sexta-feira, 3 de fevereiro de 2012

NeuroFilosofia do Sonho: Freud e a Neurobiologia do Sonho

Karl Briullov: Sonho de uma Freira (século XIX)
«Uma vez que reconheçamos que o conteúdo do sonho é a representação de um desejo realizado e que a sua obscuridade se deve a alterações feitas pela censura no material recalcado, não mais teremos qualquer dificuldade em descobrir a função dos sonhos. Afirma-se comummente que o sono é perturbado pelos sonhos, mas, curiosamente, somos levados a uma visão contrária e temos de encarar o sonho como o guardião do sono. (...) O sonho proporciona uma espécie de consumação psíquica ao desejo suprimido (ou formado com o auxílio do material recalcado), representando-o como realizado; mas atende também à outra instância, permitindo que o sono prossiga. Nesse aspecto, o nosso eu tende a comportar-se como uma criança; dá crédito às imagens do sonho, como se quisesse dizer: "Sim, sim! Tens toda a razão, mas deixa-me continuar a dormir!" O menosprezo que mostramos pelo sonho quando acordados e que relacionamos com o seu carácter confuso e aparentemente ilógico, provavelmente não passa do julgamento proferido pelo nosso eu adormecido sobre as moções recalcadas, julgamento este que se apoia, com pleno direito, na impotência motora desses perturbadores do sono. Por vezes, damo-nos conta, durante o sono, desse julgamento desdenhoso. Quando o conteúdo do sonho excede a censura em demasia, pensamos: "Afinal, é apenas um sonho!" - e continuamos a dormir.» (Sigmund Freud)

Em 1900, Freud publicou A Interpretação dos Sonhos, uma obra revolucionária que marcou a viragem das teorias metafísicas - designação inadequada! - para as teorias psicológicas dos sonhos. A teoria freudiana dos sonhos dominou até 1960, sendo depois gradualmente substituída pela neurobiologia e pela história natural dos sonhos, cujas bases fisiológicas foram lançadas entre 1957 e 1959. Esta ruptura epistemológica é susceptível de diversas análises: as descontinuidades epistemológicas que caracterizam as passagens das teorias metafísicas às teorias psicológicas e das teorias psicológicas às teorias neurobiológicas dos sonhos inscrevem-se num único e mesmo movimento progressivo de laicização do cérebro, não só da sua anatomia mas também da sua actividade, encarado desde logo como a vitória do materialismo sobre a teoria da imaterialidade da alma. A biologia molecular anulou as teorias vitalistas e as neurociências, aproximadamente 20 anos depois, anularam as teorias espiritualistas e as suas versões emergentistas, impondo no mínimo a identidade entre estados mentais e estados fisiológicos ou físico-químicos do cérebro: «O Homem - escreve Changeux - não tem, portanto, nada mais a esperar do "Espírito", basta-lhe ser um Homem Neuronal». Ao despedir o Espírito, as neurociências preparam o terreno para o advento real de uma sociedade de zombies, tão ansiado pela miserável filosofia da mente de Daniel Dennett. Durante a maior parte da minha vida, deixei que o meu "eu cientista" abafasse o meu "eu filósofo", operando uma síntese - sempre em nome do materialismo! - lá onde ela não existia de todo: o discurso da dominação do eu cientista colidia com o discurso da libertação do eu filósofo, para desconforto do "eu-eu" que só acordou desse pesadelo de domínio total quando foi confrontado com situações-limite para as quais a ciência dura não fornece qualquer conforto ou qualquer orientação. A ciência é um empreendimento paradoxal: como não consegue refutar as teorias contra as quais luta, tudo faz para eliminar os seus supostos fantasmas. Assim, por exemplo, sem ter refutado a teoria da imaterialidade da