terça-feira, 7 de fevereiro de 2012

Elogio de Max Weber

Max Weber
A erudição e a obsessão pela escrita de Max Weber esmagam os seus eventuais leitores pertencentes ao nosso mundo intelectualmente indigente, de resto um mundo previsto por ele quando analisou a substituição do intelectual pelo perito como resultado fatal da própria racionalização ocidental. Hoje, quando revisitei a obra de Max Weber, sobretudo os três volumes da sua obra Gesammelte Aufsätze zur Religionssoziologie, fi-lo para confrontar a sua visão da ética protestante com a mística dos descobrimentos de Jaime Cortesão: o objectivo era iniciar um estudo dedicado à Mística dos Descobrimentos, Igreja Militante e Comércio dos Escravos, tarefa que levarei a cabo logo que tenha oportunidade. Ao estudar a problemática da mística dos descobrimentos, tal como a esboçou Jaime Cortesão, detectei afinidades e diferenças entre ela e a teoria sociológica da religião de Max Weber, como se o franciscanismo de Cortesão antecipasse o calvinismo de Weber. Além disso, a discussão em torno do papel dos factores religiosos na história que marca a teoria dos descobrimentos de Cortesão traz ecos do diálogo produtivo que Weber travou com a obra de Marx. Mas há mais outra afinidade: a abordagem universalista que levou Weber a analisar as grandes religiões mundiais - confucionismohinduísmo, budismo, islamismo, judaísmo e cristianismo, dotadas de um estamento de lideres religiosos, para explicar a emergência do capitalismo no e apenas no Ocidente encontra paralelo na tentativa levada a cabo por Cortesão para colocar Portugal à frente de todo o movimento de globalização inaugurado pela expansão geográfica ibérica. Porém, a mística dos descobrimentos, na sua articulção com o espírito laico, gerou algo que desmente a filosofia dos descobrimentos de Jaime Cortesão: a escravatura que nunca foi condenada pela Igreja Católica, bastando referir algumas bulas papais ou alguns nomes da hierarquia eclesial, incluindo o nome do padre António Vieira, para mostrar que todos eles estavam cientes de que os escravos negros, sobretudo os da África Ocidental, constituíam «a força e o sustentáculo deste mundo ocidental», procurando legitimar a instituição da escravatura com recurso ao Antigo Testamento e, em especial, ao Novo Testamento. O único padre dominicano português que ousou condenar o tráfico de escravos da África Ocidental e a própria escravatura foi Fernando Oliveira, cuja obra Arte da Guerra do Mar (1555) tem um capítulo dedicado à denúncia do tráfico português de escravos da África Ocidental. Jaime Cortesão vacila entre a condenação moral da escravatura, atitude que o priva da dignidade de grande historiador que foi, e a sua atribuição ao homem económico, talvez a sua figura conceptual que melhor corresponde ao espírito capitalista de Weber: «A escravatura foi uma das consequências mais graves que a expansão portuguesa acarretou, ou melhor, impôs, na sequência duma tradição inveterada, melhorando-a nuns casos e agravando-a nos outros. Quando olhada à luz dum critério moral, contemporâneo, merece a nossa reprovação. Considerada do ponto de vista histórico e sociológico, o juízo é mais sereno. O homo economicus foi sempre cruel» (Cortesão). A problemática da escravatura foi abolida por decreto da História de Portugal pela ditadura do Estado Novo, cuja ideologia oficial apresentava a expansão portuguesa como uma cruzada dirigida pelo Infante D. Henrique contra Mafamede e sua seita, em prol da Cristandade. Durante a ditadura fascista era praticamente proibido falar da escravatura e Jaime Cortesão não se livrou completamente dessa proibição quando quase chega a pedir perdão pela escravatura. Além da documentação sobre a escravatura não ser acessível aos investigadores, sobretudo aos investigadores estrangeiros, a publicação de uma colectânea de estudos de Frédéric Mauro foi privada da secção dedicada ao tráfico negreiro, provavelmente o melhor estudo sobre a escravatura portuguesa publicado até hoje, se exceptuarmos as magníficas obras de C. R. Boxer e de Roger Bastide. Parece que a política do sigilo nacional sobre os descobrimentos, organizada por D. João II, levou Rui de Pina, um cronista medíocre, não só a apropriar-se das crónicas dos seus antecessores, como também a mutilá-las, em especial a Crónica da Conquista da Guiné de Azurara, de modo a omitir delas os passos fundamentais para a história dos descobrimentos portugueses. O furto e a falsificação são artes muito antigas em Portugal: Rui de Pina deu-lhes rosto, se acreditarmos em Damião de Góis. Doravante, resta-nos apenas uma única missão: libertar a História de Portugal das suas falsificações quase milenares, repondo a verdade no seu devido lugar, sem sentir vergonha em fazer o discurso que diz a verdade da escravatura, não só da de ontem mas também da de hoje. Em 1466, o duque de Viseu gabava-se de que os escravos negros da costa ocidental de África eram comprados e vendidos «como gado» nos mercados de escravos de Lisboa e Porto. Não adianta encobrir a verdade: o tráfico negreiro foi um negócio rentável para todos os europeus. Silenciar esse episódio na História de Portugal é um erro fatal, de resto aproveitado pelos outros europeus para denegrir os próprios portugueses, como se eles não tivessem participado nesse mesmo comércio dos escravos: a génese do capitalismo é sangrenta (Marx).

