - elaborou uma filosofia que implica uma visão do mundo que lhe restitui uma espécie de contingência transcendental do mundo, para o qual somos lançados, bem como do sentido do mundo que nos orienta para a abertura ao Ser, mais além do qual não há nada para procurar nem nada para pensar. A sua expressão "es gibt" - mundo - significa que o mundo é um "dom" - uma dádiva - para nós mortais. Porém, Althusser vai mais longe quando afirma que, em vez de pensar a contingência como modalidade ou excepção da necessidade, devemos pensar a necessidade como o devir-necessário do encontro dos contingentes. Deste modo, Althusser reanima a tradição materialista esquecida pela história da filosofia, cujas figuras mais importantes foram Demócrito, Epicuro, Maquiavel, Hobbes, Rousseau (2º. Discurso), Marx e Heidegger. Para reactivar este materialismo aleatório que elaborou categoriais tais como, por exemplo, vazio, limite, margem, ausência de centro, deslocamento do centro para a margem (e vice-versa) e liberdade, é preciso rejeitar os materialismos registados pela história da filosofia, incluindo aquele que tem sido atribuído a Marx, Engels e Lenine, na medida em que eles pertencem à tradição racionalista do materialismo: o materialismo aleatório opõe-se, portanto, ao materialismo da necessidade e da teleologia, uma forma disfarçada de idealismo. A proposta de Althusser é, do ponto de vista filosófico, extremamente sedutora, na medida em que nos permite pensar a história da filosofia como esquecimento do materialismo aleatório, canalizando o seu impulso na direcção de um idealismo da liberdade. Sem percorrer este longo e espinhoso caminho não podemos avaliar a sua produtividade, mas de uma coisa podemos estar certos: o desvio idealista operado pela tradição filosófica dificulta a tarefa de elucidar os fundamentos da mecânica quântica. No entanto, ao recusar toda a origem, Althusser é levado a pensar uma filosofia do vazio. Esta filosofia afirma que o vazio preexiste aos átomos que caem sobre ele, ao mesmo tempo que postula um vazio filosófico: em vez de partir dos famosos "problemas filosóficos", a filosofia do vazio começa por os eliminar para partir do nada. Ou mais precisamente: a filosofia do vazio afirma o primado do nada sobre a forma, o primado da ausência sobre a presença. O nada funciona aqui como o nada de objecto, que permite a Althusser retomar a sua anterior tese de que a filosofia não tem objecto, no sentido em que a ciência tem um objecto. Deste modo, Althusser radicaliza a crítica de toda a filosofia (idealista) na sua pretensão de dizer a Verdade sobre as coisas. O carácter fragmentário das declarações de Althusser não nos permite ir mais longe. O que posso dizer é que esta noção de vazio primordial requer uma reformulação à luz da mecânica quântica, na medida em que parece parasitar uma noção ultrapassada de espaço. A teoria dos mundos de Epicuro já não pode constituir o ponto de referência para a elaboração de um materialismo aleatório. É certo que Althusser vai mais além de Epicuro quando radicaliza e actualiza o seu pensamento, de modo a convertê-lo em crítica radical de toda a tradição idealista, mas, sem disso se aperceber, permanece prisioneiro de noções ultrapassadas. O que Althusser diz a seguir deixa-me perplexo: o materialismo aleatório afirma o primado da materialidade sobre tudo, incluindo o aleatório. A formulação abstracta deste primado não nos permite avaliar a sua produtividade, sem termos realizado análises prévias e pormenorizadas sobre o seu alcance real. Penso que Althusser está a pensar em Aristóteles, quando este diz que a matéria se diz de muitas maneiras. O primado da materialidade não se reduz ao primado da matéria nua; ele é generalizado, de modo a incluir o primado do dispositivo experimental, a materialidade de um gesto ou mesmo a materialidade de um traço - da escritura - que, segundo Derrida, se encontra no fonema emitido por uma voz que fala. Althusser é peremptório quando afirma que o primado da materialidade é universal. Ora, o carácter universal do primado da materialidade permite-lhe reformular a tese marxista do primado da infra-estrutura económica, cuja universalidade depende das forças produtivas: «Ça dépend, palavra aleatória e não dialéctica», usada por Marx na Contribuição à Crítica da Economia Política. Sendo assim, tudo pode ser determinante em última instância, tudo pode dominar, e, na superestrutura, o que é determinante é também a sua materialidade: a teoria da ideologia de Althusser mostrou a materialidade da superestrutura e da ideologia, permitindo pensar o deslocamento da materialidade - sempre determinante em última instância - em cada conjuntura concreta. Haverá ainda lugar para a dialéctica num tal materialismo aleatório? Ou será ele o substituto real do materialismo dialéctico? A dialéctica - hegeliana ou marxista, idealista ou materialista - é mais "congruente" com a interpretação da Escola de Copenhaga do que com uma interpretação materialista da mecânica quântica. A noção de objecto é ainda uma categoria dialéctica: o materialismo aleatório - rigorosamente pensado - é levado a abandonar essa noção de objecto e o par a que pertence (sujeito-objecto). Estaremos nós preparados para romper completamente com o idealismo, para pensar a tradição subterrânea da filosofia? Quem sabe se ao pensarmos esta tradição esquecida pela história da filosofia, não estaremos a dar os primeiros passos para revelar a energia e a matéria escuras do universo?