alma, ela aboliu a alma por decreto, pressupondo sem o demonstrar a identidade psico-neural e exorcizando o dualismo cartesiano. À Inquisição Religiosa de outrora a ciência responde hoje com uma nova inquisição, a Inquisição Positivista: a primeira queimava os corpos dos hereges nas fogueiras, a segunda queima os seus espíritos nas escolas e no consumo e entrega os corpos deformados pelo excesso de peso ou corrigidos pela cirurgia estética à exploração capitalista. O clericalismo religioso foi substituído pelo clericalismo da ciência, protagonizado de modo terrorista pelos darwinistas que animalizam o homem para o entregar à exploração capitalista. A filosofia positiva de Auguste Comte revela desde o inicio a afinidade existente entre a religião e a ciência: o estádio positivo entroniza a ciência, fazendo dela objecto de adoração e de culto da humanidade. Desta filosofia da dominação total da natureza e do homem, corpo e alma, podemos sacar a contrapelo a ideia-força de que o estádio metafísico (isto é, filosófico), longe de estar superado, como supõe o esquema evolutivo-linear de Comte, é o único capaz de redimir o conflito entre os seus extremos totalitários. Hoje a Filosofia tem como tarefa a crítica radical da ciência e da tecnologia: o paraíso terrestre prometido pela ideologia do progresso converteu-se em catástrofe. Em pouco mais de 200 anos, a ciência-tecnologia fez aquilo que durante milénios a religião não fez, talvez porque nunca foi essa a sua intenção: privar o homem da sua humanidade e lançar o mundo no abismo. A ciência-tecnologia capitalista gera contradições sociais a um ritmo alucinante para as quais não tem solução técnica, a não ser a catástrofe: o Holocausto só foi possível graças à utilização burocrática por parte de um corpo de funcionários obedientes e cinzentos - destituídos de espírito! - de procedimentos científicos e tecnológicos. De certo modo, ciência e burocracia são sinónimos: uma mesma forma de autoridade que só pôde emergir com o capitalismo. Não é por mero acaso que a pesquisa fundamental tem vindo a ser substituída pela pesquisa encomendada e administrativa: a ciência dos sonhos converteu-se fatalmente em medicina do sono, o campo de investigação biomédica que tem financiamento garantido. 

A crítica radical da ciência-tecnologia - nas suas relações com a sociedade e o futuro da humanidade do homem - não implica o abandono da ciência, mas a sua conformação a um novo princípio de racionalidade: a ciência - a sua racionalidade instrumental - destrói todos os objectos de que se apodera, como se torna demasiado evidente no caso dos sonhos, cuja arqueologia imagética remonta aos nossos antepassados ancestrais. A laicização dos sonhos e da sua função aboliu o próprio domínio dos sonhos: Quem é que ainda não reparou que as pessoas deixaram de falar com surpresa dos seus sonhos? Aristóteles foi o primeiro filósofo a laicizar os sonhos, rompendo com a teoria sobrenatural dos sonhos: os sonhos não são enviados pelos deuses, mas sim mera actividade mental de quem dorme ou de quem está adormecido. Freud abstém-se de analisar as teorias dos sonhos dos homens primitivos, reconduzindo para as obras de John Lubbock, Herbert Spencer e E. B. Tylor. A sua revisão da literatura limita-se a destacar os ecos da visão pré-histórica dos sonhos nos povos da Antiguidade Clássica: «Eles aceitavam como axiomático que os sonhos estavam relacionados com o mundo dos seres sobre-humanos nos quais acreditavam, e que constituíam revelações de deuses e demónios. Não havia dúvida, além disso, de que, para aquele que sonhava, os sonhos tinham uma finalidade importante, que era, via de