A teoria da racionalização e do desencantamento do mundo de Weber que deixou marca na Dialéctica do Esclarecimento de Horkheimer e Adorno, pode ser lida à luz da sua teoria da religião, enriquecida desde logo pela sua teoria da ciência "isenta de valores" e pela sua teoria da dominação, a última desenvolvida de modo superior em Wirtschaft und Gesellschaft. A filosofia da história de Weber mais não é do que a teoria da racionalização formal tal como aparece exposta nos seus ensaios sobre a sociologia da religião. A Escola de Frankfurt "apropriou-se" dessa teoria e articulou-a com a teoria da reificação de Lukács, de modo a radicalizar a crítica do poder, mas nunca dedicou um estudo especial a Weber, com excepção de um ensaio de Marcuse, do qual transcrevo a sua última secção Tecnologia e Libertação, sem a comentar: «Encaremos agora retrospectivamente as etapas de construção do conceito (e o próprio conceito). O capitalismo ocidental é produto das condições particulares (sociais, políticas, económicas) existentes nos fins da Idade Média, e dos tempos da Reforma; desenvolve o seu "espírito" nesse racionalismo formal que se impõe na conduta e na atitude, tanto económicas como psicológicas, dos actores do processo capitalista (mas não dos seus objectos!). Sob esta Ratio formal, a industrialização aperfeiçoa-se: progressos técnicos, crescente satisfação das necessidades, «seja qual for a necessidade em causa». Vimos que este racionalismo formal se desenvolve a partir de factores históricos, muito materiais, que se mantêm no seu progresso e que - segundo Max Weber - são condições do capitalismo: 1) a empresa privada, 2) o "trabalho livre", a existência de uma classe que, "economicamente", é obrigada a vender os seus serviços sob a ameaça da fome. Como forças produtivas, essas contradições entram na razão formal; o capitalismo amplia-se na luta de concorrência entre dois poderes desiguais (mas formalmente mais livres): a luta pela existência das pessoas, dos Estados nacionais, dos grupos de países. Para Weber, o capitalismo avança impelido por um sistema cujo objectivo é uma política de poder nacional: o imperialismo. A sua administração interna, no entanto, continua a ser formalmente racional: é a administração burocrática. Essa administração leva a cabo o domínio dos homens pelas coisas: uma técnica racional «liberta de qualquer valor» implica a separação entre os homens e os meios de produção, e a sua sujeição à eficácia e à necessidade técnica, dentro do padrão da empresa privada. A máquina decide, mas «a máquina inanimada é um espírito coagulado. E é apenas por ser assim que tem o poder de obrigar os homens a porem-se ao seu serviço» (Weber).

