Hospital (Psiquiátrico) de Magalhães Lemos, inaugurado em Outubro de 1962, Porto |
«É sobretudo aos médicos judeus, peregrinos todos, que a medicina portuguesa deve o seu máximo esplendor. São no século XVI Amato e Rodrigo de Castro, Zacuto no século XVII, Ribeiro Sanches no século XVIII. A intolerância religiosa foi o principal estorvo que encontrou, entre nós, o desenvolvimento da medicina, como de resto o de todas as outras ciências». (Maximiano Lemos)
A História da Psiquiatria em Portugal está por fazer: o esboço traçado por Barahona Fernandes que introduziu a ergoterapia no Hospital de Júlio de Matos em Lisboa (1942), é insuficiente e paupérrimo. A pobreza psicológica dos portugueses - provavelmente um traço genético desta população ibérica - ajuda a compreender o seu desinteresse pela psicologia. Todas as histórias da psiquiatria que tenho lido, não referem um único autor português como precursor ou construtor da psiquiatria moderna. Isto não significa que não tenha havido em Portugal psicólogos e psiquiatras dignos de serem referidos nessas histórias da psiquiatria europeia. A única excepção a esta regra do silêncio é o nome de Egas Moniz (1874-1955), utilizado para mostrar como os portugueses tratam a vida mental dos seus doentes mentais: a psicocirurgia destrói grande massa de tecido nervoso, privando os doentes mentais de partes importantes do seu cérebro. No entanto, não podemos responsabilizar os autores estrangeiros pelo facto de não levarem em conta os contributos portugueses: os portugueses devem ser responsabilizados pelo facto de não serem levados a sério pelas comunidades científicas do mundo civilizado. Algumas histórias da psiquiatria - sobretudo as anglófonas - destacam um ou outro contributo espanhol, nomeadamente o de Juan Luis Vives (1492-1540), cujo tratado De Anima et Vita (1538) é visto como um precursor do De Passionibus de Descartes (1596-1650). Porém, no momento em que começou a emergir a psiquiatria moderna no decurso do século XVIII, estas histórias da psiquiatria deixam de mencionar autores ibéricos, concentrando-se exclusivamente nos movimentos ocorridos nos países europeus mais influenciados pela Reforma. Há, portanto, algumas datas a reter para compreender o desenvolvimento do discurso da loucura ao longo dos séculos XVII e XVIII. A primeira data a fixar é 1347, quando a Grande Peste Negra devastou grande parte da Europa, despovoando-a dramaticamente e dizimando algumas cidades. Desconhecendo a causa natural da peste bubónica - um bacilo transmitido pelo rato, os europeus começaram a culpar o demónio, os judeus ou a sua própria pecaminosidade pela escalada do número de mortos. Possuídas ou não pelo demónio, pelo menos essa era a crença oficial dos clérigos, algumas pessoas empreenderam dramáticas exibições de auto-mortificação, ao mesmo tempo que ocorriam crises histéricas envolvendo grupos inteiros que, como por exemplo os flagelantes da Hungria, se chicoteavam em público em orgias de auto-açoitamento. Mas o alvo preferencial da punição foram as mulheres, acusadas de serem bruxas e, por isso, responsabilizadas pela devastação. Alguns clérigos descreveram a mulher como um «templo construído sobre um esgoto». Em 1487, Heinrich Krämer e James Sprenger - dois monges dominicanos - publicaram a sua obra Malleus Maleficarum, cujo alvo era metade da espécie humana, isto é, as mulheres: «Toda a maldade é pouca comparada à maldade de uma mulher. Razão pela qual São João Crisóstomo diz: Não é bom casar. O que mais é uma mulher do que uma inimiga da amizade, uma punição inevitável, um mal necessário, uma tentação natural, um prejuízo deleitante, um pecado da natureza, pintado em lindas cores!». Convertida em manual dos Inquisidores, esta obra legitimou a prática inquisitorial