terça-feira, 21 de fevereiro de 2012

Franz Kafka e Georg Lukács

Franz Kafka (1883-1924)
«O medo do socialismo faz do homem, situado no seio do regime capitalista, um ser em perdição; no próprio Dostoiévski, devido às suas ligações confessionais e místicas com o pan-eslavismo, esta tendência mantém-se, no entanto, oculta (pelo menos em parte), e, em larga medida, somente aparente. Evidentemente a evolução, esboçada por Dostoiévski, não podia manter-se a este nível inicial. Substituindo a crítica da inumanidade pela da incultura capitalista, Nietzsche sistematiza numa concepção do mundo a atitude prática peculiar à personagem de Dostoiévski. Não nos cabe demonstrar aqui como esta identificação entre o capitalismo e o socialismo, este medo do "nivelamento por baixo" na "idade da técnica", esta recusa do progresso e da democracia se desenvolveram até chegar à demagogia social do nazismo; aliás, descrevi este processo detalhadamente na minha Destruição da Razão. Mostrei igualmente, nesta obra, que, após a queda de Hitler, esta mesma tendência se prolonga sob outras formas. A aversão ao socialismo torna-se uma verdadeira ideologia de cruzada e, ao mesmo tempo que se proclama, como palavra de ordem, a defesa da democracia, receia-se cada vez mais um "nivelamento por baixo", que ameaçaria o reino das pretensas "elites". Tudo isto na atmosfera da era atómica, com o sentimento de que o mundo corre para a sua perda e um pânico interior cada vez maior, que leva muitas vezes a aceitar, e mesmo a atiçar, a guerra fria». (Georg Lukács)

Os comentaristas da Televisão Portuguesa desconhecem ou, pelo menos, dizem desconhecer a origem social da ideologia neoliberal. Será que nunca leram uma obra de Walter Lippmann? Ora, aqui neste texto citado em epígrafe, Georg Lukács define correctamente o neoliberalismo como outra forma de nazismo que traduz no nosso tempo indigente, o da incultura capitalista generalizada, o medo do socialismo. A "Dona Merkel", como a denominou ontem Silva Lopes no debate Prós e Contras, dedicado à Grécia, protagoniza hoje na Europa essa ideologia de cruzada que prolonga de outra forma o nazismo: o neoliberalismo que quer desmantelar todo o Estado Social Europeu. O renascimento do imperialismo alemão, não pela via da guerra, mas pela via financeira, torna A Destruição da Razão uma obra demasiado actual. Embora não concorde com a estética de Lukács, sobretudo com a sua teoria do reflexo estético, reconheço que ele foi um dos vencedores a longo prazo do debate sobre o expressionismo promovido pela revista Das Wort em 1937-38: a sua crítica da vanguarda na literatura não pode ser inteiramente descartada, porque o tempo - o nosso tempo - lhe deu razão nas suas linhas histórico-literárias gerais. O debate sobre o expressionismo merece ser revisitado. Hoje não nos podemos colocar ao lado da defesa do vanguardismo por Ernst Bloch contra a defesa do realismo por Lukács, ou vice-versa: o debate precisa ser dialectizado, as posições precisam ser mediatizadas, de modo a descobrirmos nas suas malhas e nas suas encruzilhadas as origens distantes da crise do capitalismo de hoje. A crítica lukacsiana da vanguarda literária é a crítica da nossa situação social e cultural presente, agravada paradoxalmente pelo nivelamento por baixo que nos lançou na barbárie cultural total: a ignorância activa - o horror pelo conhecimento de Lacan! - foi diplomada. O desenvolvimento desta hipótese implica não só a crítica radical do capitalismo, como também a auto-crítica do pensamento de esquerda, uma arte em que Lukács era versado. Georg Lukács foi um dos filósofos mais brilhantes de todo o século XX: os seus inimigos burgueses e pequeno-burgueses, reaccionários ou revolucionários, seduzidos pela categoria existencial da angústia, recuperada para a filosofia por Kierkegaard e por Heidegger, para já não falar dos outros existencialistas, nunca quiseram compreender que a sua crítica da vanguarda literária pode e deve ser reconstruída a partir da fetichização da subjectividade: «(...) dissolução do homem e dissolução do mundo pertencem ambas ao mesmo sistema, engrandecem-se e reforçam-se mutuamente. Na base encontramos sempre a mesma concepção do homem: um ser desprovido de qualquer unidade objectiva, simples sequência incoerente de fragmentos instantâneos, extraídos de experiências vividas que são, por definição, tão impenetráveis para o indivíduo que as vive como para os outros homens» (Lukács). Dos seus múltiplos ensaios escolho aquele que parece ser o mais controverso mas também o mais fascinante, pelo menos para mim: Franz Kafka ou Thomas Mann? Apesar de apreciar os romances realistas de Mann, eu prefiro ler Kafka, mas esta minha preferência não me impede de reconhecer o momento de verdade da crítica que Lukács lhe dirige. Lukács era demasiado selectivo para referir um autor que não admirasse de algum modo: o mérito de Kafka nunca esteve em questão. Porém, a qualidade artística de Kafka não o coloca acima da crítica, sobretudo quando submete o homem ao poder de uma força transcendente que o esmaga: «Foi Kafka quem traduziu com mais rigor e da maneira mais sugestiva o sentimento do mundo que resulta de tal atitude (a atitude da impotência do homem para mudar o seu destino). Quando, em O Processo, o herói principal, Joseph K, é conduzido ao suplício, o autor diz de forma bastante evocadora: "Pensava nessas moscas que, agitando as pequenas patas quebradas, tentam escapar ao visco". Esta impressão de total incapacidade, esta paralisia perante a força incompreensível e inelutável das circunstâncias, é o motivo fundamental de todos os seus livros. O que se conta em O Castelo é muito diferente daquilo que se lê em O Processo - e mesmo completamente oposto -, no entanto, o sentimento (ou melhor: a concepção do mundo) da mosca caída na armadilha, que se debate em vão, atravessa toda a obra de Kafka. Esta impressão de impotência elevada ao nível de concepção do mundo, que em Kafka se transformou na angústia imanente ao próprio devir do mundo, o próprio abandono do homem em face dum temor inexplicável, impenetrável, inelutável, faz da sua obra como que o símbolo de toda a arte moderna. Todas as tendências que, noutros artistas, assumiam uma forma literária e filosófica, reúnem-se aqui no temor pânico, elementar, platónico, perante a realidade efectiva, eternamente estranha e hostil ao homem, e isto a um grau de espanto, de confusão, de estupor, que não tem paralelo em toda a história da literatura. A experiência fundamental da angústia, tal como a viveu Kafka, resume bem toda a decadência moderna da arte» (Lukács, A Concepção do Mundo subjacente na Vanguarda Literária). Em vez de reconstruir livremente a defesa do realismo por Lukács, em articulação com a sua crítica da vanguarda literária, prefiro dar a palavra a Lukács, numerando os parágrafos seleccionados:

1. «O caso de Kafka é mais complexo. Ele é, entre os escritores de vanguarda, um dos poucos que operam uma selecção dos detalhes, que apenas retêm aqueles que põem em relevo o essencial e que, por consequência, não sejam, sob esse aspecto, naturalistas. Do ponto de vista puramente formal, a sua maneira de tratar os detalhes é análoga, por consequência, nos seus princípios, à dos realistas. Para descobrir a oposição, é preciso considerar a estrutura interna da própria obra, essa realidade essencial e efectiva, que condiciona, em última análise, a escolha e a ordenação dos detalhes. Esta realidade é, para Kafka, a afirmação duma transformação inelutável - o Nada - e, por consequência, um recurso necessário à alegorização, que rompe a unidade da criação artística. (...) Do ponto de vista formal, Kafka está mais próximo do mundo terreno do que Hoffmann; na obra do primeiro, com efeito, o elemento fantasmagórico liga-se interiormente às formas que toma a vida quotidiana sob o regime capitalista; a própria vida torna-se fantasmagoria, sem que, no entanto, intervenha qualquer fantasma à maneira hoffmanniana. Mas é isso precisamente que quebra a unidade efectiva do mundo, que transforma - de modo essencial - na própria substância da realidade objectiva aquilo que não é mais, na verdade, do que uma visão subjectiva. A angústia, o pânico em face dum mundo totalmente reificado - o mundo do capitalismo no período imperialista (com o pressentimento das suas variantes fascistas) - ultrapassa o indivíduo que o sente; torna-se substância, mas só pode ser pseudo-substância subjectiva, indevidamente hipostasiada, e é por isso que a imagem da careta se transforma em imagem careteante. Consequentemente, por muito que Kafka se distinga, nos seus processos descritivos, da maior parte dos escritores da vanguarda, o seu princípio mais essencial de representação é, no entanto, o mesmo: o mundo concebido como a alegoria dum Nada transcendente. Com os sucessores de Kafka, esta diferença esfuma-se até desaparecer, e volta-se a uma forma "normal" de vanguardismo niilista (em Beckett, por exemplo, que une os temas de Kafka aos de Joyce, ou em Bien en Vue, de Rehn, em que as bases naturalistas ressaltam mais claramente ainda)» (Lukács).

