sábado, 11 de fevereiro de 2012

Pêro Vaz de Caminha: Um portuense no Brasil

A primeira Missa nas terras de Vera-Cruz, 1500
Pêro Vaz de Caminha, filho do mestre da Balança da Moeda da cidade do Porto, nasceu no Porto em 1450, e morreu na Índia em 1501. Sucedeu ao pai no cargo de mestre da Balança da Moeda da cidade do Porto em 1476, sendo cavaleiro da Casa de D. João II e de D. Manuel. Em 1497, foi encarregado pela Câmara do Porto da redacção dos capítulos a serem apresentados nas cortes de 1458 em Lisboa. Viajou até à Guiné antes de 1500, ano em que acompanhou Pedro Álvares Cabral na viagem que os levou à descoberta do Brasil. A sua missão era assumir o cargo de feitor da Índia, onde morreu no ano seguinte, em virtude de um ataque dos mouros à feitoria. Eis um extracto da Carta do Achamento do Brasil (1 de Maio de 1500), carta enviada a el-rei D. Manuel para lhe dar notícia do achamento da terra do Brasil:

«(...) E assim seguimos nosso caminho, por este mar de longo, até que terça-feira das Oitavas da Páscoa, que foram 21 dias de Abril, topámos alguns sinais de terra (...). E à quarta-feira seguinte, pela manhã, topámos aves, a que chamam fura-buchos. E neste dia, a horas de véspera, houvemos vista de terra.

«Primeiramente, de um grande monte mui alto e redondo, e de outras serras mais baixas, ao Sul dele, e de terra chã, com grandes arvoredos; ao qual monte alto o capitão pôs mone o Monte Pascoal, e à terra a Terra da Vera-Cruz.

«(...) Ali ficámos toda aquela noite. E à quinta-feira, pela manhã, fizemos vela e seguimos direitos à terra, indo os navios pequenos adiante (...), até meia légua da terra, onde todos lançámos âncoras, em direito da boca de um rio. E chegaríamos a esta ancoragem às dez horas, pouco mais ou menos. E dali houvemos vista de homens que andavam pela praia, obra de sete ou oito, segundo os navios pequenos disseram, por chegarem primeiro.

«Ali lançámos fora os batéis e esquifes, e vieram logo todos os capitães das naus a esta nau do capitão-mor, e ali falaram. E o capitão mandou no batel, em terra, Nicolau Coelho para ver aquele rio. E tanto que ele começou a ir para lá, acudiram pela praia homens, quando dois, quando três, de maneira que, quando o batel chegou à boca do rio, estavam ali dezoito ou vinte homens pardos, todos nus, sem nenhuma coisa que lhes cobrisse suas vergonhas. Traziam arcos nas mãos, e suas setas. Vinham todos rijos para o batel; e Nicolau Coelho lhes fez sinal que pusessem os arcos. E eles os depuseram. Ali não pôde deles haver fala nem entendimento que aproveitasse, por o mar quebrar na costa. Somente deu-lhes um barrete vermelho e uma carapuça de linho, que levava na cabeça, e um sombreiro preto. E um deles lhe deu um sombreiro de penas de aves, compridas, com uma copazinha pequena de penas vermelhas e pardas, como de papagaio. E outro lhe deu um ramal grande de continhas brancas, miúdas, que querem parecer de aljaveira, as quais peças creio que o capitão manda a Vossa Alteza. E com isto se volveu às naus por ser tarde, e não poder deles haver mais fala por azo do mar.

«A noite seguinte, ventou tanto sueste com chuvaceiros, que fez caçar as naus, e especialmente a capitaina. E sexta pela manhã, às oito horas, pouco mais ou menos, por conselho dos pilotos, mandou o capitão levantar âncoras e fazer vela (...). E sendo nós pela costa, obra de dez léguas donde tínhamos levantado ferro, acharam os ditos navios pequenos um recife com um porto dentro, muito bom e muito seguro, com uma mui larga entrada; e meteram-se dentro e amainaram. E as naus arribaram sobre eles. E um pouco ante o sol-posto amainaram, obra de uma légua do recife, e ancoraram em onze braças.

«E estando Afonso Lopes, nosso piloto, em um daqueles navios pequenos, por mandado do capitão, por ser homem vivo e destro para isso, meteu-se logo no esquife a sondar o porto dentro. E tomou em uma almadia dois daqueles homens da terra, mancebos e de bons corpos. E um deles trazia um arco, e seis ou sete setas. E na praia andavam muitos com seus arcos e setas; mas não lhes aproveitaram. Trouxe-os logo, já de noite, ao capitão, onde foram recebidos com muito prazer e festa.