da caça às bruxas e aos hereges. Eis portanto outra data a reter: a da criação da Inquisição que, em Portugal, ocorreu em 1536, a pedido de D. João III (1531), tendo sido abolida tardiamente em 1821: «A bula da Inquisição foi concedida em 1536, embora já desde 1534 houvesse um inquisidor e seja deste último ano o procedimento contra Gil Vicente. O primeiro auto-de-fé realizou-se em 1541. Nos cento e quarenta e três anos que vão até 1684 foram queimadas mil trezentas e setenta e nove pessoas. Depois, o ritmo desceu, mas as execuções continuaram até ao tempo do marquês de Pombal. O maior número dos condenados à morte é formado por acusados de judaísmo, mas há muitas condenações por feitiçaria e por depravação de costumes» (José Hermano Saraiva). Mas, no caso dos dois Estados Ibéricos, há ainda outras datas anteriores a reter: Em 1492, os Reis Católicos, Fernando e Isabel, decretaram a expulsão dos judeus dos seus Estados - Aragão e Castela - no prazo de quatro meses e sob pena de morte. D. João II autorizou a instalação das famílias judias mais ricas em Portugal a troco de altas quantias. Porém, em 1496, D. Manuel - sob pressão dos monarcas do país vizinho - ordenou a expulsão de todos os judeus de Portugal, tanto os refugiados castelhanos como os portugueses. É certo que D. Manuel tentou reter os judeus em Portugal, forçando o baptismo dos seus filhos e recusando meios de transporte para a sua saída por mar, mas estas medidas criaram uma cisão nacional entre cristãos-velhos e cristãos-novos. Em 1506, Lisboa foi palco de motins em que os cristãos-novos foram ferozmente perseguidos: a peste que grassava na cidade levou os clérigos fanáticos e repressivos a culpá-los pela calamidade e o povo enfurecido investiu contra eles, fazendo mais de dois mil mortos. Este micro-holocausto lisboeta quebrou a unidade nacional, a qual já estava seriamente fracturada desde 1434. Entretanto, apesar do ofuscamento mental da Idade Média, foram realizados alguns esforços a favor dos insanos: o primeiro asilo da Europa foi construído em Hamburgo em 1375, seguido por outro em Valência em 1410 e, pouco depois, por mais outro em Londres. Com o desaparecimento da lepra no final do século XV, alguns leprosários ou lazaretos foram convertidos em asilos (casas dos loucos), onde os loucos coexistiam com os pobres e os portadores de doenças venéreas. O século XV fará um enorme esforço para compreender o insano como um doente e não como uma criatura possuída pelo demónio. Michel Foucault escolheu a Nau dos Loucos de Bosch - a Stultifera Navis de Brant - para caracterizar a loucura nos séculos XV e XVI, articulando-a com a Danse Macabre de Huyot Marchand e a Dança dos Mortos do Cemitério dos Inocentes: «Até à segunda metade do século XV, ou mesmo um pouco depois, o tema da morte impera sozinho. O fim do homem, o fim dos tempos, assume o rosto das pestes e das guerras. O que domina a existência humana é este fim e esta ordem à qual ninguém escapa. A presença que é uma ameaça no próprio interior do mundo é uma presença descarnada. E eis que nos últimos anos do século esta grande inquietude gira sobre si mesma: o desatino da loucura substitui a morte e a seriedade que a acompanha. Da descoberta desta necessidade, que fatalmente reduzia o homem a nada, passou-se à contemplação desdenhosa deste nada que é a própria existência. (...) A cabeça que se tornará crânio, já está vazia. A loucura é o já-está-aí da morte. (...) Agora, os elementos inverteram-se. Não é mais o fim dos tempos e do mundo que mostrará retrospectivamente que os homens eram uns loucos; é a ascensão da loucura, a sua surda invasão, que indica que o mundo está próximo da sua derradeira catástrofe; é a demência dos homens que a invoca e a torna necessária» (Michel Foucault).