regra, predizer o futuro». A harmonia entre esta visão ancestral dos sonhos e a sua visão do universo levou-os «a projectar no mundo exterior, como se fossem realidades, coisas que de facto só gozavam de realidade dentro das suas próprias mentes. Além disso, o seu ponto de vista sobre os sonhos levava em conta a principal impressão produzida na mente desperta, logo pela manhã, pelo que resta de um sonho na memória: uma impressão de algo estranho, advindo de outro mundo e contrastando com os demais conteúdos da mente». A tarefa da ciência dos sonhos é conquistar o que restou do outrora amplo domínio do sobrenatural pela explicação científica, ou seja, laicizar toda a vida onírica, mais a nossa do que a dos outros animais homeotérmicos, aves e mamíferos, primeiro através de teorias psicológicas e depois através de teorias neurobiológicas dos sonhos: «Durante uma época que se pode descrever como pré-científica, os homens não tinham nenhuma dificuldade em descobrir uma explicação para os sonhos. Quando se lembravam de um sonho depois de acordar, encaravam-no como uma manifestação favorável ou hostil de poderes superiores, demoníacos e divinos. Quando começaram a florescer as maneiras de pensar próprias da ciência natural, toda essa engenhosa mitologia transformou-se em psicologia, e hoje apenas uma pequena minoria de pessoas cultas duvida de que os sonhos sejam um produto do próprio psiquismo do sonhador» (Freud). A psicologia dos sonhos iniciou-se com Aristóteles e, depois de reflorescer no fim do século XVIII, expandiu-se no decurso dos séculos XIX e XX, até 1960: os sonhos deixaram de ser vistos como manifestação de poderes sobrenaturais e passaram a ser encarados como actividade do psiquismo do sonhador, analisada nas suas relações com as recordações, a personalidade e os estímulos externos ou internos durante o sono. No início do século XX, Delage começou a escrever diariamente os seus sonhos no laboratório de Roscoff e, após ter analisado as suas recordações, formulou a hipótese do psiquismo, reprimido durante o estado de vigília, aparecer no sonho, um conceito que já tinha sido elaborado por Robert, para quem o sonho era a elaboração de pensamentos recalcados à nascença, os pensamentos oníricos de Freud, cuja chave de leitura nos é dada, em parte, pelo simbolismo onírico que gira em torno de símbolos sexuais, sem no entanto dispensar o trabalho de análise. Mas coube a Harvey de Saint-Denis - cujo livro Freud desconhecia! - a tarefa de estudar minuciosamente os sonhos, insistindo na importância das recordações de infância e da sua repressão, e elaborando a primeira história das teorias psicológicas dos sonhos. Além de afirmar ser capaz de dirigir os seus sonhos, Harvey de Saint-Denis descobriu a existência do sonho lúcido mas involuntário, quando o sujeito, no momento em que sonha, tem consciência de estar a sonhar, o qual - como se demonstrou muito mais tarde graças à electrofisiologia humana - só ocorre durante o sono paradoxal e nunca durante o sono de ondas lentas. Freud descartou-se do sono, confiando o seu estudo à psicologia: privada da perspectiva da situação temporal do sonho no seio do sono, a sua metapsicologia faz do sonho a expressão e realização de um desejo, em última análise de um desejo sexual recalcado, provavelmente desde a infância, e o guardião do sono, construindo um aparelho psíquico sofisticado no exterior do cérebro, cuja tópica permite ter em consideração os espaços correspondentes ao Id, ao Ego e ao Superego. Na teoria dos sonhos de Freud, o ego é o mediador entre as exigências da consciência e da sociedade - incorporadas no superego - e os impulsos instintivos