«E porque é "um espírito coagulado" representa também o domínio dos homens sobre os homens. Esta técnica e esta razão perpetuam assim a escravatura. A sujeição a esta técnica transforma-se simplesmente em racionalismo material político. (Mas não acontecerá antes o contrário? Terá sido, desde o início, a razão técnica domínio da empresa privada sobre o "trabalho livre"?) O destino previsto por Weber numa das suas mais convincentes formulações cumpriu-se em larga escala: «Graças à existência da máquina morta, a organização burocrática está a ponto de construir as moradas da escravidão futura, onde os homens serão talvez um dia como os camponeses do antigo Estado egípcio, condescendentes e impotentes, enquanto uma administração e uma perspectiva válidas de modo puramente técnico, isto é, racional, convertidas em valor único e último decidem soberanamente sobre a direcção dos assuntos« (Weber).

«Mas é aqui, no momento em que a sua perspicácia se torna mais penetrante, em que a sua análise se converte em autocrítica, que se vê claramente até que ponto Weber se manteve ligado à sua outra identificação: a equivalência entre razão técnica e razão capitalista burguesa. Esta crença impediu-o de ver que não é a razão "pura", formal, técnica, que constrói "as moradas da escravidão", mas a razão dominante, e que a realização da razão técnica poderia perfeitamente transformar-se no instrumento da libertação do homem. Para dizermos as coisas de outra maneira, a análise que Weber faz do capitalismo não é suficientemente alheia aos valores e às normas específicas do capitalismo. Tal era o desenvolvimento da contradição entre racionalismo formal e material, e a sua inversa: a "neutralidade" da razão técnica, em relação a todos os valores externos e materiais. Essa neutralidade permitiu a Weber aceitar os interesses (coisificados) da nação e da sua política de poder, como valores-guias da razão técnica.

«Pois o conceito da razão técnica é talvez completamente ideológico. Não é apenas a aplicação que dela se faz, mas também a própria técnica, que é domínio - sobre a natureza e sobre os homens - um domínio metódico, científico, calculado, previsível. Os objectivos e os interesses particulares do domínio não são "adicionais" nem ditames que vêm de algum lado acima da técnica. Entram na própria construção do sistema técnico. Pois a técnica é um projecto social e histórico. A sociedade projecta o que ela e os seus interesses dominantes decidem fazer dos homens e das coisas. Os objectivos do domínio são "materiais" e pertencem à forma da razão técnica.

«Deste irredutível material social Max Weber extraiu uma abstracção. Indicámos até que ponto é justa essa abstracção na análise que faz da razão capitalista: a abstracção transforma-se numa crítica dessa razão ao mostrar até que ponto o próprio racionalismo capitalista faz abstracção do homem, dá muito pouca atenção às suas necessidades e, graças justamente a essa indiferença, torna-se ainda mais produtivo e mais eficaz, mais calculador e mais metódico. E desta forma constrói e mobila com luxuosos móveis "as moradas da escravatura", pondo-as ao alcance de todos: é um juízo racional sobre uma sociedade de troca racional. Mas, pelo seu próprio desenvolvimento, essa sociedade tende a superar os seus próprios fundamentos materiais. O chefe de empresa privada já não é o indivíduo, sujeito responsável de um racionalismo económico, e o "trabalho livre" já não é a escravidão imposta "pelo chicote e pela fome". A sociedade de troca, em que tudo é tão livre e tão racional, cai sob o domínio dos monopólios políticos e económicos. O mercado e as suas liberdades (sic), cujo carácter ideológico foi amplamente descrito por Max Weber, vem a ficar subordinado a uma regulamentação implacavelmente eficaz, onde o interesse geral é rigorosamente condicionado e confiscado pelos interesses particulares dominantes. É no sentido sinistro do termo que a reificação acaba por ser "ultrapassada". A separação entre o homem e os meios de produção, em que Weber via a justo título uma necessidade técnica, converte-se na subordinação de qualquer complexo industrial ao director de programação. Com a calculadora electrónica o racionalismo formal do capitalismo alcança o seu maior triunfo, dado que ela pode servir qualquer causa e se converteu num poderoso instrumento para a política manipuladora, sendo como é capaz de calcular os riscos de perdas ou ganhos com a maior exactidão e, por último, as possibilidades de aniquilamento total com o consentimento da população, tão dócil como submissa aos seus "cálculos". A democracia de massas torna-se plebiscitária ao nível da economia e da sociedade: as massas elegem os seus próprios chefes nas moradas da escravidão.