A escolha destas datas não é arbitrária: há um fio condutor que as liga e que permite - ou não! - resgatar toda a história da "psiquiatria" portuguesa anterior a 1883, ao mesmo tempo que nomeia as causas estruturais do seu atraso. A expulsão dos judeus foi fatal para Portugal, não só em termos de desenvolvimento económico, mas também em termos de desenvolvimento cultural. A Espanha teve o seu Maimónides (1135-1204) que escreveu extensamente sobre as doenças da alma, ou mesmo Abraham Abulafia de Saragoça que desenvolveu a técnica do salto, mas Portugal também teve todo um conjunto de judeus nacionais que desbravaram o território da psicologia, uns de um modo mais revolucionário do que outros, bastando referir os nomes de Leão Hebreo (1460-1520), Abrahão Ferreira, Samuel da Silva, Uriel da Costa (falecido em 1640) e João Serram, para já não falar de dois portugueses não-judeus e de outro judeu - nascido na Holanda - dignos de figurar na história da psiquiatria: Pedro Hispano (falecido em 1277), Francisco Sanches (falecido em 1623) e Bento de Espinoza (1632-1677). Primeiro a expulsão dos judeus e depois a Inquisição privaram Portugal dos seus intelectuais mais proeminentes, colocando o ensino fora do circuito da ciência e da filosofia que se praticavam na Europa renovada pela Reforma. Nas fogueiras da Inquisição portuguesa ardeu o campo erudito da nossa cultura, onde a tradição árabe e judaica tinha suscitado alguns nomes de relevo. O outro lado deste fio condutor é a questão das mulheres: acusadas de serem aliadas das forças maléficas, as mulheres eram queimadas nas fogueiras da Inquisição. Libertar as mulheres da suspeita de bruxaria foi um dos movimentos seguidos pela "psicologia" para se autonomizar da tutela clerical. Mas antes de avançar neste terreno, destaco desde já a obra médica - profundamente racional e naturalista - de Rodrigo de Castro (nascido em 1546), descendente de cristãos-novos, que se dedicou às doenças das mulheres, sendo assim o fundador da ginecologia portuguesa numa obra que o imortalizou: De universus mulierum medicina. A obra divide-se em duas partes, sendo a primeira consagrada à anatomia e à fisiologia dos órgãos genitais femininos, e a segunda à patologia e à clínicas respectivas. A sua análise está fora do âmbito deste estudo, bastando referir que, nos primeiros capítulos do livro terceiro da segunda parte, Rodrigo de Castro aborda a esterilidade, atribuindo-a à falta de actividade do esperma, às doenças do útero ou dos seus anexos e à impropriedade da idade da mulher, e a impotência do homem para o coito ou para a geração. Ora, no decurso deste longo período, a impotência do homem era atribuída à bruxaria. Assim, por exemplo, os dois monges dominicanos distinguiram dois tipos de impotência, uma devida à natureza e outra devida à bruxaria: «Quando o membro (viril) não pode ser excitado, e não pode realizar o acto do coito, isto é um sinal de frigidez da Natureza; mas quando ele é excitado e se torna erecto, mas, contudo, não pode desempenhar (a sua função), isto é um sinal de bruxaria». Para combater a crença em demónios e em espíritos infernais, os "psiquiatras" dos séculos XVI e XVII tiveram de assumir uma atitude racional perante a bruxaria. Em 1584, Reginald Scot (1538-1599) publicou a sua obra Discoverie of Witchcraft, onde procura demonstrar que as crenças populares sobre os pactos das bruxas com os demónios mais não são do que concepções imaginárias. Mas é no decorrer do século XVII que surgem as ideias mais inovadoras sobre a bruxaria. A sífilis surgiu pela primeira vez na Europa por volta de 1500. Embora estivesse mais suave no século XVII, a infecção manifestava-se como uma degeneração cerebral gradual, sendo por isso identificada como uma forma de insanidade, a qual levou os franceses a interessar-se, já no final do século XVI, pela loucura causada por amores frustrados. Em 1618, Charles LePois (1563-1633) defendeu que a histeria não tinha nada a ver com o útero, podendo assim ocorrer tanto nos homens como nas mulheres. O contributo mais significativo veio da Holanda: Johann-Caspar Westphal publicou Pathologia Daemonica (1707), onde descreveu uma série de doenças nervosas atribuídas até aí à bruxaria, tais como epilepsia, catalepsia, melancolia e determinadas condições dermatológicas, tratando-as a todas como obsessões. Utilizando o termo latino fascinatio (fascinação) para designar a bruxaria, Westphal definiu-a como um «intenso poder e acção da