O processo de Bolonha, esta terrível invenção de eurocratas destituídos de inteligência, está a bloquear o crescimento do conhecimento científico: as orgias que promove vão no sentido de liquidar a persistência e a continuidade de uma linha forte de formação e de investigação. Em Portugal, o processo de Bolonha tem sido usado para diplomar analfabetos que pertencem à rede do poder corrompido. De certo modo, Bolonha é isso mesmo: a possibilidade de diplomar os "burros". Com a sua política de empobrecimento generalizado, o governo português vai levar Bolonha ao seu limite extremo: a liquidação da formação e da investigação. Hoje compreendemos a razão de ser da insensibilidade dos políticos portugueses em relação ao conhecimento: a falsidade das suas qualificações leva-os a abolir a cultura do mérito em todas as esferas da sociedade portuguesa. As classes dirigentes portuguesas são os carrascos de Portugal. Mas, afinal, o que é que o recente caso polémico da pseudo-licenciatura de Miguel Relvas - ministro do actual governo português - tem a ver com a mecânica quântica? Pergunta desconcertante que me permite introduzir a história nesta reflexão. Althusser não pensou a filosofia da mecânica quântica: em vez disso, esboçou uma filosofia para o marxismo, ao mesmo tempo que reformulou os princípios da ciência da história fundada por Marx. Graças à teoria do Big Bang, a história deixou de ser uma noção estranha ao universo dos físicos que se dedicam à cosmologia, a ciência do cosmos considerado no seu conjunto e na sua evolução. Estou convencido de que é possível aproximar as duas noções de história. E, além disso, penso que Althusser abriu esse caminho. A teoria althusseriana da história é demasiado complexa para ser aqui exposta. Dela retenho apenas a sua derradeira versão que introduzo aqui formulando uma tese: Há uma coexistência de histórias que se sobredeterminam. A formulação deste tese permite desde logo fazer a aproximação entre a história do cosmos e a história dos homens, e, no entanto, ela parece rejeitar a unificação teórica desses dois conceitos. Althusser começa por afirmar que há dois tipos de histórias: a História dos historiadores e dos outros cientistas sociais, e a História no presente, que a língua alemã designa com a palavra Geschichte. Esta distinção introduz o escândalo no seio da teoria althusseriana da história, ao ponto de nos levar a duvidar da própria fundação da ciência da história por Marx. Mas o escândalo torna-se aparente quando compreendemos o sentido da manobra que opera esta distinção entre duas histórias: abrir o caminho a um novo projecto político. Tudo se passa como se, para realizar a unificação da história do cosmos e da história dos homens, fossemos obrigados a desenvolver uma teoria diferencial da história humana, de modo a possibilitar um novo pensamento político. Ou dito em termos provocantes: a unificação é, em última instância, política. A introdução da política na mecânica quântica é uma proposta sedutora: afinal, o que é a filosofia a não ser a política na ciência? Nutro uma admiração reservada pela interpretação da mecânica quântica dada por Fritjof Capra: "reservada" porque não é necessário recorrer ao misticismo oriental - hinduísmo, budismo, pensamento chinês, taoísmo e zen - para compreender a novidade radical da mecânica quântica e da sua visão do mundo. Tal como a Filosofia, a mecânica quântica é uma invenção ocidental que só pode ser compreendida nos termos da sua cultura filosófica. Culturas que não chegaram a descobrir a filosofia e a ciência não podem ser convocadas para as interpretar. Até mesmo uma interpretação em termos de misticismo ocidental seria confrontada com o facto deste só ter sido possível a partir de grandes avanços científicos e filosóficos: misticismo ocidental e misticismo oriental não pertencem à mesma família. Porém, a chave que nos permite clarificar os fundamentos da mecânica quântica não se encontra no misticismo, mas na tradição subterrânea do materialismo ocidental, aquela que não foi registada pela história da filosofia. Althusser afirma que os historiadores podem falar de "leis" da História porque consideram apenas o facto consumado, o da história passada. Assim, nesta perspectiva, a história apresenta-se como um objecto fixo e estável, cujas determinações podem ser estudadas como as de um objecto físico, um objecto acontecido, morto. A fonte da ideologia espontânea dos historiadores encontra-se nesta concepção da história consumada, da qual sacam estatísticas determinantes e deterministas, sem levar em conta a história viva. A língua alemã dispõe de uma palavra para designar a história viva: Geschichte. A história no presente é determinada em grande parte pelo passado já acontecido, mas só em parte, porque a história presente está aberta também a um futuro incerto, imprevisto, ainda não-consumado e, portanto, aleatório. A história presente só obedece a uma "constante" que não é uma lei: a constante da luta de classes. Marx nunca utilizou o termo "constante": ele utilizou a expressão "lei tendencial". Uma tendência não possui a forma ou a figura de uma lei linear, na medida em que pode bifurcar-se sob o efeito de um encontro com outra tendência e assim até ao infinito. Em cada cruzamento de caminhos, a tendência pode tomar uma via imprevisível, o que indica que a história presente é sempre a história de uma conjuntura singular e aleatória. Barry Hindess & Paul Q. Hirst levaram esta concepção até ao ponto de libertar o marxismo da história dos historiadores, lembrando que a história é um texto potencialmente infinito, voltado sobre si mesmo e constantemente a ser reescrito. O conceito que se destaca desta nova concepção da história é o de conjuntura singular