do Id. Como deseja dormir, o ego retira o seu investimento (cathexis) do mundo exterior e, ao mesmo tempo, relaxa a sua vigia sobre os impulsos inconscientes previamente reprimidos no Id. Ora, este relaxamento da vigilância permite aos desejos inconscientes escapar da sua prisão e bater à porta da consciência. Mas não são bem-vindos, porque a perturbação da consciência pode terminar o sono. Para Freud, a força motivacional da actividade onírica é a energia reprimida que constitui o impulso inconsciente: a incorporação de experiência recente do estado de vigília em enredos oníricos - o chamado resíduo diurno - é explicada pelo seu emparelhamento com o impulso inconsciente. Mas mais importante do que o resíduo diurno é a experiência bizarra que Freud imputa à transformação dinâmica da informação contida no seio do desejo inconsciente, de modo a negar ao conteúdo latente - o verdadeiro motor e significado do sonho - o acesso à consciência pelo censor, que, para proteger o sono, não pode dormir: «(...) existe um vínculo causal entre a obscuridade do conteúdo do sonho e o estado de recalcamento de alguns dos pensamentos oníricos, e o sonho é forçado a ser obscuro para não trair os pensamentos oníricos proscritos. Assim, chegamos ao conceito de uma "distorção onírica", que é produto do trabalho do sonho e serve à finalidade da dissimulação, ou seja, do disfarce» (Freud). Deste modo, o conteúdo latente do sonho é dissimulado pelo censor através de um conjunto de funções que Freud integra mais tarde na sua teoria de defesa psicológica: as transformações operadas pelo trabalho do sonho incluem deslocamento, condensação, simbolização, disposição pictórica e representação, e todas elas evidenciam a eficácia do censor para dissimular o verdadeiro significado de um sonho. E, quando o conteúdo manifesto do sonho ameaça ser nocivo, ele é reprimido e recolocado activamente no inconsciente do qual surgiu, sendo assim esquecido. O inconsciente colectivo de Jung como sede de imagens universais primordiais - os arquétipos - que se encontram em todas as civilizações abre uma outra via à análise dos sonhos, distinta da via seguida por Freud, mas prefiro concluir esta revisão da literatura psicológica sobre os sonhos lembrando o núcleo essencial da teoria de Sándor Ferenczi, que parte da analogia profunda entre coito e sono, sem esquecer a periodicidade que caracteriza os dois processos: «O estado de sono, tal como o estado psíquico no coito e na existência intra-uterina, é uma repetição de formas de existência superadas há muito tempo e talvez até uma repetição da existência anterior ao surgimento da vida. O sono, diz um provérbio latino, é o irmão da morte. As forças traumáticas que intervêm no despertar, esse renascimento quotidiano, são as mesmas que outrora "despertaram" a matéria primitiva para a vida. Toda a etapa evolutiva imposta pela necessidade é um despertar de um estado de paz relativa. "O vegetal é um animal que dorme", disse Buffon. A própria embriogénese é uma espécie de sono somente perturbado pela repetição palingenética da filogenia, à maneira de algum sonho biográfico. Entretanto, a principal diferença entre o sono e o coito poderia residir no facto de que o sono se contenta em repetir a bem-aventurada existência intra-uterina, ao passo que o coito reproduz também as lutas que se produziram quando da "expulsão do paraíso"», a saber: catástrofes cósmicas, nascimento e lutas do desmame e da aprendizagem de hábitos de asseio. As implicações da teoria de Ferenczi para a análise dos sonhos dos homens primitivos foram abundantemente exploradas, explicitadas e estudadas por Géza Róheim.

