Padre António Vieira (1608-1697) |
«Uma das grandes coisas que se vê hoje no Mundo, e nós pelo costume de cada dia não admiramos, é a transmigração imensa de gentes e nações etíopes, que da África continuamente estão passando a esta América. A armada de Eneias, disse o príncipe dos poetas que levava Tróia a Itália: Illium in Italiam portans; e das naus, que dos portos do mar Atlântico estão sucessivamente entrando nestes nossos, com maior razão podemos dizer que trazem a Etiópia ao Brasil.
«Entra por esta barra um cardume monstruoso de baleias, salvando com tiros e fumos de água as nossas fortalezas, e cada uma pare um baleato; entra uma nau de Angola e desova no mesmo dia quinhentos, seiscentos e talvez mil escravos. Os Israelitas atravessaram o mar Vermelho e passaram da África à Ásia, fugindo do cativeiro; estes atravessam o mar Oceano na sua maior largura, e passam da mesma África à América para viver e morrer cativos (...). Os outros nascem para viver, estes para servir. Nas outras terras, do que aram os homens, e do que fiam e tecem as mulheres, se fazem os comércios; naquela, o que geram os pais e o que criam a seus peitos as mães, é o que se vende e se compra. Oh trato desumano, em que a mercancia são homens! Oh mercancia diabólica, em que os interesses se tiram das almas alheias, e os riscos das próprias!
«Já se, depois de chegados, olharmos para estes miseráveis e para os que se chamam seus senhores, o que se viu nos dois estados de Job é o que aqui representa a fortuna, pondo juntas a felicidade e a miséria no mesmo teatro. Os senhores poucos, e os escravos muitos; os senhores rompendo galas, os escravos despidos e nus; os senhores banqueteando, os escravos perecendo à fome; os senhores nadando em ouro e prata, os escravos carregados de ferro; os senhores tratando-os como brutos, os escravos adorando-os e temendo-os como deuses; os senhores em pé, apontando para o açoite, como estátuas da soberba e da tirania, os escravos prostrados com as mãos atadas atrás como imagens vilíssimas da servidão e espectáculos de extrema miséria. Oh Deus! Quantas graças devemos à fé, que nos destes, porque ela só nos cativa o entendimento, para que, à vista destas desigualdades, reconheçamos, contudo, vossa justiça e providência! Estes homens não foram resgatados com o sangue do mesmo Cristo? Estes corpos não nascem e morrem como os nossos? Não respiram com o mesmo ar? Não os cobre o mesmo céu? Não os aquenta o mesmo Sol? Que estrela é logo aquela que os domina, tão triste, tão inimiga, tão cruel?
«E se as influências da sua estrela são tão contrárias e nocivas, como se não comunicam ao menos aos trabalhos de suas mãos, e como maldição de Adão, às terras que cultivam? Quem pudera cuidar que as plantas regadas com tanto sangue inocente houvessem de medrar, nem crescer e não produzir, senão espinhos e abrolhos? Mas são tão copiosas as bênçãos de doçura, que sobre elas derrama o Céu, que as mesmas plantas são o fruto, e o fruto precioso, abundante e suave, que ele só carrega grandes frotas, ele enriquece de tesouros o Brasil e enche de delícias o mundo. Algum grande mistério se encerra logo nesta transmigração (...).
«Estas são as considerações que eu faço, e era bem que fizessem todos, sobre os juízos ocultos desta tão notável transmigração e seus efeitos. Não há escravo no Brasil, e mais quando vejo os mais miseráveis, que não seja matéria para mim de uma profunda meditação. Comparo o presente com o futuro, o tempo com a Eternidade, o que vejo com o que creio, e não posso entender que Deus, que criou estes homens tanto à sua imagem e semelhança, como os demais, os predestinasse para dois Infernos: um nesta vida, outro na outra. Mas quando os vejo tão devotos e festivais diante dos altares da Senhora do Rosário, todos irmãos entre si, como filhos da mesma Senhora, já me persuado sem dúvida que o cativeiro da primeira transmigração é ordenado por sua misericórdia para a liberdade da segunda (...).