e aleatória. Uma conjuntura é uma combinação ou encontro aleatório de elementos, em parte existentes mas também imprevisíveis. Assim, toda a conjuntura é um caso singular como todas as individualidades históricas e como tudo o que existe. Esta concepção da história presente permite a Althusser criticar a interpretação do marxismo apresentada por Karl Popper: os objectos do marxismo não são do tipo da história consumada, mas da história viva que se faz e surge das tendências aleatórias, cujas formas são estranhas ao determinismo das leis físicas clássicas. O marxismo precisa do materialismo aleatório para pensar a abertura do mundo ao acontecimento, à imaginação inaudita e à prática viva. Como já tinha mostrado num outro estudo preparatório, há uma forte afinidade entre a filosofia de Althusser e a filosofia do primeiro Wittgenstein. Para confirmar a abertura ao acontecimento, Althusser cita a célebre frase que abre o Tratado Lógico-Filosófico de Wittgenstein: «O mundo é tudo aquilo que acontece» ou, segundo a tradução de Russell, «O mundo é tudo o que é o caso». Ora, a tese de que o mundo não é mais do que casos, situações e indivíduos singulares totalmente distintos entre si, é a tese fundamental do nominalismo. No esboço da história do materialismo apresentado por Marx n'A Sagrada Família, o nominalismo é visto como «a primeira expressão do materialismo». Mas Althusser vai mais longe do que Marx quando afirma que o nominalismo é já o materialismo, que, segundo certos estudos etnográficos, reina nas sociedades primitivas, tanto ao nível do pensamento como ao nível da realidade e da prática social. Para os membros destas sociedades primitivas, só existem seres singulares, cada um dos quais é designado por uma palavra singular: o "aqui e agora" não pode ser nomeado por uma palavra mas simplesmente indicado ou assinalado com o dedo. O acto de indicar com o dedo, em vez de recorrer à palavra, significa o primado do gesto sobre a palavra, do traço material sobre o signo. Embora tenha sido desenvolvido de forma sistemática no decorrer da Idade Média por Duns Escoto e Guilherme Ockham, com o primeiro a interrogar-se «se a matéria não poderia pensar», o nominalismo ocidental recua até Homero, Hesíodo, os sofistas e os atomistas (Demócrito e Epicuro). Infelizmente, Marx não chegou a elaborar uma teoria da história, no sentido do acontecimento histórico imprevisto, único e aleatório: o único filósofo que se aproximou da história política no presente foi Maquiavel. O materialismo aleatório força o materialismo histórico a abrir-se ao mundo do acontecimento, ao mesmo tempo que o convida a pensar uma nova prática política. A mecânica quântica obriga o materialismo histórico a operar uma viragem quântica. E, ao levar a bom-porto esta viragem, desenvolvendo uma nova teoria da história, o marxismo estará a contribuir para a elaboração activa de uma teoria unificada e global. Os físicos têm dialogado com filósofos menores, cujas obras geraram pequenas tempestades à superfície da água sem quebrar o próprio copo. Marx revolucionou tanto a filosofia como a ciência da história. Não consigo imaginar uma teoria unificada que não integre a sua teoria da história reformulada à luz do materialismo aleatório. Vejamos esta breve descrição do mundo quântico dada por Fritjof Capra: «A teoria quântica derrubou os conceitos clássicos de objectos sólidos e de leis da natureza estritamente deterministas. No nível subatómico, os objectos materiais sólidos da Física clássica dissolvem-se em padrões de probabilidade semelhantes a ondas; estes padrões não representam, em última instância, probabilidades de coisas mas sim probabilidades de interconexões. Uma análise cuidadosa do processo de observação na Física atómica tem demonstrado que as partículas subatómicas não possuem significado enquanto entidades isoladas, só podendo ser compreendidas como interconexões entre a preparação de uma experiência e a sua posterior medição. A teoria quântica revela, assim, uma unidade básica no universo. Mostra-nos que não podemos decompor o mundo em unidades menores dotadas de existência independente. À medida que penetramos na matéria, a natureza não nos mostra quaisquer "blocos básicos de construção" isolados. Ao contrário, surge perante nós como uma complicada teia de relações entre as diversas partes do todo. Estas relações incluem sempre o observador, de maneira essencial. O observador humano constitui o elo final na cadeia de processos de observação e as propriedades de qualquer objecto atómico só podem ser compreendidas em termos de interacção do objecto com o observador. Por outras palavras, o ideal clássico de uma descrição objectiva da natureza perde a sua validade. A partição cartesiana entre o eu e o mundo, entre o observador e o observado, não pode ser efectuada quando lidamos com a matéria atómica. Na Física atómica, jamais podemos falar sobre a natureza sem falar, ao mesmo tempo, sobre nós próprios». Não há nada nesta descrição que não possa ser traduzido numa linguagem marxista clássica. A tese de doutoramento de Marx foi sobre os sistemas de filosofia da natureza de Demócrito e de Epicuro. Althusser foi, no entanto, mais longe quando adoptou a linguagem quântica - ou atomista: a de Epicuro - para pensar a novidade radical da descoberta científica de Marx. Se Fritjof Capra conhecesse a teoria de Marx ou mesmo a dialéctica de Hegel, não teria sido tão acrítico na recepção das ideias orientais: a interacção do objecto com o observador implica a ideia de um universo dinâmico num sentido não "intuído" pelo misticismo oriental. A leitura do livro de Capra é instrutiva pelo facto de mostrar que, lá onde predomina o misticismo oriental, a mecânica quântica está ausente.