O sonho como actividade do psiquismo do sonhador ainda traz o selo do dualismo ocidental: as neurociências assumem a tarefa de livrar o sonho desse dualismo mente-cérebro, fazendo dele o terceiro estado do cérebro, tão diferente do sono como este é da vigília. Mas para chegar a este novo conceito neurofisiológico do sonho, tão próximo dos Upanhishads da mitologia hindu, segundo os quais o cérebro humano sofre a alternância da vigília, do sono sem sonho e do sono com sonho, foi preciso percorrer um longo caminho. No início do século XX, Alfred Maury descobriu que, quando acordava pessoas a intervalos regulares durante o sono, elas raramente tinham recordações dos sonhos. Esta observação desmente a ideia da existência de uma actividade onírica permanente: o sonho é, portanto, um fenómeno episódico ou aleatório, que ocorre quando o sono é mais leve, quer durante o adormecimento (imagens hipnagógicas), quer sob a influência de estímulos externos (ruídos) ou internos (dor), quer antes do despertar (imagens hipnopômpicas). Ora, ao perder o seu carácter intemporal, o sonho torna-se fisiológico, estando dependente da qualidade do sono e da sua interacção com o despertar. Ao individualizar a narcolepsia, Gélineau descreveu inadvertidamente uma das características primordiais do sonho: a ausência total de tónus muscular. Com efeito, a narcolepsia consiste quer na irrupção brutal do sono durante a vigília quer numa perda de tónus muscular com queda (cataplexia), frequentemente na sequência de uma emoção ou de riso, podendo os doentes sonhar e perder o contacto com a realidade no decorrer desses episódios. Em 1937, Klaue descobriu, no gato, períodos de sono profundo, acompanhados por uma actividade eléctrica cortical rápida, muito diferente da actividade cortical lenta do sono, e, em 1940, Ohlmeyer descreveu um ciclo de erecção periódica durante o sono no homem, que se inicia 90 minutos após o adormecimento e cujas fases de erecção, com uma duração média de 25 minutos, têm uma periodicidade média de 85 minutos. Ora, apesar de terem sido identificadas entre 1880 e 1944, a abolição da actividade muscular durante a narcoplesia, a erecção periódica e a actividade rápida cortical só foram relacionadas umas com as outras entre 1953 e 1957. Em 1953, Eugene Aserinsky e Nathaniel Kleitman observaram episódios de movimentos oculares rápidos durante o sono infantil, formulando a hipótese de que esses movimentos são períodos de sonho: o período de sono activado pelo cérebro estava associado à actividade onírica, até porque, quando se acordavam sujeitos normais do sono paradoxal, eles faziam relatos pormenorizados da actividade onírica. William Dement confirmou essa associação, estabelecendo em bases sólidas a correlação entre estes períodos de activação cerebral durante o sono e a actividade onírica alucinóide. Em 1953, Eugene Aserinsky e Nathaniel Kleitman realizaram a primeira síntese de todos estes elementos recolhidos, sem levar em conta o tónus muscular: o sonho ocorre por períodos de 20 a 25 minutos, separados por intervalos de 90 minutos, e caracteriza-se por uma actividade cortical rápida semelhante à do adormecimento e por movimentos oculares rápidos. Convém referir que esta primeira síntese considerava o sonho como um estado periódico de sono leve análogo ao adormecimento. Mas foi graças à neurofisiologia animal, a do gato, que Michel Jouvet conseguiu realizar uma síntese mais abrangente destes elementos em 1959, atribuindo ao sonho o seu devido lugar no ciclo vigília-sono, tanto no homem como no gato: o estudo poligráfico do ciclo vigília-sono, com eléctrodos implantados ao nível das principais estruturas cerebrais (electroencefalograma) e de diferentes grupos musculares (electromiograma), permitiu detectar no decurso do sono do gato dois estados distintos: o do sono de ondas lentas, o sono não REM de Dement, caracterizado por ondas corticais lentas e com grande amplitude e pela conservação do tónus muscular, e o sono profundo, o sono REM de Dement, caracterizado por uma actividade eléctrica cerebral semelhante à da vigília, por movimentos oculares rápidos (electro-oculograma) e pelo desaparecimento total do tónus muscular (atonia muscular). (A noção de sono não REM não deve ser interpretada como ausência