imaginação dirigida ao corpo de outra (pessoa)». Ora, este termo deriva do grego baskanon que significa amuleto. Fascinus era uma divindade na forma de um falo e o fascinum era um amuleto na forma de um pénis, usado na Idade Média pelas crianças em torno do pescoço para as proteger dos poderes maléficos da feitiçaria. Esta prática mostra como os homens exteriorizavam as suas dificuldades sexuais com as mulheres. Para se protegerem dos feitiços femininos, eles tinham de usar um falo extra - o amuleto - com poderes maiores do que aqueles da fascinatio, de modo a garantir a sua capacidade de funcionar sexualmente como homens. Edward Jorden (1569-1632), um alienista inglês, foi um dos primeiros médicos a considerar as mulheres - acusadas da prática de bruxaria - como pessoas infelizes que sofriam de alguma condição médica. A sua preocupação com as causas naturais da infelicidade dessas mulheres levou-o a ser testemunha em julgamentos de mulheres acusadas de feitiçaria. Num desses julgamentos - o de Elizabeth Jackson, Jorden utilizou dois termos para designar a perturbação dessa mulher: histérico e strangulatus uteri, termos que lhe permitiam compreender alguns dos seus sintomas, como por exemplo a falta de ar, as palpitações ou a paralisia, bem como a diversidade de ritmos dos ataques de histeria. Porém, o juiz não aceitou a explicação de que os ataques atribuídos à feitiçaria eram naturais, alegando que, sem a definição de uma razão natural e uma medicação natural para as perturbações da ré, não podia levar em conta o testemunho dos alienistas. A História da Loucura de Michel Foucault deixou de lado o horizonte religioso da feitiçaria e a sua evolução no decorrer da era clássica. Apesar de ter previsto um estudo sobre o horizonte religioso da feitiçaria, Michel Foucault não cumpriu essa promessa que o levaria a invadir o território da psiquiatria transcultural, um território que os portugueses descobriram precocemente quando ousaram o descobrimento do mundo. Os arquivos e as bibliotecas portuguesas guardam tesouros que ainda não foram revelados: a promessa não-cumprida de Michel Foucault pode ser realizada a partir de documentos portugueses, uns relativos à Inquisição, outros relativos aos contactos interculturais. Todos os contributos dos alienistas referidos, bem como o de Rodrigo de Castro que, sob o signo do regresso à medicina de Hipócrates, fundou a ginecologia portuguesa, geraram a erosão da crença em manifestações demoníacas, vendo as chamadas bruxas como mulheres mental e emocionalmente perturbadas. A Inquisição Portuguesa alimentou durante longos séculos essa crença, condenando muitas bruxas à fogueira. E no resto da Europa, a caça às bruxas regressou ao primeiro plano no século XVI e início do século XVII: as lutas entre protestantes e católicos foram acompanhadas por uma epidemia de processos por bruxaria. O espírito anti-autoritário de Paracelso (1493-1541) levou-o a denunciar os queimadores de bruxas, mas a obra que culmina este movimento é, sem dúvida, a de Thomas Hobbes (1588-1674).
O Hospital de Rilhafoles - instalado no velho convento de S. Vicente de Paula - data de 1848, tendo sido o primeiro asilo de alienados a surgir em Lisboa, mas, ao contrário do que diz Nuno Borja Santos, não foi o primeiro hospital psiquiátrico de Portugal, pelo menos na perspectiva da psiquiatria moderna: o Hospital de Rilhafoles era mais um depósito de alienados mentais do que um espaço de tratamento, que, sob a direcção de Craveiro, ainda deitava os doentes na palha, além de abusar dos meios ancestrais de contenção (coletes de forças, peias, correntes ou freios de ferro, cadeiras fortes, coleiras ou gravatas, peitilhos ou barbeiros), donde resultou a legenda de asilo de lunáticos. Em Portugal, a psiquiatria moderna nasceu no Porto e escolho como data do seu nascimento institucional a abertura do Hospital do Conde de Ferreira em 1883, sob a direcção de António Maria de Sena (1845-1890) que soube introduzir no nosso país o programa de humanização do tratamento dos doentes mentais de Philipe Pinel (1745-1826) e de Samuel Tuke (1784-1857), neto do Quacre William Tuke (1732-1822), que dirigiu o famoso Retiro de York situado no campo, tendo descrito a instituição em 1813. Pinel e Tuke são dois nomes famosos associados à libertação dos acorrentados: «O asilo de Pinel, retirado do mundo, não será um espaço de natureza e de verdade imediata como o de Tuke, mas um domínio uniforme da legislação, um lugar