J Francisco Saraiva de Sousa

quarta-feira, 11 de julho de 2012

O Afundamento da Europa


Estamos a assistir ao afundamento da Europa e do mundo ocidental: o ciclo civilizacional do ocidente completou-se e o fim é o seu colapso.

terça-feira, 10 de julho de 2012

Prós e Contras: Quem somos nós?

Porto: Funicular dos Guindais
Não sabia que Prós e Contras ia debater hoje (9 de Julho) a descoberta da partícula de Higgs: vi muito rapidamente o debate, no qual participaram três "filósofos" e três físicos. A surpresa surgiu quando vi que dois dos três supostos filósofos eram homens da Igreja Católica, um (Alfredo Dinis) mais inquisitorial do que o outro (Bruno Nobre). Restou apenas uma professora de "filosofia da ciência" que dá por nome Olga Pombo, a qual não soube estar à altura da filosofia, até porque muitas das questões que colocou já têm uma explicação consensual. Com estes falsos representantes, a filosofia ficou sem direito à palavra neste debate moderado por Fátima Campos Ferreira, embora Alfredo Dinis tenha exibido a arrogância de falar em nome da filosofia que identifica com a metafísica. Por momentos, voltámos à Idade Média, como se os homens religiosos tivessem o direito de ditar as regras do jogo científico. Alfredo Dinis exibiu um livro de um físico americano que dispensa Deus para explicar a ordem do mundo. Pelo que disse sobre o livro, vi logo que ele não o tinha lido ou, se o leu, não o compreendeu: Alfredo Dinis é daquele tipo de homens anti-democráticos e maldosos que resolvem tudo dizendo que foi Deus que criou o mundo a partir do nada. E o que é pior: sem corar de vergonha. (Defendeu uma noção de nada que atribuiu à filosofia, como se todas as filosofias partilhassem essa mesma identidade nada = vazio. O falso filósofo desconhece as noções de nada em Heidegger, Sartre e Althusser. O nada em física tem um sentido muito peculiar: o nada de Deus criador, por exemplo. Vazio é uma outra noção. Pascal, filósofo cristão, sabia distinguir entre estas duas noções.) A questão de Deus já não constitui nenhum enigma, sobretudo depois da descoberta científica da electricidade que, ao iluminar a noite, dissipou o medo: o Deus dos monoteísmos não corresponde a nada, ou melhor, é um nada ideológico usado para garantir a dominação do homem pelo homem. A ciência tem uma vantagem em relação à religião: ela pode explicar os comportamentos e as crenças religiosas, sem ser por sua vez explicada pela religião. A religião não explica nada: a teologia é aquela forma bizarra de conhecimento que tem por objecto o nada, ou seja, não tem objecto. Se no imenso universo, incluindo a matéria e a energia escuras, há alguma coisa que mereça o nome de Deus, essa coisa não tem nada a ver com a concepção que estes homens obscuros têm de Deus. Explicar algum acontecimento através de Deus equivale a não explicar absolutamente nada: o Deus dos monoteísmos não explica nada. É por isso que as Igrejas Cristãs foram obrigadas - após longos períodos de lutas e de guerras sangrentas - a capitular perante a filosofia e a ciência, refugiando-se na esfera do simbólico, a esfera do nada de conhecimento. Se Olga Pombo conhecesse a obra de Max Weber, pelo menos, teria evitado improvisar - de forma extremamente leviana e voluntarista-opinativa - sobre a relação entre a religião e a ciência. É deveras estranho que uma "filósofa" (sic) desconheça o nascimento da filosofia na cidade-Estado grega e a luta que travou contra a tradição dogmática. Respeitar as crenças religiosas de pessoas que precisam de ter fé para viver é uma coisa, aceitá-las como parceiros de diálogo em matéria de ciência e de filosofia é outra: a sua fé não traz mais-valia ontológica ao nosso mundo; pelo contrário, privam-no da diferença e da liberdade. Não há à face da Terra nenhum país religioso que tenha avançado para formas mais democráticas de convívio humano ou mesmo de bem-estar material: o monoteísmo é, por essência, totalitário. Ele só permite a diferença lá onde o Estado se afastou da Igreja ou da religião, fazendo delas assuntos privados: o catolicismo entregue a si mesmo é tão talibã quanto o islão. Não há diferença qualitativa entre os três monoteísmos que, ao longo da história, têm levado os homens a derramar sangue, em nome de um nada ideológico que, afinal, é o bezerro de ouro das classes dominantes.