«A feição deles é serem pardos, maneira de avermelhados, de bons rostos e bons narizes, bem feitos. Andam nus, sem nenhuma cobertura. Nem estimam nenhuma coisa cobrir ou mostrar suas vergonhas. E estão acerca disso com tanta inocência como têm em mostrar o rosto. Traziam ambos os beiços de baixo furados e, metidos por eles cada um seus ossos de osso, brancos, de comprimento de uma mão travessa, e da grossura de um fuso de algodão, e agudos na ponta com um furador. Metem-nos pela parte de dentro do beiço, e o que lhes fica entre o beiço e os dentes é feito como de roque-de-xadrez. E em tal maneira o trazem ali encaixado que lhes não dá paixão, nem lhes estorva a fala, nem o comer nem o beber.

«Os cabelos seus são corredios, e andavam tosquiados, de tosquia alta mais do que sobre-pente, de boa grandura, e rapados até por cima das orelhas. E um deles trazia por baixo da solapa, de fonte a fonte, para detrás, uma espécie de cabeleira de penas de aves, amarela, que seria do comprimento de um coto, mui basta e mui cerrada, que lhe cobria o toutiço e as orelhas (...).

«O capitão, quando eles vieram, estava assentado em uma cadeira, e uma alcatifa aos pés, por estrado; e bem vestido, com um colar de ouro, mui grande, ao pescoço (...). E nós outros, que aqui na nau com ele imos, assentados no chão, pela alcatifa. Acenderam tochas. E eles entraram. E não fizeram nenhuma menção de cortesia, nem de falar ao capitão, nem a ninguém. Porém um deles pôs olho no colar do capitão, e começou a acenar com a mão para a terra, e depois para o colar, como que nos dizia que em terra havia ouro; e também viu um castiçal de prata, e assim mesmo acenava para a terra e novamente para o castiçal, como se lá também houvesse prata.

«Mostraram-lhes um papagaio pardo, que aqui o capitão traz: tomaram-no logo na mão e acenaram para a terra, como que os havia ali. Mostraram-lhes um carneiro: não fizeram caso dele. Mostraram-lhes uma galinha: quase tiveram medo dela, e não lhe queriam pôr a mão; e depois a tomaram, como espantados. Deram-lhes ali de comer pão e pescado cozido, confeitos, fartéis de mel e figos passados. Não quiseram comer daquilo quase nada; e alguma coisa, se a provaram, lançavam-na logo fora. Trouxeram-lhes vinho em uma taça; mal lhe puseram a boca e não gostaram dele nada, nem o quiseram mais. Trouxeram-lhes  água em uma albarrada; tomaram cada um o seu bocado e não beberam; somente lavaram as bocas e lançaram fora.

«Viu um deles umas contas de rosário, brancas. Acenou que lhas dessem, e folgou muito com elas, e lançou-as ao pescoço. e depois tirou-as e enrolou-as no braço; e acenava para a terra e novamente para as contas e para o colar do capitão, como que dariam ouro por aquilo (...)

«Sábado pela manhã, mandou o capitão fazer vela e fomos demandar a entrada, a qual era mui larga, e alta de seis e sete braças. E entraram todas as naus dentro e ancoraram-se em cinco, seis, ancoragem dentro tão grande e tão formosa e tão segura que podem jazer nela mais de duzentos navios e naus (...). À tarde, saiu o capitão-mor em seu batel, com todos nós outros, e com outros capitães das naus em seus batéis, a folgar pela baía, em frente da praia. Mas ninguém saiu em terra, por o capitão não querer, sem embargo de ninguém nela estar. Somente saiu ele, com todos nós, em um ilhéu grande, que na baía está, e que na baixa-mar fica mui vazio (...).

«Ao domingo de Pascoela, pela manhã, determinou o capitão de ir ouvir missa e pregação naquele ilhéu. E mandou a todos os capitães que se aprestassem nos batéis e fossem com ele, e assim foi feito. Mandou naquele ilhéu armar um esparavel e, dentro dele, levantar um altar mui bem corregido. E ali, com todos nós outros, fez dizer missa; a qual disse o Padre Frei Henrique, em voz entoada, e oficiada com aquela mesma voz pelos outros padres e sacerdotes, que todos eram ali. A qual missa, segundo meu parecer, foi ouvida por todos com muito prazer e devoção. Ali era com o capitão a bandeira de Cristo, com que saiu de Belém, a qual esteve sempre alta, da parte do Evangelho.