de sínteses morais onde se apagam as alienações que nascem nos limites exteriores da sociedade. Toda a vida dos internos, todo o comportamento dos vigilantes em relação a eles, bem como o dos médicos, são organizados por Pinel para que essas sínteses morais se efectuem. E isso através de três meios principais: (o silêncio, o reconhecimento pelo espelho e o julgamento perpétuo)» (Michel Foucault). Embora tenha privilegiado mais a ordem da legislação do que o crescimento do conhecimento, Pinel é considerado, pelo menos pelos franceses, como o pai da psiquiatria moderna, pelo facto de ter rejeitado a teoria humoral de Galeno - articulada com a teoria dos demónios por Arnold de Villanova (1240-1313) - e os tratamentos de purgação e de sangria por ela inspirados. (E o que dizer do tratamento da mania através da incisão de uma cruz no couro cabeludo, perfurando o crânio a fim de deixar escapar os demónios e os vapores mórbidos, recomendado por Villanova?) Pinel foi o director de dois grandes hospitais psiquiátricos em Paris: o Bicêtre (hospital de homens) e, depois, o Salpêtriére (hospital de mulheres), cujo nascimento foi magnificamente analisado por Michel Foucault. Pinel atribuía a doença mental à hereditariedade ou às paixões intoleráveis, tais como o medo, a raiva, o ódio, a exaltação ou a tristeza, e, levando à letra os princípios de Rousseau, defendeu e praticou no seu hospital a remoção das correntes - o uso de correntes foi um procedimento aconselhado por Félix Plater (1536-1614), o criador do termo alienação, para controlar os pacientes altamente perturbados - dos doentes mentais hospitalizados. A remoção das correntes dos indivíduos insanos já tinha ocorrido em Valência no início do século XV e, em França, Jean Baptiste Pussin removeu-as em Bicêtre, substituindo-as por coletes-de-forças, três anos antes de Pinel o ter feito em Salpêtriére (1800). Em 1794, Pinel apresentou na Sociedade de História Natural o seu Ensaio sobre a Loucura, onde retrata os doentes mentais como homens e mulheres desafortunados que merecem respeito e compaixão, tanto da parte dos médicos e dos assistentes como da parte da comunidade. Pinel escreveu histórias de casos «simpáticos e eloquentes» e, tal como Joseph Daquin (1733-1815), lutou contra todos os preconceitos do passado sobre os cuidados administrados aos doentes mentais, instituindo diversos tipos de tratamento moral: exercícios, entretenimento, actividades úteis, trabalho agrícola e permissão para andar livremente dentro do pátio e dos jardins do hospital. Além disso, Pinel incentivou os médicos encarregados dos doentes mentais a morar nos espaços interiores do hospital e a despender mais tempo para os conhecer. Com excepção de uma ou de outra recomendação mais exótica, as sugestões terapêuticas de Pinel tinham uma base racional e empírica, constituindo um grande avanço sobre as sangrias e as purgações praticadas pelos seus antecessores. Ao lidar com os loucos mais violentos, Pinel adoptou uma abordagem não-violenta, levando toda a equipa hospitalar a ir ao encontro deles, de modo a instalar algum medo e a tornar a resistência inútil. Com esta táctica, pretendia tornar possível o diálogo entre o louco violento e a equipa que o socorria. O esquema de diagnóstico das doenças mentais de Pinel era simples: melancolia, mania sem delírio, mania com delírio, demência e idiotismo, eis alguns rótulos usados por Pinel. O uso que ele fez do termo mania não corresponde à nossa noção de depressão maníaca (perturbação bipolar): Pinel usou-o para designar perturbações psiquiátricas severas, com ou sem perturbação do entendimento. A sua mania sem delírio incluía todos os casos de compulsão que implicavam actos violentos, sem no entanto haver defeito da razão. Pinel descreveu também a histeria, a anorexia, a bulimia, a hipocondria, as obsessões e as compulsões, observando que os doentes com obsessões religiosas eram extremamente difíceis de curar. Alguns casos que relata são muito semelhantes às nossas perturbações obsessivo-compulsivas. Por fim, Pinel referiu um caso de compulsão homicida, o de um missionário que imolou os seus filhos para lhes garantir a vida eterna no céu. A esta trilogia de nomes consagrados da psiquiatria moderna - Tuke, Pinel e Daquin - devemos acrescentar o nome de António Maria de Sena, cuja obra Os Alienados em Portugal (1885) é digna de figurar ao lado do Ensaio sobre a Loucura de Pinel (1794) e de A Filosofia da Loucura de Daquin (1791).