Compreendo a cautela exibida pelos três físicos - João Varela (CERN), Gaspar Barreiro e Carlos Fiolhais - quando falaram sobre o possível impacto da descoberta da partícula de Higgs sobre a física, mas o respeito pelas práticas e crenças religiosas tem limites: a hegemonia das trevas é uma ameaça presente no mundo contemporâneo. A comunidade científica deve estar sempre atenta e pronta a lutar contra os nadas ideológicos das religiões. (Gaspar Barreiro e Carlos Fiolhais lembraram a terrível hegemonia da religião durante a Idade Média!) Não há diálogo possível com a religião. No passado, temendo pela sua vida, os filósofos foram obrigados a "dialogar" com os "queimadores de corpos", mas esse diálogo visava minar por dentro a própria estrutura do pensamento cristão. Ao abraçar a filosofia grega, o cristianismo preparou a sua própria morte: a filosofia nunca foi escrava da teologia. As controvérsias teológicas referidas por Alfredo Dinis tinham um sentido: liquidar subtilmente os nadas teológicos. Ernst Bloch escreveu uma história do materialismo que lança luz sobre o processo de metamorfose subversiva das noções teológicas operado pelos grandes filósofos no seio da própria teologia: o Deus dos filósofos não é susceptível de ser adorado; ele é um conceito-limite que permite pensar a finitude radical do homem. No ocidente, o vector que orientou o pensamento filosófico foi o da expulsão de Deus, desse nada ideológico que não explica absolutamente nada. É com essa grande tradição materialista que a ciência se identifica: a função "política" do materialismo aleatório é impedir a exploração ideológica da ciência, em termos que não são os seus. O fosso entre ciência e religião é intransponível: um cientista que professe uma crença religiosa é uma consciência dilacerada e, profundamente, infeliz, porque lá no fundo da sua consciência ele sabe que o Deus dos monoteísmos é um nada ideológico. A luta contra a religião foi filosófica muito antes de ser também científica. Se a filosofia herdou alguma coisa do cristianismo, essa coisa é a exclusividade: a aliança filosofia-ciência não tolera a presença de um possível rival. Em Portugal, sabemos que esse rival adiou o desenvolvimento do país: o catolicismo predomina lá onde não houve verdadeiro desenvolvimento cultural e económico. Os três físicos presentes no debate mostraram saber isso e muito mais, embora pudessem ter ido mais longe e defender aquilo a que chamo a indiferença teológica como procedimento da ciência. Depois da filosofia e de outras ciências - incluindo a sociobiologia - terem elaborado uma teoria da religião, perspectivada no contexto da estrutura global da sociedade e da sua história, não há mais nada a dizer sobre Deus. Deus evaporou-se no seu próprio nada: a filosofia e a ciência não precisam dele para explicar a ordem do mundo. A presença religiosa distorceu sistematicamente o debate e a "filósofa" nem sequer foi capaz de colocar as perguntas correctas: a descoberta do bosão de Higgs, o qual dá massa às partículas, valida os modelos teóricos existentes das partículas, em especial o modelo-padrão que previu em 1964 a sua existência. A questão que este debate deixou em suspenso é a de saber se esta descoberta poderá vir a desencadear uma mudança de paradigmas. Desconhecemos 96% da matéria que constitui o universo: a matéria escura e a energia escura. O bosão-campo de Higgs poderá abrir uma janela para desvendar esse universo escuro

Anexo: Alguns amigos têm criticado a escassez de informação sobre a partícula de Higgs. É verdade que não tem sido dada a informação suficiente sobre essa partícula, mas não me cabe a mim realizar o seu historial, pelo menos neste comentário. Apesar do seu formalismo matemático, a mecânica quântica é, com algum esforço, acessível. Há obras de divulgação científica que clarificam, em termos simples, a sua estrutura teórica. Steven Weinberg dedicou algumas páginas da sua obra a "descrever" a partícula de Higgs. A minha preocupação - aqui e nos textos anteriores - é outra... e confesso que não tenho paciência para as ordinarices portuguesas. Estou cada vez mais convencido de que os portugueses são efectivamente burros malvados: a nova ideologia nacional dos diplomados e dos génios que não se revelam é uma praga que conduz o país ao colapso total. A teoria do nada ideológico que esbocei aqui não foi compreendida por alguns destes "génios" com cérebro do tamanho de uma pevide. Mas ela não foi elaborada para ser compreendida por cérebros deprimidos: o meu público-alvo é outro. O reconhecimento ocorre entre pares e não entre pessoas afastadas umas das outras pelo abismo intransponível. Há apenas uma ideia que, embora implícita, requer um esclarecimento: os nadas ideológicos produzem efeitos reais - isto é, materiais - nas práticas sociais e nas instituições em que se inscrevem. Afinal, o que adianta dialogar com um burreco que, mesmo na presença da filosofia, não a reconhece? Um burreco deste calibre devia ter vergonha na cara e lançar-se ao rio Tejo! Imagine-se este cenário catastrófico: um estranho vírus elimina toda a humanidade, poupando apenas a vida de um desses génios ocultos portugueses. Um génio cósmico isola-o da civilização material, algures numa nave espacial, e atribui-lhe a missão de refazer a cultura científica e filosófica da humanidade, a partir daquilo que assimilou enquanto teve acesso aos seus arquivos. Conseguem imaginar as patetices que esse génio ultra-diplomado na escola portuguesa da mentira iria dizer e escrever? Furioso com a estupidez brutal do português, o génio cósmico condenou-o ao suplício eterno.

