«Hoje vivemos entregues, sem resistência, à acção dessa artilharia espiritual (da Imprensa e da Comunicação Social), de maneira que poucos são os que podem manter a distância interior suficiente para perceberem com toda a clareza a monstruosidade inerente a esse espectáculo». (Oswald Spengler)
«Eis o final da Democracia. No mundo das verdades, a prova decide tudo. No mundo das realidades, por sua vez, quem decide é o êxito. Pelo Dinheiro, a Democracia anula-se a si própria, depois de o dinheiro ter anulado o espírito. O Cesarismo cresce no solo da Democracia, mas as suas raízes penetram profundamente nas camadas ínfimas do sangue e da tradição. Por mais energicamente que os poderosos do futuro - já que a grande forma política da cultura se desfez irremediavelmente - dominarem a terra como se esta fosse a sua propriedade particular, esse poderio informe, ilimitado, terá todavia uma missão a cumprir: a missão de cuidar sem descanso deste mundo. Tal cuidado é o contrário de todos os interesses na época da hegemonia do dinheiro e requer um senso de honra elevadíssimo, bem como a plena consciência do dever. Justamente por isso, porém, produz-se agora a luta final entre a Democracia e o Cesarismo, entre os poderes dominantes de uma plutocracia ditatorial e a vontade organizadora, puramente política, dos Césares». (Oswald Spengler)
«A Civilização caracteriza, portanto, uma fase de cultura na qual a tradição e a personalidade já perderam a sua ascendência imediata e qualquer ideia deve ser convertida, mentalmente, em dinheiro, para que seja possível realizá-la. O dinheiro aspira à mobilização de todas as coisas». «Como sede dessa concepção, a cidade converte-se em mercado de dinheiro e centro de valores. Uma torrente de valores monetários começa a invadir o fluxo dos bens, espiritualizando-o e dominando-o. Dessa forma, o negociante deixa de ser um órgão e torna-se senhor da vida económica. Pensar em termos de dinheiro é sempre, de um modo ou outro, pensar comercialmente, como negociante». «Também nesse ponto triunfa o dinheiro, pondo ao seu serviço os espíritos livres. Não há sátira mais cruel contra a liberdade de pensamento. Outrora não era lícito pensar livremente; agora temos tal direito, porém somos incapazes de exercê-lo. Pensa-se tão-somente o que se deve querer, precisamente isso afigura-se-nos hoje em dia como a nossa liberdade». (Oswald Spengler)
Em 1918-1922, Oswald Spengler (1880-1936) publicou a sua obra A Decadência do Ocidente, onde elabora a sua teoria cíclica das civilizações e das culturas, com o objectivo de atacar a ideia de progresso: «Em lugar da monótona imagem de uma História Universal rectilínea, deparo com o espectáculo de múltiplas culturas poderosas, a brotarem com cósmico vigor do seio de uma região maternal, à qual todas elas permanecem ligadas, rigorosamente, através de todo o curso da sua existência. Cada uma dessas culturas imprime à sua matéria, que é o espírito humano, a sua forma peculiar; cada uma delas tem as suas próprias ideias, as suas paixões, a sua vida, a sua vontade, o seu sentir, a sua morte próprias. Existem aí cores, luzes, movimentos, jamais descobertos por nenhuma contemplação espiritual. Há culturas, povos, línguas, verdades, deuses, regiões, alguns florescentes, e outros envelhecidos, como há carvalhos ou pinheiros, corolas, galhos e folhas que sejam novos e outros que sejam velhos. Porém, não há nenhuma "Humanidade" avelhantada. Cada cultura tem as suas próprias possibilidades de expressão, que se manifestam, amadurecem, definham e nunca mais ressuscitam» (Oswald Spengler). Para Spengler, a história é uma sucessão de unidades individuais e independentes, as culturas, que, apesar do seu carácter específico, partilham um mesmo ciclo vital, semelhante ao de um organismo: as culturas nascem, amadurecem e, quando o seu poder criador está exausto, entram em decadência e morrem sem dar origem a nada de novo. O isolamento das várias culturas é tão completo como aquele que existe entre as mónadas de Leibniz: o que Spengler rejeita não são os "contactos no tempo e no espaço" entre civilizações, aquilo a que Roger Bastide chamou mais tarde as interpenetrações de civilizações, mas sim os parentescos civilizacionais e, sobretudo, o multiculturalismo (Charles Taylor). A morfologia da história de Spengler foi severamente criticada pelos meus mestres, em especial por Lukács, Bloch e Adorno, que viram nela um "inimigo feroz" das teorias progressistas de Karl Marx: o que os meus mestres não suportam na filosofia da história de Spengler, não são tanto as suas análises histórico-culturais do ciclo vital da civilização faustiana, de resto brilhantes, mas sobretudo a base naturalista e positivista da sua morfologia da história e a sua metafísica da alma colectiva, que coloca Spengler na perigosa vizinhança das filosofias vitalistas de Nietzsche, Dilthey, Simmel e Bergson. Pensado como uma fatalidade histórica, um destino pré-traçado, o curso da história leva os homens a esquecer a ideia e a realidade da sua liberdade: a história concebida como uma equação ou um julgamento analítico exclui de antemão a possibilidade de um outro modo de ser diferente, porque a forma do prognóstico assumida pela filosofia da história de Spengler implica sempre-já a manipulação dos homens e a negação da sua própria espontaneidade. Ao converter a história numa segunda natureza, cega e fatal, Spengler opera, num só e mesmo movimento, a degradação do homem e a transfiguração da história real em história da alma, com o objectivo derradeiro de submeter totalmente à necessidade cega o elemento de revolta do homem - o elemento antitético - e a sua consciência. Deste modo, o seu idealismo absoluto - alma = dominação - coloca-se ao serviço de uma filosofia do poder e da identidade, que rejeita a luta dos homens pela construção de um mundo diferente e melhor. Ora, esta luta dos homens explorados e oprimidos pela libertação é uma luta contra as forças do destino e, portanto, contra a dominação: o conceito spengleriano de destino subordina o homem à sua própria dominação cega e, nesse sentido, reflecte a dominação exercida pelos homens vencedores. O prognóstico spengleriano do declínio da força do pensamento culmina fatalmente na interdição do pensamento que se legitima com o recurso ao carácter inexorável do curso da história. Porém, a sua tese da decadência do Ocidente é hoje uma realidade em andamento no nosso mundo global, o que nos obriga a articular de algum modo a tese spengleriana do declínio do Ocidente com uma nova tarefa de emancipação global: em vez de lhe opor a ressurreição da cultura que traz a morte como marca fatal, devemos opor-lhe a Grande Utopia que guarda a imagem azul daquilo que declina: o Ocidente. O protesto dos homens contra o horror da continuidade bárbara da pré-história (Marx) - a noção ideológica de destino vegetal que justifica a história dos vencedores - é a única esperança que nos resta de ver o destino e o poder vigente privados da última palavra.
A dialéctica marxista precisa de reelaborar urgentemente um novo conceito de História - e de historicidade - e articulá-lo com a ideia de progresso: Walter Benjamin, Theodor W. Adorno e Ernst Bloch - bem como o último Althusser que sondou a possibilidade de um materialismo aleatório à semelhança do de Lucrécio - foram os únicos filósofos marxistas que levaram a sério esta tarefa teórica. Oswald Spengler insistiu que a alma apolínea - a cultura grega - carecia de sentido da história ou de desenvolvimento; porém, tanto a sua teoria cíclica das civilizações, como a ideia de progresso contra a qual se ergue (Rodolfo Monfoldo), originam-se em certos autores da Grécia Antiga ou mesmo de Roma Antiga. Neste jogo dialéctico entre o linear e o cíclico (H. Lefebvre), há uma outra possibilidade real sofrida passivamente pela civilização minóica - a lenda da Atlântida exposta por Platão nos seus diálogos Timeu e Crítias e descartada precipitadamente como ficção por Aristóteles. F.M. Cornford, A.E. Taylor, W.W. Hyde e T.G. Rosenmeyer - que, sem conhecer a decadência, foi quebrada e suprimida no alto nível do seu desenvolvimento pela violenta erupção vulcânica que ocorreu na ilha de Tera na primeira metade do século XV a.C. (1500-1479): a civilização que tinha desfrutado de «paz dentro dos muros e de abundância nos palácios» deixou como vestígio a nostalgia grega de um passado de ouro (J.V. Luce). Aliás, o mito das idades de ouro e de prata que precederam as idades bélicas do bronze e do ferro mostra até que ponto os gregos antigos sabiam que tinha havido épocas de grande paz e de prosperidade no passado remoto. As civilizações que se seguem às civilizações desenvolvidas destruídas por catástrofes naturais e por tsunamis nem sempre conseguem atingir o nível de desenvolvimento das civilizações anteriores: a história das culturas testemunha muitos casos de fenómenos regressivos que desmentem o tempo linear e a ideia de aperfeiçoamento progressivo que o acompanha, levando os homens - não só alguns gregos mas também Walter Benjamin que encara as imagens dos antepassados oprimidos como a força capaz de incendiar e atiçar a alma revolucionária dos homens de hoje, levando-os a interromper a continuidade homogénea da história dos vencedores - a colocar a idade do ouro não no futuro distante mas no passado remoto, como se a história fosse um processo de degradação. Ao contrário de Spengler, Arnold Toynbee, que também apresentou uma abordagem cíclica e pluralista da história, admitiu que cada nova civilização dispunha de determinadas vantagens sobre a civilização anterior, advogando que o Ocidente poderia entrar numa nova fase de progresso espiritual se fosse capaz de libertar-se da adoração tecnológica. O naturalismo, que em Toynbee afecta apenas os princípios gerais, em Spengler parece penetrar todos os aspectos da sua abordagem da história. Porém, Spengler não aceitou com o desprendimento clássico o fatalismo inelutável do declínio do Ocidente. Quando define o seu conceito supremo de destino histórico, Spengler introduz a noção