segunda-feira, 1 de dezembro de 2008

Amputação e Transexualismo (III)

Freund & Blanchard (1993) introduziram o conceito de erros de localização do alvo erótico para explicar porque razão alguns homens experienciam fantasias eróticas de personificar ou mudar os seus corpos de modo a assemelharem-se ao tipo de pessoa pelo qual experienciam desejo sexual. Para quase todos os tipos de objectos sexuais, existem pequenos subgrupos de homens que desenvolvem fetiches por roupas associados com o objecto desejado, que desenvolvem fantasias eróticas de ser o objecto desejado e que desenvolvem um desejo persistente e intenso para transformar os seus próprios corpos em fac-símiles do objecto desejado. Estes homens experienciam erros de localização do alvo erótico: quaisquer que sejam os seus alvos eróticos preferidos, estes indivíduos localizam-nos não só noutras pessoas (alloerótico), mas também e preferencialmente em si próprios (analloerótico). O modelo proposto por Freund & Blanchard (1993) fornece uma explicação do fetichismo trasvestido e do transexualismo macho-para-fêmea não-homossexual, ao mesmo tempo que permite compreender a relação existente entre acrotomofilia, pretending e apotemnofilia (Lawrence, 2006).
Os alvos eróticos podem ser mulheres, homens, crianças e amputados. A atracção por mulheres é denominada ginefilia, a atracção por homens, androfilia, a atracção por crianças, pedofilia, e a atracção por amputados, acrotomofilia. Os indivíduos que desejam assemelhar-se temporariamente aos seus alvos eróticos simulam-nos em si mesmos: se os alvos eróticos forem as mulheres, a simulação é chamada trasvestismo, se forem os homens, homovestismo, se forem as crianças, pedovestismo, e se forem os amputados, pretending. Quando os indivíduos desejam transformar os seus próprios corpos no alvo ou num fac-símile do alvo erótico preferido, os desejos são denominados, respectivamente, transexualismo autoginefílico, construção corporal hipermasculina nalguns homens gay, autopedofilia e apotemnofilia. As simulações (trasvestismo, homovestismo, pedovestismo e pretending) e as transformações corporais (transexualismo autoginefílico, construção corporal, autopedofilia e apotemnofilia) constituem erros de localização do alvo erótico.
Homens Heterossexuais. O alvo erótico preferido pelos homens heterossexuais é a mulher madura, embora prefiram mulheres mais novas do que eles próprios. Esta preferência erótica normal por mulheres é chamada ginefilia. Porém, alguns homens heterossexuais experienciam erros de localização do alvo erótico. Uns ficam sexualmente excitados quando usam roupas de mulher ou quando tentam assemelhar-se temporariamente com as mulheres. Alguns homens vestem uma única peça de roupa feminina, geralmente roupa interior ou lingerie, com o seu vestuário masculino e, através dos web-sites web-cam, tendem a participar na subcultura de trasvestismo online, envolvendo-se em actos homossexuais e utilizando regularmente maquilhagem. Estes comportamentos revelam uma parafilia chamada fetichismo trasvestido. Outros são sexualmente excitados pela ideia de mudar permanentemente os seus próprios corpos de modo a adquirir corpos similares aos das mulheres. Estes comportamentos manifestam uma parafilia chamada transexualismo autoginefílico.
Homens Homossexuais. O alvo erótico preferido pelos homens homossexuais é o homem maduro, embora os mais masculinizados prefiram homens mais jovens do que eles próprios. Esta preferência erótica normal é chamada androfilia. Porém, alguns homens homossexuais experienciam erros de localização do alvo erótico. Uns são sexualmente excitados quando vestem certos tipos de roupas de homem. Zavitzianos (1972, 1977) forjou o termo homovestismo para designar este fenómeno, relatando o caso de um homem gay que se masturbava até atingir o orgasmo enquanto tinha vestido um uniforme militar masculino e imaginava que era outro homem. Outros são sexualmente excitados pela ideia de mudar os seus próprios corpos de modo a adquirir corpos similares aos dos seus alvos eróticos. Actualmente, a musculação ou o cultivo da aparência masculina estão muito banalizadas entre os homens gay, incluindo os efeminados e passivos. Isto significa que este fenómeno pode constituir o equivalente do transexualismo autoginefílico: a construção corporal ou a tentativa de adquirir um somatotipo masculino sexualmente apelativo.
Homens Pedófilos. O alvo erótico preferido pelos homens pedófilos é a criança, embora nem todos os pedófilos sejam do tipo exclusivo. Segundo CID-10, a pedofilia é "uma preferência (erótica) por crianças", geralmente por crianças na pré-puberdade, com 13 anos ou menos (DSM-IV). Estes homens podem limitar a sua actividade a despir a criança e a observá-la, exibindo-se eles próprios e masturbando-se na presença da criança ou tocando-lhe e acariciando-a suavemente. Outros pedófilos executam fellatio ou cunnilingus na criança ou penetram-lhe a vagina, a boca ou o ânus com os seus dedos, objectos estranhos ou com o pénis e utilizam a força física em graus variáveis para concretizarem os seus objectivos. Porém, alguns homens pedófilos experienciam erros de localização do alvo erótico. Embora não usem os termos pedovestismo e autopedofilia, Freund & Blanchard (1993) demonstraram que alguns homens pedófilos são sexualmente excitados pelo facto de se vestirem com roupas de criança (pedovestismo) e de imaginarem que são crianças. E, pelo menos um paciente, submeteu-se à reconstituição da pele da face para adquirir a aparência aproximada de uma criança: um caso paradigmaticamente representativo de autopedofilia.