2. «Franz Kafka é o exemplo clássico do homem que se imobiliza, com um pânico cego da realidade efectiva. A sua situação excepcional na literatura de hoje deve-se a ter sabido exprimir, de maneira directa e simples, esse sentimento em relação à vida; procuraríamos em vão, na sua obra, os requintes formais, as técnicas amaneiradas, pelas quais outros escritores pretendem traduzir a mesma estrutura de base. É mesmo esta estrutura, na sua simples imediaticidade, que determina a sua própria maneira de escrever. Por este aspecto da sua arte, pode parecer que Kafka pertence ao grupo dos grandes realistas. E esta filiação será ainda mais evidente - do ponto de vista subjectivo -, se se pensar que poucos escritores souberam, com igual poder, apreender o que o mundo tem de primitivo e de elementar, e o assombro sentido diante daquilo que nunca foi. (Nada me angustia mais do que aquilo que nunca foi e que podia ter sido!) Num tempo como o nosso, em que a rotina da experiência e do cliché reina sobre a maior parte dos que escrevem e dos que lêem, esta veemente impetuosidade produz necessariamente muito forte impressão. E o que aumenta ainda mais a intensidade desta arte é o facto de que, na obra de Kafka, não somente o sentimento descritivo é duma sinceridade sem afectação, muito rara na literatura dos nossos dias, como ainda o mundo do artista cria e conserva uma simplicidade e uma evidência que estão de acordo com esse sentimento. É nisto que reside a mais profunda originalidade de Kafka. Kierkegaard escreveu algures: "Quanto mais um homem é original, mais a sua angústia é profunda". É com tal originalidade perfeitamente autêntica, que Kafka representa esta angústia e, por isso mesmo, a estrutura objectiva que lhe apontam como causa exterior e que deve justificá-la. Se Kafka é um artista incomparável, não é de modo nenhum porque tenha descoberto novos meios de expressão, mas antes porque dá ao mundo objectivo, tal como o concebe, e às personagens que situa em face desse mundo, uma evidência ao mesmo tempo sugestiva e exasperante: "O que choca, diz Adorno, não é tanto a monstruosidade desse mundo mas a sua evidência". /O mundo infernal do capitalismo actual, esse poder demoníaco que paralisa toda a actividade verdadeiramente humana, eis o que fornece à obra de Kafka os seus verdadeiros materiais. O autor exprime-os com simplicidade e franqueza, mas mesmo essas qualidades são, como em todos os artistas, produto de tendências complexas, que mutuamente se recortam e se opõem. Desta complexidade, retenhamos apenas um único factor. No tempo em que Kafka escrevia, a realidade social que alimentava a sua angústia estava ainda muito longe, no plano objectivo, de atingir o seu completo desenvolvimento. Aquilo que ele descreve, por consequência, como um inferno, não é ainda o mundo, concreta e realmente infernal, que será mais tarde o fascismo; mas, à luz da sua angústia "profética", a velha monarquia habsburguesa toma um aspecto fantasmagórico. A indeterminação própria da angústia encontra o seu conteúdo mais adequado, no plano da arte, na cor local de Praga, com a sua atmosfera indefinível, que parece subtraí-la à história e ao tempo. Kafka aproveita, portanto, de duas maneiras a situação histórica em que está situado; por um lado, as suas particularidades concretas, porque enraízam imediatamente no velho império austríaco, recebem um hic et nunc sensível e a aparência duma existência social; por outro lado, a indeterminação daquilo que constitui, em última análise, a objectividade própria ao universo kafkiano exprime-se, pela pena do autor, com uma autêntica ingenuidade, a ingenuidade do puro pressentimento, do verdadeiro não-saber; e deste modo assume, na sua obra, o valor duma "condição humana", que se pretende "eterna", de maneira mais orgânica do que o farão os reflexos duma realidade social infernal e angustiante através das obras de escritores posteriores que, eliminando antecipada e muito artificialmente as determinações sociais concretas que se lhes apresentarão, serão forçados (para descrever precisamente o destino intemporal da existência humana em geral) a dissimular essa realidade sob os requintes duma procura formal. Daqui resulta, na obra de Kafka, uma surpreendente intensidade de efeitos imediatos, um muito mais forte poder de sugestão, que não conseguem suprimir, porém, o aspecto alegórico do hic et nunc. Porque mesmo os detalhes mais maravilhosamente sugestivos, referem-se sempre a uma realidade que os transcende, àquilo que constitui a própria essência do período imperialista, intuitivamente pressentida e estilizada em ser intemporal.  Não se trata, pois, como nos autores realistas, de factos centrais, de nós de bifurcação, de pontos cruciais para os conflitos que se desenrolam no presente, mas - em última análise - de simples cifras que se referem a um inapreensível além. Mais evidente, por consequência, é o seu poder imediatamente provocador, mais profundo é também o abismo, mais premente a ruptura alegórica entre o ser e o significado» (Lukács).