de um tempo histórico não-cíclico, virado para o futuro, instigando - à maneira de Nietzsche - os homens ocidentais a desejar e a amar, a fomentar e a cumprir, o seu destino civilizacional, e apelando aos Anos de Decisão (Jahre der Entscheidung, 1933) que hão-de vir, na sua crise histórica derradeira. O que interessa destacar aqui não é a proposta spengleriana de construção de um "socialismo prussiano", mas o seu pathos: a confusão entre o desejo de um futuro, ainda com possibilidades em aberto, e a aceitação resignada de um resultado concreto fatalmente letal, a oscilação entre o fado natural e o destino histórico. A frase tirada de Schiller com que conclui a sua obra - «a história do mundo é o tribunal do mundo» - assume em Spengler o carácter de um imperativo moral: «O optimismo é cobardia. Nascidos nesta época, temos de percorrer até ao fim, mesmo que violentamente, o caminho que nos está traçado. Não existe alternativa. O nosso dever é permanecermos, sem esperança, sem salvação, no posto já perdido, tal como o soldado romano cujo esqueleto foi encontrado diante de uma porta de Pompeia, morto por se terem esquecido, ao estalar a erupção vulcânica, de lhe ordenarem a retirada. Isso é nobreza, isso é ter raça. Esse honroso final é a única coisa de que o homem nunca poderá ser privado» (Oswald Spengler). Ora, na hipótese do futuro do Ocidente ainda conter possibilidades em aberto, esta luta corajosa contra as forças da decadência do Ocidente num mundo cada vez mais global obriga-nos a colocar um outro problema, sem no entanto o explicitar: o problema do herói na história (Sidney Hook). A Europa de hoje - privada de lideranças políticas fortes e de elites intelectuais masculinas e viris - precisa mais de homens-época do que de homens-momento e de homens-instrumento, isto é, de lideres políticos suficientemente fortes e capazes de influenciar os acontecimentos históricos e de escolher correctamente os interesses a incrementar e os interesses que devem ser suprimidos ou enfraquecidos.
Já publiquei neste blog alguns textos sobre o pensamento filosófico de Oswald Spengler, dos quais destaco três:
3. A Antropologia de Oswald Spengler. (Infelizmente, não cheguei a desenvolver a antropologia de Oswald Spengler ou mesmo a sua filosofia da técnica.)
J Francisco Saraiva de Sousa
12 comentários:
Não suporto Cavaco Silva! :(((
Bem, estou a chegar à conclusão de que hoje somos forçados a ler de outra maneira as obras clássicas: a crítica dos meus mestres era na altura pertinente, mas hoje não goza da mesma pertinência, porque algo tematizado e previsto por Spengler está a realizar-se; a sua crítica do progresso é pertinente e a sua tese do declínio das culturas pode ser reformulado de modo a evitar a cópula fatal entre idealismo absoluto e mitologia grosseira, herança de Schelling, como viu bem Lukács.
É certo que nos devemos libertar do fatalismo histórico que faz da história uma segunda natureza, e reconhecendo os sinais de declínio, tentar lutar conscientemente contra eles.
Ainda não conclui este post, mas logo que tenha tenho vou concluir!
E ando a pensar escrever um elogio do FCPorto! :)
Bem, hoje ando fascinado com a Atlântida de Platão, que afinal era a civilização minóica destruída por uma catástrofe natural, como testemunha a ilha de Tera.
Ah, mas está tudo ligado - estudo tudo isso para avançar com uma nova teoria. O problema é que a secção de estudos gregos já não tem espaço para as novas aquisições; enfim, montes de livros coordenados e unificados pela minha mente.
Finalmente, o post está concluído! :)
Sobre as eleições presidenciais, só há uma coisa a dizer: a esquerda derrotou a esquerda. Há lideres de esquerda mais preocupados com a sua própria imagem do que com a realidade da esquerda: um défice crónico de lideranças genuinamente de esquerda, além da estupidez da defesa dos movimentos cívicos ou da cidadania.
Sempre soubemos que Cavaco Silva pertencia à dita "esquerda portuguesa". O seu poeta menor tambem não fez rica figura! Para quando António Vitorino a candidato?
Agora, o PS precisa pensar seriamente no assunto e saber escolher o seu candidato sem navegar as ondas dos outros.
Peço desculpa por publicar sem identificação. Fui seu explicando nos anos 90 e fiquei profundamente marcado pelos seus ensinamentos e visão filosófica. Na altura não soube reconhecer que estava perante uma das vozes mais originais do "pensamento português" (sem exagero). Embora separados ideologicamente por uma barreira silenciosa, sempre admirei a forma "anti-latina" como abordava o texto filosófico, o que ia de encontro à minha formação anglo-saxónica. Tive muito prazer hoje ao descobrir este site por mero acaso, e, por alcance, novamente, o seu autor.
Passados quase 15 anos completei a leitura do Adorno de Martin Jay (lolol)
Já passaram 15 anos? Pensei que tinha sido "ontem": o tempo flui muito rapidamente. :)
Sim, sempre procurei introduzir uma inflexão no pensamento português e esta crise está a ajudar...
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