Homens Amputados. O alvo erótico preferido pelos homens acrotomofílicos são os amputados e esta preferência erótica é chamada acrotomofilia. Porém, alguns destes homens experienciam erros de localização do alvo erótico. Uns ficam sexualmente excitados pela apresentação temporária de si mesmos como amputados. Este fenómeno é chamado pretending. Outros são sexualmente excitados pela ideia de alterar os seus próprios corpos de modo a tornarem-se, eles próprios, amputados. Este fenómeno é chamado apotemnofilia. A apotemnofilia parece representar a intersecção de dois aspectos parafílicos distintos e diferentes: o primeiro aspecto envolve uma invulgar preferência de alvo erótico, isto é, a atracção sexual por amputados (acrotomofilia). O segundo aspecto envolve um erro de localização do alvo erótico: o indivíduo deseja transformar o seu corpo e torná-lo semelhante ao corpo do alvo erótico desejado. A aplicação do modelo dos erros de localização do alvo erótico de Freund & Blanchard (1993) aos fenómenos de pretending e de apotemnofilia permite gerar, pelo menos, três predições testáveis, aliás já confirmadas por alguns estudos. Dado conceptualizar pretending e apotemnofilia como formas variantes de acrotomofilia, o modelo prediz que quase todos os apotemnófilos tendem a ser atraídos por amputados e que muitos deles se envolveram na simulação de ser amputados (pretending): esta predição foi confirmada pelo estudo de First (2005). O modelo prediz que pretending e apotemnofilia podem ser menos vulgares que acrotomofilia: os estudos de Dixon (1983) e de Nattress (1996) confirmam esta predição. Finalmente, o modelo prediz que a maior parte dos devotees são homens e que muitos destes homens são sexualmente atraídos por mulheres amputadas: os estudos de Dixon (1983), de Furth & Smith (2000) e de Riddle (1989) confirmam esta previsão. Ora, muitos destes homens atraídos por mulheres amputadas, desejam tornar-se semelhantes aos seus alvos eróticos. Isto implica uma elevada prevalência de cross-dressing e de problemas de identidade de género nos homens apotemnofílicos: esta previsão foi confirmada pelo estudo de First (2005), entre outros estudos.
A anatomia não significa realmente "destino", porque quase todos os homens destas amostras examinadas eram machos perfeitamente normais e funcionais. Mais importante do que a morfologia é aquilo que as pessoas fazem da anatomia. A teoria da determinação sexual e da diferenciação sexual do cérebro e do comportamento mostrou que o estado de repouso para os mecanismos centrais de género é feminino, ou seja, entre os mamíferos, o impulso natural é ser fêmea ou produzir fêmeas. O comportamento masculino resulta fundamentalmente da regulação hormonal, mais precisamente, da organização do cérebro fetal pela testosterona pré-natal (Wilson & Davies, 2007; Hines, 2006). Se os androgénios forem bloqueados, a feminilidade reaparece, mas, se forem activados, como sucede na via normal do desenvolvimento masculino, aparece a masculinidade. Esta conceptualização implica o reconhecimento de dois "factos" que desmentem frontalmente a psicanálise de Freud. Primeiro, um facto anatómico genital: em termos embriológicos, o pénis é um clitóris masculinizado. Segundo, um facto neurofisiológico: o cérebro masculino é um cérebro feminino androgenizado. As parafilias referidas são exibidas predominantemente por homens e mostram claramente que as sexualidades de género masculino são sexualidades em risco. Esta observação é perfeitamente congruente com a teoria da fragilidade masculina (Kraemer, 2007) e com a instabilidade do cromossoma Y (Graves): o velho preconceito de que os homens são mais resistentes do que as mulheres constitui um insulto social que visa reforçar a própria vulnerabilidade biológica do género masculino, aliás bem patente nas desvantagens dos homens no domínio socialmente mediado, na sua vulnerabilidade biológica manifestada desde a concepção, nas atitudes negativas exibidas em relação aos défices masculinos, na elevada mortalidade masculina, na maior imaturidade masculina, na maior propensão a abusar de substâncias viciantes e na elevada prevalência de perturbações de comportamento e de desenvolvimento e de doenças letais. A vulnerabilidade biológica masculina exige mais atenção e maiores cuidados prestados aos homens: o desenvolvimento do cérebro masculino está sujeito permanentemente a riscos. O macho é, por excelência, o ser-em-risco permanente e, por isso, a sociedade deve dar-lhe mais atenção. (FIM)
J Francisco Saraiva de Sousa