«Mas quando a razão técnica mostra que é a razão política, é apenas porque desde o início nunca foi senão essa razão técnica e essa razão política particulares: a saber, determinadas e limitadas por interesses dominantes específicos. Tal como a razão política, a razão técnica é também histórica. A separação que introduziu entre os homens e os meios de produção é uma necessidade técnica. Mas a servidão que, a partir disso, organizou, não o é. Os êxitos a que conseguiu chegar - uma mecanização produtiva e previsível - contêm a possibilidade de um racionalismo qualitativamente diferente, em que a separação entre os homens e os meios de produção volta a separá-los de um trabalho socialmente necessário mas desumanizador. Numa época em que a produção automatizada, controlada pelos homens, assim libertados do trabalho, se tornou possível, não existe qualquer razão para que os valores formais e materiais sejam contraditórios. Não há qualquer razão para que o racionalismo formal domine impassivelmente sobre os homens. Pois, enquanto "espírito coagulado", a máquina não é neutra. Até agora a razão técnica tem sido a razão social dominante: mas pode ser modificada na sua própria estrutura. A razão técnica pode ser transformada numa tecnologia da libertação.

«Max Weber não reconheceu esta possibilidade interna da técnica. Orgulhoso por ser o burguês que era, estava fascinado pela missão histórica da burguesia; não chegou a viver a degradação desta na sociedade de massas do grande capitalismo. Mas, na sua análise da tendência em direcção à democracia de massas plebiscitária, e em direcção à subordinação da burocracia racional a um chefe irracional, há uma previsão; dentro dos seus evidentes limites, vê-se mesmo assim a superioridade da sua sociologia sobre todas as do pseudo-concreto sem teoria. Para Max Weber, essa possibilidade era apenas "utopia". E parece hoje que terá tido razão. Mas quando a sociedade industrial triunfa sobre as suas próprias possibilidades históricas, já não é a razão burguesa de Weber que fica vitoriosa. Na realidade é difícil descortinar uma razão, seja ela qual for, na escura morada da escravidão. Em última análise, fica-nos apenas um racionalismo técnico. A menos que se deva ver uma "ironia" oculta no conceito weberiano de razão, essa ironia que compreende e desaprova, e que talvez diga: é realmente a isto que vocês chamam razão?». (Herbert Marcuse)

Anexo. Bem, não pretendia comentar a análise da razão weberiana de Marcuse, com a qual não concordo em dois aspectos nucleares, embora partilhe a orientação geral da sua crítica: tal como Weber, não vejo a possibilidade interna da técnica, isto é, a possibilidade de uma tecnologia da libertação, e, além disso, não creio que o conceito de carisma seja irracional. O capitalismo - bem como o socialismo soviético - meteu-nos a todos dentro de uma terrível jaula de ferro, as moradas da escravidão. Mas vou mais longe: o homem tornou-se escravo do mecanismo interminável de satisfação das necessidades e, por isso, não vejo futuro enquanto não se abandonar esta ideia terrível da saciedade plena que faz do homem um mero animal. A teoria da administração burocrática de Weber é incontornável, sobretudo no momento presente quando o capitalismo se desloca para a China, o berço do despotismo oriental. O destino do Ocidente joga-se na consumação - ou não - desse deslocamento, que só pode ser travado pelas forças violentas do carisma. Restituir o pensamento de Weber à Filosofia é a melhor homenagem que lhe podemos prestar: repensar a sua filosofia da história no âmbito do próprio marxismo renovado, do qual nunca esteve distante. O formalismo da análise weberiana - bem patente em Wirtschaft und Gesellschaft - elimina o "conservadorismo" à medida que se desenvolve: a apologética transforma-se na crítica da irracionalidade capitalista. Compete à Filosofia - e não à ciência - zelar pela tradição ocidental!

J Francisco Saraiva de Sousa

2 comentários:

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Bem, já devem ter reparado que adicionei outro blogue aliado - o de António Quadros!

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Qto a Max Weber e Jaime Cortesão, preciso de um período de distanciamento antes de focar a minha atenção sobre eles! :)