«Eis aqui, irmãos do Rosário pretos (...), eis aqui o vosso presente estado, e a esperança que ele vos dá do futuro (...). Neste estado da primeira transmigração, que é a do cativeiro temporal, vos estão Deus e sua Santíssima Mãe dispondo e preparando para a segunda transmigração, que é a da liberdade eterna. Isto é o que vos hei-de pregar hoje para vossa consolação. E reduzido a poucas palavras será este o meu assunto: que a vossa irmandade da Senhora do Rosário vos promete a todos uma carta de alforria, com que não só gozeis a liberdade eterna na segunda transmigração da outra vida, mas também vos livreis nesta do maior cativeiro da primeira. Em lugar das alvíssaras que vos devera pedir por esta boa nova, vos peço me ajudeis a alcançar a graça com que vos possa persuadir a verdade dela (...)». (Padre António Vieira, Sermão Vigésimo Sétimo, 1688, pregado na Baía à Irmandade dos Pretos de um Engenho.)
Verdade seja dita: os Sermões do Padre António Vieira ainda não foram alvo de uma hermenêutica subtil e profunda. O Sermão Vigésimo Sétimo faz parte da série Maria, Rosa Mística, devendo ser lido em ligação com o Sermão Décimo Quarto da mesma série, também ele pregado na Baía à Irmandade de Pretos de um Engenho em 1633. O conjunto aponta antecipadamente para uma teologia da libertação, como demonstraria uma hermenêutica demorada das duas transmigrações do Evangelho: In transmigratione Babylonis - a transmigração que levou os filhos de Israel da sua pátria para o cativeiro da Babilónia, e Et post transmigrationem Babylonis - a transmigração que os levou do cativeiro para a sua pátria. (A descrição das desigualdades sociais realizada por António Vieira no terceiro parágrafo deste Sermão traz à memória os textos célebres de Marx e de Engels sobre a exploração e a luta de classes!) Há, portanto, uma ambiguidade produtiva no modo como António Vieira trata as duas transmigrações bíblicas quando as usa para compreender a escravatura dos negros: a carta de alforria promete e garante a liberdade eterna - como consolação ao sofrimento terreno, sem fechar completamente a porta à possibilidade de uma libertação temporal do cativeiro. No entanto, embora fosse sensível à causa da Irmandade dos Pretos e solidário com o seu sofrimento, António Vieira vacila quando logo a seguir realça que o sangue, o suor e as lágrimas dos escravos negros de Angola alimentam e sustentam o Brasil, que não pode - na sua perspectiva - dispensar o seu trabalho forçado, sob qualquer pretexto: o trabalho escravo «enriquece de tesouros o Brasil e enche de delícias o mundo». E, tal como Bartolomeu de Las Casas, António Vieira defende que, para assegurar a liberdade dos Ameríndios, afinal os únicos indígenas brasileiros protegidos pelos jesuítas, é necessário aumentar a importação de escravos negros da África Ocidental. O Sermão da Epifânia de 1662 combate os preconceitos raciais, mas não rompe com a justificação ideológica da escravatura dos negros que trabalhavam nos engenhos de açúcar, com recurso a uma teoria engenhosa da recompensa adequada no Paraíso: «Trabalhemos e rezemos, do ar viveremos, no céu comerão bolos os que vivem como tolos». (Oh, infelizmente, hoje são os portugueses que vivem como tolos sem saber se comerão bolos amanhã! A conversa informal entre Vítor Gaspar, ministro das finanças português, e Wolfgang Schauble, ministro das finanças alemão, foi simplesmente humilhante para Portugal! Sádico em Portugal, Vítor Gaspar é masoquista no exterior, exibindo uma submissão digna de açoite!)
J Francisco Saraiva de Sousa
1 comentário:
Também não vou comentar o discurso de Presidente do Parlamento Europeu. Os alemães sempre tiveram inveja do império colonial português. Por isso, a Europa não tem nada a ver com as nossas relações com os países lusófonos!
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