A construção do Hospital Conde de Ferreira iniciou-se em 1868, por disposição testamentária do Conde de Ferreira (1782-1866). Para dar cumprimento aos desígnios deste benemérito foi comprada a quinta da Cruz das Regateiras: uma extensa e aprazível propriedade, com 120 000 m2, com a abundância de água e boa exposição higiénica, o que possibilitou a existência de jardins, prados e terrenos cultiváveis, considerados factores indispensáveis na terapêutica psiquiátrica. O projecto é da autoria do professor de arquitectura civil na Academia de Belas Artes do Porto, Manuel de Almeida Ribeiro, que se inspirou no Hospício Pedro II, inaugurado em 1852 no Rio de Janeiro. Após a sua morte, a construção foi dirigida por Faustino José da Vitória (Director das Obras Públicas do Distrito do Porto), que fez várias alterações ao projecto inicial. A fachada do edifício é simples, elegante e harmoniosa. O frontão é encimado pela estátua do Fundador, em mármore de Carrara, obra do escultor Teixeira Lopes, mais tarde colocada sobre um plinto, no espaço ajardinado da entrada do Hospital Psiquiátrico. Segundo Domingos de Almeida Ribeiro, escriturário do testamento do Conde de Ferreira, a ideia da construção do hospital tinha sido inspirada por D. Pedro V, que lhe indicara a necessidade de um estabelecimento daquela natureza no Porto. A construção do edifício demorou cerca de 10 anos e nela foram gastos 524.183 réis. Inaugurado a 24 de Março de 1883, com doentes provenientes do Hospital de Santo António de Rilhafoles de Lisboa, o Hospital Conde de Ferreira é a primeira construção de raiz feita para a Psiquiatria em Portugal. Antes da sua fundação, os dementes eram encarcerados no porão do Hospital Geral de Santo António ou mesmo nas cadeias ou prisões da cidade do Porto. Para director clínico desta nova unidade especializada de saúde, a Misericórdia do Porto convidou António Maria de Sena (1845-1890), oriundo da Faculdade de Medicina de Coimbra, onde se doutorou com a tese Análise Espectral do Sangue e com o trabalho intitulado Delírio nas Moléstias Agudas, no concurso para professor daquela faculdade. António Maria de Sena criou um modelo de organização hospitalar ousada para o seu tempo, a favor daqueles que denominou «seres humanos infelizes, afectados do padecimento mais cruel»: «A alienação mental é um facto social de uma importância culminante. Merece estudo e pede a atenção dos governos. /Na classe tão numerosa dos inválidos, o alienado sobressai, com efeito, na generalidade da desventura, nas proporções da invalidez, não menos nas perturbações que causa ao estado social. /Desde o fim do século passado (século XVIII) que se desenvolveu um movimento de clemência a favor dos alienados em toda a Europa e América. /As autoridades públicas, as famílias, os estabelecimentos pios têm por estes infelizes o mais condenável desprezo, preocupando-se apenas com os perigos que podem advir à sociedade da sua existência em liberdade; (é preciso) ajudá-los, confeccionar leis protectoras dos desventurados, por dever de humanidade como também por verdadeiro interesse nacional» (António Maria de Sena). Além disso, eleito Par do Reino, em Viana do Castelo, sob um governo progressista, António Maria de Sena elaborou a primeira lei psiquiátrica em Portugal, a chamada Lei Sena, promulgada em 1889, a qual previa a construção de novos estabelecimentos hospitalares e de um «fundo de beneficência pública dos alienados». Em 1890, António Maria de Sena - o primeiro grande psiquiatra português que defendeu a higiene e profilaxia das doenças mentais - faleceu precocemente na Granja, com apenas 45 anos de idade. António Maria de Sena exerceu as suas funções directivas entre 1883 e 1890, tendo como médico-adjunto Júlio de Matos e médico-ajudante Magalhães Lemos. Após a sua morte, Júlio de Matos assumiu a direcção do Hospital de Alienados do Porto entre 1890 e 1911, quando aceitou suceder a Miguel Bombarda na direcção do Hospital de Rilhafoles (Lisboa): o seu adjunto, Magalhães Lemos, ascendeu a director do Hospital do Porto em 1911, tendo exercido essa função até