sábado, 24 de janeiro de 2009

Hegel: A Lógica de Jena (1)

«No pensamento simbólico, as palavras são manipuladas como simples signos, sem que se leve em conta o seu sentido; essa manipulação é feita segundo regras prontas e acabadas: as regras da gramática geral ou de uma gramática especial. Esse uso permite que muitas pessoas discorram, formem frases correctas, sem nem sequer saberem do que falam. O pensamento simbólico é aquele dos tagarelas e de um certo número de alienados. (...) De igual modo, a lógica formal pode ser considerada como um dos sistemas de redução do conteúdo, através do qual o entendimento chega a «formas» sem conteúdo, a formas puras e rigorosas, nas quais o pensamento lida apenas consigo mesmo, isto é, com «nada» de substancial. No limite extremo, essas formas desvanecem-se, tornam-se o vazio, o nada de pensamento e de realidade, o absurdo". (Henri Lefebvre)
Henri Lefebvre foi provavelmente o filósofo que procurou elaborar, de modo rigoroso e sistemático, a lógica dialéctica como uma lógica (concreta) do conteúdo. A partir do final da Segunda Guerra Mundial, a dialéctica foi eclipsada e atacada no seu ponto fraco: a sua ligação com a lógica, donde resultou o progresso da lógica formal e da sua formalização. Émile Meyerson reduz a razão à forma da identidade ou da identificação (do oprimido com o opressor, do filho com o pai repressivo e o seu domínio da Lei, enfim da vítima com o seu carrasco), isto é, reduz a razão ao entendimento, pondo o conteúdo como algo estranho e exterior à forma e o concreto como exterior ao abstracto. A razão formal e formalizada luta para forçar abusivamente a entrada do real na forma pré-figurada e acabada: o resultado desta violência conceptual é coagular a razão em pura abstracção, em identidade e princípio de identidade. A própria ciência dita experimental é reduzida a um esforço sempre fracassado de fazer com que o móvel entre no imóvel, o diverso no idêntico, e a reflexão epistemológica sobre a ciência é vista como uma série de tentativas de formalização. O projecto positivista de uma "lógica sem metafísica" elaborado por Ernest Nagel não resiste à negatividade do conteúdo mínimo que é obrigado a reter: o conteúdo mínimo insinua-se no seio da lógica formal como negatividade, mostrando que ela não é suficiente e autosuficiente. A depuração da forma lógica em detrimento do conteúdo visa tornar o pensamento alheio ao mundo e à experiência, fomentando o conformismo e eliminando o próprio pensamento enraizado na materialidade do mundo. A lógica formal converte-se, assim, em pura ideologia: o pensamento da identidade (Adorno) que legitima o status quo.
A ideologia logicista e seus derivados pseudo-filosóficos, a pura retórica da tagarelice denunciada pelo próprio Kant, imobilizaram o mundo e a praxis transformadora, confirmando o homem na sua situação infeliz. Porém, o estalar da actual crise financeira e dos seus efeitos perversos sobre as economias reais, pode ajudar a acordar o homem desse sono dogmático povoado por pesadelos de miséria eminente. A leitura de Hegel constitui, neste momento de desespero, a única luz capaz de desmistificar o pensamento único e de descobrir na sua superfície as contradições profundas que esconde. O primeiro sistema completo de Hegel, o sistema de Jena (1802-1806), é constituído por uma lógica, uma metafísica, uma filosofia da natureza e uma filosofia do espírito. Como já analisámos a primeira exposição da dialéctica de Hegel, vamos retomar apenas a lógica de Jena, onde Hegel expõe a estrutura do ser enquanto tal, isto é, as suas formas mais gerais que Aristóteles designava como categorias, tais como substância, afirmação, negação, limitação, quantidade, qualidade, unidade, pluralidade, etc. A lógica de Hegel é uma ontologia, que pressupõe a unidade do pensamento e do ser, no sentido do movimento do pensamento reproduzir e reflectir o movimento do ser, trazendo-o à luz da sua forma verdadeira. A concepção hegeliana desta unidade difere da concepção kantiana. Hegel rejeita o idealismo kantiano, porque este admitia a existência da coisa-em-si que não podia ser apreendida pela razão. Deste modo, Kant abriu um abismo entre o pensamento e o ser, entre o sujeito e o objecto, abismo sobre o qual Hegel procura lançar uma ponte: a existência de uma estrutura universal da totalidade do ser. Hegel entende o ser como um processo, pelo qual uma coisa compreende e se apropria dos diversos estados da sua existência, elevando-os à unidade mais ou menos duradoura do seu em-si e constituindo-se activamente como a "mesma" através das suas mudanças. Tudo o que é existe, em maior ou menor grau, como sujeito, isto é, movimento dialéctico do ser que unifica os mundos objectivo e subjectivo.