«Acabada a missa, desvestiu-se o padre e subiu a uma cadeira alta, e nós todos lançados por essa areia; e pregou uma solene e proveitosa pregação da história do Evangelho, ao fim da qual tratou da nossa vinda e do achamento desta terra, conformando-se com o sinal da Cruz, sob cuja obediência viemos; o que foi muito a propósito e fez muita devoção.

«Enquanto estivemos à missa e à pregação, seria na praia outra tanta gente (...), a qual andava folgando. E olhando-nos, sentaram-se. E depois de acabada a missa, assentados nós à pregação, levantaram-se muitos deles e tangeram corno ou buzina e começaram a saltar e dançar um pedaço (...).

«E hoje, que é sexta-feira, primeiro dia de Maio, pela manhã, saímos em terra com nossa bandeira; e fomos desembarcar acima do rio, contra o Sul, onde nos pareceu que seria melhor chantar a cruz, para melhor ser vista. E ali assinalou o capitão o lugar onde fizessem a cova para a chantar. E enquanto a ficaram fazendo, ele com todos nós outros fomos pela cruz, abaixo do rio, onde ela estava. Trouxemo-la dali, com esses sacerdotes e religiosos diante, cantando, em maneira de procissão. Eram já aí alguns deles, obra de setenta ou oitenta. E quando nos viram assim vir, alguns se foram meter debaixo dela (a) ajudar-nos. Passámos o rio, ao longo da praia, e fômo-la pôr onde havia de ficar, que será do rio obra de dois tiros de besta. Ali andando nisto, viriam bem cento e cinquenta, ou mais.

«Chantada a cruz, com as armas e a divisa de Vossa Alteza (...), armaram altar ao pé dela. Ali disse missa o Padre Frei Henrique, a qual foi cantada e oficiada (...). Ali estiveram connosco, a ela, obra de cinquenta ou sessenta deles, assentados todos de giolhos assim como nós. E quando veio ao Evangelho, que nos erguemos todos de pé, com as mãos levantadas, eles se levantaram connosco, e alçaram as mãos, estando assim até ser acabado; e então tornaram-se a assentar como nós (...). E, acabada a pregação, trazia Nicolau Coelho muitas cruzes de estanho com crucifixos (...). E houveram por bem que lançassem a cada um sua, ao pescoço. Pelo que se assentou o Padre Frei Henrique ao pé da cruz, e ali, um a um, atada em um fio ao pescoço, lançava a sua, fazendo-lha primeiro beijar e alevantar as mãos. Vinham a isso muitos; e lançaram-nas todas, que seriam obra de quarenta ou cinquenta (...)» (Pêro Vaz de Caminha).

Na sua obra Visão do Paraíso, Sérgio Buarque de Holanda (1958) defende uma tese curiosa sobre a América Portuguesa que merece ser repensada: a obsessão do ouro tolheu a mente dos portugueses quando receberam na nau os dois mancebos índios, como se eles fossem capazes de entender uma cultura que os transcendia, logo eles que faziam parte de uma tribo antropofágica. O grande acontecimento da história mundial realizado pelos portugueses foi a descoberta do caminho marítimo para a Índia em 1498 pela frota de Vasco da Gama. Arnold Toynbee usou-o para formular uma nova periodização da história da humanidade, dizendo haver uma época pré-gâmica e outra pós-gâmica: quer dizer que uma é anterior ao feito maior dos navegadores portugueses, a outra posterior. Ora, nesta viragem decisiva da história, a primeira globalização, participaram portuenses, depois de terem contribuído para o desenvolvimento da arte de navegar, não só o Infante D. Henrique, mas também Tomé Lopes, autor das Navegações às Índias Orientais, e Pêro Vaz de Caminha, autor da famosa Carta do Achamento do Brasil, para só referir estes nomes. Cristóvão Colombo deu nome às civilizações ditas pré-colombianas, mas nós também podemos falar das culturas pré-cabralinas da América Portuguesa, duas das quais são as culturas tribais dos Tupinambás e dos Tupiniquins, dois grupos tribais rivais que se tornaram mais agressivos entre si a partir do momento em que os tupiniquins apoiaram os portugueses contra os tupinambás e os seus "aliados": os piratas franceses. Os historiadores brasileiros já utilizam essa designação quando falam da história pré-cabralina do Brasil. A historiografia do Brasil teve como pai fundador Pêro Vaz de Caminha, um cidadão do Porto, a cidade portuguesa que impulsionou o desenvolvimento da cultura urbana brasileira no período em que o Brasil acordava para a independência. As ligações entre o Porto e o Brasil são de tal modo profundas que podemos falar de um Porto Brasileiro - Júlio Dinis falou dele! - e de um Brasil Portuense.

J Francisco Saraiva de Sousa

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