J Francisco Saraiva de Sousa

sexta-feira, 6 de julho de 2012

Física e Filosofia

Porto: Ponte do Freixo
«O século que agora se aproxima do fim viu na física uma expansão fantástica das fronteiras do conhecimento científico. As teorias da relatividade restrita e geral de Einstein modificaram para sempre a nossa visão do espaço, tempo e gravitação. Numa cisão ainda mais radical com o passado, a mecânica quântica transformou a própria linguagem que utilizamos para descrevermos a Natureza: em vez de partículas com posições e velocidades definidas, aprendemos a falar de funções de onda e probabilidades. Da fusão da relatividade com a mecânica quântica surgiu uma nova visão do mundo, na qual a matéria perdeu o seu papel central. Este papel foi usurpado por princípios de simetria, alguns deles invisíveis no estado actual do universo. Sobre estes fundamentos construímos uma teoria bem sucedida do electromagnetismo e das interacções nucleares fraca e forte entre partículas elementares. Muitas vezes sentimo-nos como Siegfried, que, depois de ter provado o sangue do dragão, descobriu, para sua surpresa, que entendia a linguagem dos pássaros». (Steven Weinberg)

Ontem, a propósito da descoberta da partícula de Higgs, fui levado a reviver os meus tempos de estudante universitário quando estudava física no curso de medicina. Antes disso já tinha realizado um estudo sobre cosmologia intitulado A Vertigem de Empédocles. Tenho muitas obras de física, incluindo os manuais que utilizei para a estudar. Felizmente, como não sou "político profissional", não tive as facilidades de que estas criaturas das trevas desfrutam para obter pseudo-diplomas, ao abrigo dessa terrível burla que é o processo de Bolonha. Embora não me sentisse especialmente atraído pelo programa demasiado extenso de física, tive de a estudar, aprofundando mais a física atómica do que a mecânica, o calor, a acústica, a electricidade, o magnetismo e a óptica. A mecânica quântica atraia-me mais do que os modelos mecânicos clássicos utilizados na fisiologia. O formalismo matemático da mecânica quântica assusta qualquer mortal e, como não estudei numa universidade particular, a Universidade Lusófona por exemplo, permeável aos jogos corruptos do poder estabelecido depois do 25 de Abril, não tive outra saída a não ser mergulhar de cabeça nesse formalismo matemático. O meu professor de física "massacrou" os meus neurónios com a equação de Schrödinger durante todo o ano lectivo. Confesso que a meio do ano já não suportava ouvir o nome de Schrödinger, que também invadiu as aulas de fisiologia e de biologia molecular. Sempre fui um aluno "massacrado" pelos professores: na física era "massacrado" com a função de onda, na fisiologia e biologia molecular com a natureza e origem da vida, e até na anatomia do sistema nervoso com as experiências do cérebro dividido. Utilizei o termo "massacrado" entre aspas porque, na verdade, o conhecimento não me massacra; pelo contrário, alimenta-me. Este "massacre" mostra até que ponto os cientistas precisam da filosofia: eu era convocado nas aulas e nos gabinetes para pensar as implicações filosóficas das grandes descobertas científicas. Infelizmente, na altura, dominava mais a parte científica do que a parte filosófica dessas descobertas científicas. A minha posição tomada nesse período pode ser resumida deste modo: precisamos de avançar mais no terreno científico antes de tentar solucionar problemas filosóficos. De certo modo, esta é a minha filosofia espontânea de cientista: primeiro, fazer ciência de boa qualidade e, depois, elaborar a filosofia mais adequada a essa ciência. (Doravante, ser "político profissional" significa ser burro diplomado: a experiência profissional que lhes dá - aos políticos profissionais - um diploma é, ela própria, uma fraude!)

Althusser defendeu a seguinte tese: as revoluções científicas - entendidas como rupturas epistemológicas - tendem a preceder as revoluções filosóficas. Esta tese não se aplica ao caso de Marx: a revolução filosófica ocorreu antes da abertura do continente-História à ciência. A tese de Althusser é demasiado complexa para ser aqui discutida em pormenor: o que interessa destacar é que, para Althusser, não podemos falar de rupturas na filosofia, porque nela «nada é radicalmente novo» e «nada é definitivamente resolvido». Em filosofia nada é radicalmente novo porque teorias antigas, retomadas e deslocadas, sobrevivem e revivem numa filosofia nova. Em filosofia nada é definitivamente resolvido porque há sempre o vaivém das tendências antagonistas, as viragens imprevistas, e as mais antigas filosofias estão sempre prontas a voltar ao assalto, disfarçadas sob formas novas, até mesmo sob formas mais revolucionárias. Ora, isso acontece porque a filosofia é, em última análise, luta de classes na teoria. Esta formulação da filosofia choca os ouvidos dos filósofos, mas ela constitui a realidade da filosofia. O que torna a filosofia tão difícil à compreensão dos físicos é precisamente o facto dela ser luta de classes na teoria. Ou por outras palavras: os físicos ainda são demasiado platónicos para compreender que a filosofia não tem idade, na medida em que as suas revoluções estão sempre expostas a ataques, a recuos e retrocessos, e até ao risco da contra-revolução, como sucedeu nas últimas décadas com o triunfo do neoliberalismo sobre o marxismo. A ciência é, actualmente, alvo do ataque de certas filosofias irracionais que parecem derivar de Marx. Convém dizer claramente que Marx nunca definiu a ciência como ideologia. A teoria da ideologia de Marx, ela própria uma descoberta científica, é genial. Quando generalizam o sentido da ideologia, fazendo dela um fenómeno ubíquo, os filósofos da desconstrução aniquiladora têm um único alvo a abater: a própria teoria da ideologia de Marx e a sua defesa da ciência. Mas nós sabemos, pelo menos depois da crise financeira de 2007, que a crítica da ciência é, ela própria, ideológica: as filosofias que criticam a ciência estão contaminadas pela ideologia mais reaccionária produzida pela classe dominante. Os físicos sabem que precisam da ajuda dos filósofos esclarecidos para evitar os erros destes filósofos da desconstrução. A grande linha de demarcação não é tanto entre ciência e metafísica mas entre ciência e ideologia. Esta é a função primordial da filosofia: traçar linhas de demarcação entre o científico e o ideológico. Desgraçadamente, devido à indigência cognitiva predominante, os filósofos não desenvolveram a teoria da ideologia de Marx: a filosofia está condenada a aperfeiçoar essa teoria enquanto intervém na prática científica, no seio da qual ela representa a política. A tese de Althusser permite-me defender outra tese: a mecânica quântica exige uma nova filosofia ou, por outras palavras, a revolução científica em curso só estará concluída quando der origem a uma imensa revolução filosófica. Os físicos estão convencidos de que a epistemologia é a única plataforma que lhes permite estabelecer um diálogo produtivo com os filósofos: eles ainda não compreenderam que a epistemologia sofreu o impacto poderoso da teoria da ideologia de Marx, embora já tenham entendido que a "sociologia" é tão ou mais importante do que a "psicologia". A análise da lição inaugural de Jacques Monod permitiu-me avançar com um modelo crítico. Pretendo agora aperfeiçoá-lo com a análise crítica das obras revolucionárias dos físicos. O facto de já ter estudado a teoria do Big Bang inclina-me a escolher a obra de Steven Weinberg: o objectivo da intervenção filosófica no domínio da física é, em última análise, elaborar uma Filosofia da Natureza. Já existem muitas teorias da realidade propostas pelos próprios físicos, uma das quais é a teoria da ordem implicada de David Bohm. Depois de um longo divórcio, a física regressa ao seio da própria filosofia. Aliás, é muito difícil distinguir entre física teórica e filosofia. Filosofia e Física não são, portanto, duas disciplinas avessas uma à outra: ambas são actividades teóricas que visam acrescentar ao mundo as suas determinações de conhecimento. Da sua cooperação resultará uma nova filosofia da natureza e do próprio conhecimento. 