ao ano da sua aposentação em 1924. O Hospital Conde de Ferreira é constituído por um vasto edifício que se desenvolve por quatro grandes alas e dois pavilhões envolvidos por jardins. Os doentes estavam distribuídos em duas partes distintas: a ala norte era ocupada por alienados do sexo masculino e a ala sul acolhia alienados do sexo feminino. O corpo principal do edifício dividia-se em três partes: as partes norte e sul eram destinadas à habitação dos doentes, sendo a parte central ocupada pelas instalações dos serviços gerais, casa da aceitação e laboratório de Antropologia. Os médicos, directores e adjuntos viviam nesta parte central e, no seu lado posterior, funcionavam a cozinha, a farmácia e a habitação dos restantes funcionários hospitalares. Em anexo, foi construído um pavilhão para observação médico-legal dos criminosos de ambos os sexos, assim como o laboratório. Poucos anos após a sua inauguração foram construídos dois pavilhões para doentes furiosos (8.ª enfermaria). Em 1904, foi construído mais um pavilhão para alojar criminosos (9.ª enfermaria), e, em 1907, verificou-se a abertura de um edifício para doentes agitados (10.ª enfermaria). De todas estas estruturas arquitectónicas merece especial destaque o panóptico portuense: uma estrutura fechada em forma de eneágono (nove lados) a que chamaram Pavilhão dos Furiosos, a qual servia para isolar os doentes mais agitados ou perigosos e, desses tempos de disciplinarização hospitalar, guarda ainda hoje vários objectos, como microscópios, um colete-de-forças e uma panóplia de máquinas de choques eléctricos introduzidas no hospital em 1922. Como se sabe, Michel Foucault foi buscar a figura arquitectónica do panóptico a Jeremy Bentham (1748-1832), para designar uma máquina de vigilância em que, com visibilidade plena, se pode controlar de uma torre central todo o círculo do edifício dividido em alvéolos e onde os vigiados, alojados em células individuais e separadas umas das outras, são vistos sem verem. O modelo de organização em panóptico do edifício do Pavilhão dos Furiosos servia para controlar os loucos perigosos através deste dispositivo de vigilância hospitalar. Como complemento existiam estruturas de apoio, como as oficinas, a tipografia, a lavandaria, a rouparia, a cozinha, entre outras. Os doentes estavam distribuídos pelas quatorze enfermarias tendo como princípio a sua patologia - tipo e fase da doença: tranquila, convalescente, agitação, furor, estado imundo e incurabilidade - e a classe social. Os valores das mensalidades variavam em função da classe social a que pertencia o doente e a quantia paga determinava a qualidade da assistência que lhe era prestada. Todos os internados nesta instituição total do Porto podiam ocupar-se em actividades oficinais ou agrícolas, tendo-se assim inaugurado a psicoterapia colectiva pelo trabalho. No Hospital Conde de Ferreira, fizeram carreira alguns dos mais conceituados psiquiatras portugueses, como por exemplo Júlio de Matos e Magalhães Lemos, o primeiro dos quais não «herdou» as qualidades humanas do mestre, quando radicalizou a "sua" teoria da degenerescência. O nascimento do hospital psiquiátrico em Portugal obedece ao esquema genealógico estabelecido por Michel Foucault: o encarceramento dos loucos foi acompanhado por medidas jurídicas e administrativas que os libertaram das correntes de ferro para os encerrar de novo nas leis do internamento, dando-lhes a chancela de alienados, privando-os da liberdade e sequestrando-os nos asilos de loucos ou hospitais de alienados. Tal como Pinel ou mesmo Esquirol (1772-1840), António Maria de Sena contribuiu para a "invenção" das doenças mentais como entidades nosológicas, confinadas num espaço de observação clínica, mas, dada a sua filiação liberal e progressista, próxima das aspirações da Geração 70, soube defender a assistência aos doentes do espírito como um dever social e não como exercício de caridade, tendo por isso polemizado com Domingos Almeida Ribeiro, cujo catolicismo reaccionário proclamava a valia superior das instituições fundadas pela caridade cristã.