12 comentários:

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Estou a pensar que o pedovestismo pode ser visto como uma parafilia relativamente autónoma e, neste caso, as mulheres exibem muito frequentemente este comportamento.

Fräulein Else disse...

Os macho-meninos são seres-em-risco e sempre foram protegidos. Quando não o são politica e socialmente são-no pelo vínculo materno e familiar. A mãe tem sempre maior cuidado relativamente ao(s) seu(s) bebé(s)-macho. A ideia de que o homem é/deve ser resistente (física e emocionalmente) é uma corrupção endógena - um risco sobre risco - figurada pelo pai, sociedade e Estado.

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Sim, é verdade e o mesmo sucede com os ratos e ratinhos: as mães lambem mais as crias masculinas que as femininas e isso é fundamental para o neurodesenvolvimento e a saúde geral das crias.

O homem é mesmo um risco total: um contínuo de variações cujos extremos sãao mesmo patológicos.

Fräulein Else disse...

Sim, por isso uma mulher e mãe nunca deve confiar 100% num homem: pode-se sempre "passar" e agredi-la ou violá-la a si ou às crias.

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

O que pretendo vir a demonstrar é que, nesta sociedade, está a ocorrer uma espécie de degenerescência masculina: as adaptações masculinas não são valorizadas e usadas. A violência reflecte muito essa "inibição".

Fräulein Else disse...

Pois, e o que eu quis dizer, é que essa degeneração ou corrupção é criada por esse ser-sempre-em-risco, o homem-macho (ou quase macho). Por isso e além disso, ainda pode vir a demonstrar quão "arriscado" é esse ser...

Fräulein Else disse...

E maravilhoso e terrível porque arriscado, claro.

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Sim, percebi. E teoricamente desafiador e, por vezes, muito complicado e confuso. Pelo andar da coisa, vai ser muito difícil elaborar uma teoria unificada das parafilias que dominam o universo plural masculino. Porém, com o remate que fiz, vejo luz lá bem no fundo, mas quando chegar a luz plena já pode ser tarde: o mundo já não é... :(

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

O modelo começa a estar afinado/aperfeiçoado e pode ser constantemente alargado e, neste momento, já podemos ir em busca dos mecanismos causais situados abaixo do nível em que foi elaborado. Dentro de algum tempo, já posso tentar explicar os rituais do sémen, um facto insólito da sexologia. As grandes conexões teóricas estão dadas; basta aprofundar e ir até ao nível molecular.

Fräulein Else disse...

Sim, as parafilias são quase-exclusivas dos homens. Quando diz que o pedovestismo é autónomo, eu não acho. As mulheres quando se vestem e agem como crianças, não o sendo, é porque pretendem encarnar a figura de "Lolita" (muito) ambicionada pelos homens... Quero dizer: o alvo erótico da mulher é o homem e não a criança.

Rituais do sémen?

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Penso que já falámos desses rituais. A leitura que farei deles leva em conta os dois factos referidos neste post.

Sim, as mulheres são menos dadas a desenvolver parafilias e começamos a saber porquê. :)

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Bem, tenho ainda muitos estudos sobre amputação e mutilações que ainda não estudei com cuidado, mas prometo dar conta dos seus resultados.