J Francisco Saraiva de Sousa

quinta-feira, 5 de julho de 2012

A Descoberta da Partícula de Higgs


Peter Higgs no CERN
(4 de Julho de 2012)
Reproduzo aqui a entrevista que Carlos Fiolhais concedeu ontem ao Jornal de Notícias. Eis a entrevista:

JN: Que importância tem esta descoberta para a Ciência?

Carlos Fiolhais: A descoberta da partícula de Higgs, anunciado hoje no CERN com algumas cautelas ("uma nova partícula compatível com a partícula de Higgs") é o coroar dos esforços de muitos físicos de todo o mundo. Hoje é um grande dia para a ciência, já que foi dado mais um passo no grande esforço humano de descobrir o mundo. O acelerador do CERN, a maior máquina jamais construída pelo ser humano para realizar uma experiência científica, revelou aparentemente a partícula que se procurava e que é necessária para compreender a física das partículas. Não é a primeira vez que no CERN se descobrem novas partículas confirmando previsões teóricas, mas, no caso presente, a busca tem sido particularmente difícil, dada a enormidade e a complexidade da tarefa. A física teórica avança, de forma imaginativa (em ciência, já Einstein dizia, a imaginação é mais importante do que o conhecimento), descrições do mundo, mas só a experiência pode confirmar essas descrições. A descoberta mostra o poder da física teórica, quer dizer do cérebro humano, para compreender o mundo. Ao contrário de outros casos, desta vez a teoria não previa a massa da nova partícula, pelo que houve que a procurar num grande domínio de energia (equivalente a massa, segundo a célebre fórmula de Einstein), como quem procura uma agulha num palheiro. 

Em colisões a altas energias forma-se o Higgs mas este decai logo a seguir decai. Observam-se em grandes detectores os resultados desse decaimento, que são uma espécie de assinatura do Higgs. Tudo leva a crer que a partícula está lá a 125 Gigaelectrõesvolt, uma massa muito grande para uma partícula elementar, equivalente a um átomo de bário que tem 56 protões e 81 neutrões (ambos feitos de quarks), para já não falar dos 56 electrões, que são muito leves em comparação com os protões e neutrões. Porque é que o Higgs é importante? Essa partícula é afinal a responsável pelas diferentes massas de todas as partículas elementares. Sem ela não existiriam os quarks, os electrões e os neutrinos, tal como os vemos, partículas elementares de diferente massa, que formam os átomos e, portanto, toda a matéria conhecida.

JN: Se esta era a última peça para explicar a origem do Universo, o que sabemos agora sobre a génese do Cosmos?

CF: Não era a última peça, há mais peças que faltam. A física tem muitas peças por encaixar (felizmente, significa trabalho para os físicos, que assim não ficam desempregados!). Aliás em ciência quando se responde a uma pergunta (neste caso: existe o Higgs, responsável pela massa de todas as partículas?) surgem logo várias outras perguntas. Falta agora provar inequivocamente que é o Higgs determinando as suas propriedades. Mal comparado, é como se tivéssemos um suspeito e tivéssemos agora que o interrogar: "Quem é o senhor? O que faz? O senhor é o responsável pela massa das partículas"? Se for mesmo o que se procura, isso será bom para o chamado modelo padrão das partículas, mas não mata a nossa curiosidade. A verdade é que muitos físicos acham esse modelo largamente insatisfatório. Como o conceito de simetria está por trás do modelo e há alguns problemas conceptuais, muitos físicos estão desejosos por ver esse modelo falhar, para se lançarem em alternativas "mais elegantes". Sobre a génese do Cosmos: sim, o nosso conhecimento das partículas elementares e das forças fundamentais exercidas entre elas ilumina o nosso conhecimento do cosmos, pois, segundo a teoria do Big Bang, no início era a energia e só depois apareceram as partículas - quarks, electrões e neutrinos, e só mais tarde estas se agruparam (os quarks em protões e neutrões, os protões e neutrões em núcleos atómicos e os núcleos com os electrões para formar átomos). Mas persistem grandes interrogações a respeito do início do mundo. Sabemos que houve um início e sabemos que houve uma expansão com organização progressiva da matéria. Mas não sabemos, por exemplo, o que há além da matéria e energia que conhecemos: há fortes indícios de haver matéria escura e energia escura no Cosmos, que, como o próprio nome indica, nos são, por enquanto desconhecidas. E essa matéria e energia escuras devem formar a maior parte do Cosmos. Talvez o Higgs nos forneça uma pista... 