No sistema de Hegel, lógica e metafísica "confundem-se" por dois "motivos" básicos: primeiro, porque a identidade do pensamento e da existência significa que o movimento do pensamento reflecte o movimento do ser, dando-lhe a sua forma verdadeira, e segundo, porque o conceito verdadeiro revela-nos a essência ou a natureza de um objecto, dizendo-nos o que é em si mesmo. Isto significa que a lógica de Hegel trata das formas e dos tipos de ser enquanto compreendidos pelo pensamento: a interacção, a mutabilidade e a fluidez dos conceitos reflectem o processo concreto da realidade efectiva. Porém, quando a verdade desta realidade nos é revelada, torna-se evidente que as coisas não existem na sua própria verdade, porque as suas potencialidades e possibilidades estão limitadas pelas condições determinadas em que existem. As coisas só alcançam a sua própria verdade quando negam as suas condições determinadas. Além disso, embora sejam os "sujeitos" deste processo de realização, as coisas sofrem-no passivamente, sem terem a sua própria compreensão ou agirem com base no conhecimento: a ideia que formamos das coisas é que revela a existência de um processo intrínseco de desenvolvimento. Para Hegel, o conceito representa a forma real do objecto, revelando a verdade do seu processo que, no mundo objectivo, é cego e contingente. No mundo objectivo, orgânico e inorgânico, os entes diferem essencialmente dos seus conceitos e esta diferença só pode ser superada por um sujeito pensante: um sujeito capaz de realizar o seu conceito na sua existência.
Os diversos modos de ser podem ser ordenados em função da diferença entre os modos de ser dos entes particulares e os seus conceitos. A ideia básica é a de que todos os entes particulares diferem essencialmente do que poderiam ser caso realizassem as suas potencialidades dadas no seu conceito. Mas, como não há identidade entre a sua existência e o seu conceito, as coisas finitas são negativas: elas não são o que podem e devem ser. Esta "inquietação absoluta", o esforço para (um ente) "não ser o que é" na sua existência imediata, constitui a essência de todas as formas imediatas da existência: elas são formas más, porque não permitem que as coisas sejam o que podem ser. A existência verdadeira só pode ser alcançada quando o estado imediato passa a ser compreendido como negativo. A negatividade é, segundo Hegel, "a fonte mais interna de toda a actividade, do desenvolvimento vital e espiritual", e, como estado de privação, força os entes a tornarem-se "sujeitos" e a lutar pela «adaptação» do seu estado aparente às suas potencialidades. Ser é poder ser o que se é no conceito. A força motivadora da dialéctica reside precisamente na pressão para superar a negatividade constitutiva de todas as coisas finitas: o conteúdo particular expande-se quando se transforma no seu oposto e a dialéctica começa quando o entendimento se torna incapaz de compreender adequadamente qualquer coisa por meio das formas qualitativas ou quantitativas pelas quais é dada. A capacidade de existir no seu "ser-outro" (Anderssein) e, portanto, de ser diferente de si mesmo, faz parte integrante do conteúdo particular e o conteúdo do todo é a totalidade das relações contraditórias nele engendradas. A lógica dialéctica de Hegel conduz do ser-em-si do começo ao ser-em-si e para-si do final, que também é o começo. A Ciência da Lógica resume o conteúdo dos pensamentos em três partes, a doutrina do ser, a doutrina da essência e a doutrina do conceito, que correspondem aos três termos fundamentais da dialéctica: o ser-em-si imediato, o ser-fora-de-si (a relação consigo mesmo através da relação com o outro) e o ser-para-si (que é idêntico consigo mesmo no outro). Esta ordem sistemática deriva do facto de que todos os modos de ser alcançam a sua verdade através do sujeito livre que os apreende e compreende pela relação que estabelece com a sua própria racionalidade. (CONTINUA)
J Francisco Saraiva de Sousa

3 comentários:

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Sandra Lopes

Se vier até aqui, deixe a sua autorização para editar o seu comentário sobre transexualismo, ao qual já esbocei uma resposta.

Obrigado pelo seu comentário.

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Já agora deixo o endereço do post em questão:

http://cyberdemocracia.blogspot.com/search?q=travestis%2C+transgeneros+e+transexuais

"Travestis, Transgéneros e Transexuais": eis o título do post.

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Bem, deixo a análise da estrutura da lógica de Jena para o próximo post, embora no final deste tenha referido a estrutura da Ciência da Lógica, a obra amadurecida de Hegel: o sistema de Jena é apenas o primeiro esboço que sofre alterações na Fenomenologia do Espírito, a introdução à Lógica. :)