3. Georg Lukács coloca um desafio aos intelectuais para salvar a humanidade, tomando dois nomes sonantes da literatura ocidental como representantes dos dois grupos de escritores burgueses: a escolha entre Franz Kafka ou Thomas Mann? «Uma decadência artisticamente interessante ou um realismo crítico verdadeiro como a vida?» «O elemento decisivo é a resolução humana. O simples facto de fazer, no sentido tchekoviano, uma "interrogação racional", implica já, implica mesmo em primeiro lugar, uma direcção determinada. E se é realmente necessário escolher, escolher frutuosamente, a escolha que se impõe ao homem dos nossos dias é esta: aproximar-se da angústia ou afastar-se dela, eternizá-la ou ultrapassá-la, reduzi-la a um sentimento igual aos outros, na série infinitamente variada dos sentimentos que, juntos, contribuem para a constituição da vida interior ou fazer dela a determinante essencial da "condição humana". Todas estas questões, bem entendido, apenas dizem respeito secundariamente aos temas e às formas literárias, referem-se, em primeiro lugar, à própria atitude do homem em relação à vida, a atitude que o escritor tem por tarefa exprimir, quando compõe a sua obra. E sabemos já que, nesta atitude, o elemento decisivo é saber se o homem se desvia da realidade social, do devir histórico presente, para se votar a vãs abstracções - o que leva imediatamente à segregação da angústia no seio da consciência - ou se liga a esta realidade, a este devir, de maneira concreta, para combater inimigos concretos e promover aquilo que julga favorável. É claro que, antes de escolher uma destas duas atitudes, é necessário ter resolvido, em primeiro lugar, uma questão prévia: o homem concebe-se a si próprio como uma vítima desarmada de poderes transcendentes, incognoscíveis ou invencíveis, ou antes como membro activo de uma comunidade humana, no seio da qual lhe cabe desempenhar o seu papel, mais ou menos eficaz, mas que, à sua maneira, influencia sempre o destino da humanidade?» (Lukács). Conhecemos a decisão tomada por Lukács: escolheu Thomas Mann em detrimento de Franz Kafka. A sua opção foi severamente criticada no seu tempo, não só pelos escritores burgueses como também pelos escritores marxistas, mas hoje, quando a arte se converteu numa instituição mercantil, se quisermos tomar a nossa própria posição, não podemos negligenciar a sua crítica da vanguarda literária. A história efectiva deu-lhe razão, em grande medida, sem no entanto ter desmentido as estruturas fundamentais da condição humana. (Reparem que não concordo com a opção política de Lukács, nem sequer preciso descartar Kafka: afinal, sou herdeiro de toda essa tradição, para o bem e para o mal.)

J Francisco Saraiva de Sousa

3 comentários:

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Reconheço que não é fácil compreender a crítica de Lukács. Um dia destes formalizo a hipótese e clarifico os conceitos.

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Ah, para facilitar a assimilação conceptual, melhorei o primeiro parágrafo. :)

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Um amigo alemão, surpreendido com este texto, perguntou-me se "eu não gosto de dinheiro". Por momentos, pensei que ele estava muito americanizado, mas conheço bem o seu ódio pela América. Enfim, o fetichismo predomina mas encobre algo mais - a ambição de domínio total.