Anexo: Este estudo começa a dar corpo à promessa anunciada em A Alienação Mental no Porto: Notas para uma pesquisa, e complementa em termos de psiquiatria o Esboço da Evolução do Hospital Moderno.
J Francisco Saraiva de Sousa
17 comentários:
E o outro post!? :)
Não posso ir ao fb. Interdição auto-imposta! :)
Oh, pk? O fb anda louco outra vez.
Agora vou esboçar o nascimento da psiquiatria no Porto e preciso de estar concentrado nas datas que vou escolher: um empreendimento teórico, uma vez que é necessário pesquisar os arquivos. Mas, em relação ao curto período de tempo que vou analisar, posso ser absolutamente rigoroso, confrontando os clínicos do Conde de Ferreira com Pinel.
Depois disso concluo o outro.
A luz eléctrica foi introduzida no Hospital do Conde de Ferreira em 1922, tendo sido usada para aplicar choques nalguns doentes mentais. Outro aspecto curioso da iluminação eléctrica! E nos USA foi usada para matar alguns criminosos. Enfim, todos estes temas estão ligados. :)
Vou espreitando mas não quero socializar muito e muito menos passar do plano virtual para o plano real. Por isso, estou de "férias" algures no pólo norte! :))
Sim, fazes bem! Isso é só para quem merece.
vou apagar; isto é mt público :)
Meu Deus, fazer o levantamento de todos os dados sobre a evolução das ideias psiquiátricas é uma tarefa colossal.
Estou a ser muito sucinto. Porém, uma das linhas que abri está pouco investigada. Não há um só esquema de desenvolvimento. O saber é plural.
Adorava fazer uma viagem no tempo e ir até ao passado para o observar de longe e à distância a partir de uma nave extraterrestre! O ideal seria ver sem ser visto. :)
De certo modo, o meu desejo aparentemente impossível pode ser realizado: viajo pelo passado sem ser visto pelos seus habitantes. Eu conheço-os; eles não me conhecem! É um procedimento teórico que pode ser elaborado a partir de certos pressupostos. Com sou extraterrestre, não preciso esforçar-me muito, bastando ser eu - simplesmente eu.
Mas ando com vontade de alterar o modo de fazer história e política: o passado nunca está concluído. Posso refazê-lo constantemente, e, ao fazê-lo, modifico o presente e crio constrangimentos futuros. É a concepção de tempo que deve ser alterada. Basta recuar no tempo para gerar automaticamente dificuldade na genealogia de Foucault.
Michel Foucault pensa que a libertação dos alienados foi uma outra forma de aprisioná-los. Certo, eles foram confinados no espaço disciplinado do hospital. Mas houve uma mudança significativa. Tal como Althusser, Foucault tinha os seus problemas mentais e, em momentos de profunda depressão, recorria à ajuda psiquiátrica. É claro que ele viveu a transição para a fase farmacológica: os loucos medicados andam por aí! Mas não deixam de ser loucos. Nem toda a loucura é construção! É isso que eles não compreenderam.
Libertar os loucos não é a mesma coisa que libertar os trabalhadores! Os mestres libertaram tanto - tudo e todos - que hoje não há nada para libertar: o homem liberto foi restituído à sua animalidade. Uma das teorias da loucura criticada por Foucault tem o seu núcleo de verdade!
Puf... este texto vai dar trabalho. Começo a vislumbrar outras dificuldades e fico feliz de constatar a afinidade do fim da idade média com a situação presente.
Ai, estou apaixonado pelo edifício panóptico do Hospital Conde de Ferreira. A Net também obedece ao modelo de poucos a controlar muitos.
Está concluído! Amanhã sou capaz de retocar o último parágrafo.
Já não altero mais o texto! Fim...
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