JN: O que existia antes dela? Quem criou a partícula de Higgs?

CF: Energia é equivalente a matéria. Nos instantes primordiais, há cerca de 13 700 milhões de anos, só havia energia no espaço e no tempo. Energia significa forças. Os físicos acreditam, tal como Einstein, na unificação total das forças. Mesmo no início, só devia haver uma força, que se desdobrou noutras. Só depois apareceram as partículas elementares, criadas à custa da energia e dotadas de massa. Não faz sentido dizer o que existia antes do Big Bang, pois ele é o início do espaço e do tempo. Antes do tempo não há tempo. Para sermos rigorosos: a pergunta do "antes do Big Bang" não pode ser respondida pelos físicos ou, se responderem, só podem, para serem honestos, dizer que não sabem. Dizer que "Alguém" criou as partículas é uma visão religiosa, que não tem lugar em ciência. 

JN: A designação partícula de Deus faz sentido?

CF: Não faz. O nome foi avançado por um físico laureado com o Nobel norte-americano, Leon Lederman, que deu esse título a um dos seus livros. Ele próprio brincou com o título... Esse nome pode ter muito poder mediático, mas não faz qualquer sentido do ponto de vista científico. Os físicos são humanos e, como conhecem bem os humanos, recorrem a esse tipo de truques para chamar a atenção. É, por assim dizer, invocar o "santo nome de Deus" em vão!  

JN: Esta descoberta é uma aproximação entre a Física e a Metafísica, entre a Ciência e Religião? Ou esta dicotomia não faz sentido?

CF: Não é uma aproximação entre Física e Metafísica e muito menos entre ciência e religião. Essas dicotomias fazem sentido. Uma coisa é a física, outra é a metafísica. Uma coisa é a ciência e outra é a religião. Pode-se ser cientista e ter fé em Deus. Ou pode-se ser cientista e não ter. A ciência nem aproxima nem afasta de Deus, conforme tentei recentemente explicar num diálogo com o Bispo de Coimbra na Biblioteca Joanina. As duas actividades humanas  podem coexistir pacificamente. É curioso que um dos autores da teoria do Big Bang tenha sido um sacerdote católico, o belga Georges Lemaître. Foi ele que declarou: "Num certo sentido, o cientista prescinde da sua fé no seu trabalho, não porque essa fé pudesse entorpecer a sua investigação, mas sim porque não tem a ver directamente com a sua actividade científica."

Anexo: Hoje estou demasiado preguiçoso para me entregar a uma reflexão filosófica em torno do bosão de Higgs. Steven Weinberg defendeu a tese de que a filosofia não tem utilidade para a física, excepto os trabalhos de alguns filósofos que ajudam os físicos a evitar os erros de outros filósofos. Esta tese não merece grande credibilidade, até porque os exemplos dados para lhe dar forma apontam na direcção contrária à pretendida: a importância da filosofia para a elaboração das teorias da física. No entanto, a sua formulação só é possível porque tem havido um divórcio entre filosofia e ciência, pelo menos fora do mundo anglo-saxónico. O distanciamento dos filósofos em relação à revolução científica ainda-não-concluída protagonizada pela física empobrece a própria filosofia. A filosofia não pode abdicar da Filosofia da Natureza: a comunidade dos físicos tem produzido muitas obras sobre as suas descobertas, nas quais fazem filosofia espontânea de cientistas. Cabe aos filósofos criticar essa filosofia espontânea e elaborar a filosofia adequada à física unificada. A filosofia não é um género literário: os cientistas precisam da filosofia para se orientarem no mundo social. Devemos expulsar os literatos do campo filosófico e reactivar a grande tradição ocidental. Nesta entrevista, Carlos Fiolhais faz filosofia, sobretudo quando refere as "dicotomias" ciência-metafísica - oriunda do neopositivismo lógico que marcou Heisenberg, por exemplo - e ciência-religião. Estas dicotomias implicam uma determinada visão da evolução das ideias: o conhecimento científico deveria já ter eliminado o conhecimento teológico e o conhecimento metafísico. Mas a verdade - como ele próprio o reconhece - é que estas formas mais antigas de conhecimento persistem. O facto do bosão de Higgs ter sido chamado de partícula de Deus mostra que a física ainda não superou o modelo teológico da criação: ainda há teologia no seio das grandes teorias da física. A revolução científica só estará concluída quando for completada por uma revolução filosófica: a colaboração entre físicos e filósofos é fundamental para consumar a revolução em curso. Até lá devemos ser cautelosos com aquilo que dizemos: a matéria escura do universo ainda nos é estranha.