de actividade mental durante esse período do sono: o próprio Dement alertou para esse facto, mostrando que muitos despertares durante este sono produziam relatos.) Estes períodos, a que Jouvet chamou sono paradoxal, têm uma duração média de 6 minutos e ocorrem de 25 em 25 minutos durante o sono. Descoberto o terceiro estado do cérebro, o cérebro sonhador, a neurofisiologia adoptou duas abordagens para explicar a actividade onírica: a abordagem da história natural e a abordagem reducionista. Comecemos pela abordagem da história natural que procura explicar o sonho através da sua evolução filogenética e ontogenética, antes de esclarecer os mecanismos neurobiológicos do sono paradoxal:

Filogénese do Sonho. A maior parte dos animais não sonham: um estado semelhante ao do sono paradoxal não pode ser registado nos peixes, nos anfíbios e nos répteis, talvez com excepção dos crocodilos. Os vertebrados inferiores - poiquilotérmicos - parecem não ter necessidade de sono paradoxal, embora exibam a alternância actividade-repouso, com os répteis a mostrar variações de actividade eléctrica cerebral durante o sono comportamental. O sono paradoxal só foi registado com segurança nos animais homeotérmicos, aves e mamíferos, variando muito de espécie para espécie. Assim, por exemplo, a galinha sonha apenas 25 minutos por noite, tal como a vaca, o chimpanzé 90 minutos e o homem 100 minutos. O animal que mais sonha é o gato doméstico: 200 minutos por dia. Estes dados são suficientes para mostrar que o critério da cerebralização não serve para medir a quantidade de sonho de uma espécie. A melhor correlação usada para a medir é o índice de segurança: os animais em segurança no seu biótopo dormem mais facilmente que aqueles que correm o risco de ser atacados, como se o sono lhes abrisse facilmente as portas do sonho. O caso do golfinho - um mamífero marinho dotado de um elevado índice de cerebralização - é deveras desconcertante. Sofrendo da maldição da Ondina que o obriga a respirar voluntariamente, o golfinho - para não morrer afogado enquanto dorme - dorme com um único hemisfério cerebral de cada vez, de modo a que o controlo da respiração seja realizado alternadamente pelo cérebro direito ou pelo cérebro esquerdo. Porém, tanto quanto sei, ainda não foram registados períodos de sono paradoxal durante o sono dos golfinhos (Mukhametov, 1984), o que dificulta a elaboração de teorias fortes sobre as funções dos sonhos. O aparecimento do sono paradoxal durante a evolução coincide com o aparecimento da homeotermia. A passagem da poiquilotermia (animais ectotérmicos) à homeotermia (animais endotérmicos) foi acompanhada por alterações significativas tanto ao nível do cérebro, o aparecimento do archistriatum nas aves e do neocórtex nos mamíferos, como do organismo, o aumento considerável de processos energéticos que permitem a passagem do bradimetabolismo ao taquimetabolismo. Mas houve uma outra alteração crucial ao nível do cérebro: a neurogénese que persiste ao longo da vida dos poiquilotérmicos, desaparece nos homeotérmicos, persistindo apenas em certas aves, onde parece ser responsável pela transmissão genética do reportório do canto nos rouxinóis e nos canários (J. A. Paton & F. N. Nottebohm, 1984). Com efeito, nos mamíferos, a neurogénese cessa no fim da maturação cerebral, durante as primeiras semanas ou meses de vida no gato, no rato ou no bebé recém-nascidos. 

Ontogénese do Sonho. O estudo da ontogénese do sono paradoxal revelou a existência de uma transição progressiva, de limites fluídos e incertos, desde os últimos dias da neurogénese sob controle genético ao aparecimento do sono paradoxal no rato e no gato. Nestes animais experimentais, os primeiros dias pós-natais são ocupados pela alternância de dois estados: um estado de vigília e o sono sísmico ou sono agitado. O comportamento adaptado de vigília permite ao animal recém-nascido, ainda poiquilotérmico, procurar instintivamente o calor (pêlo materno) e a alimentação (tetas). Este estado é interrompido pelo sono sísmico, quase contínuo e sem periodicidade evidente, durante o qual o animal é animado por tremores dos olhos, das orelhas, das patas e da cauda, devido a uma perpétua activação dos neurónios motores. Porém, estes tremores não são de origem central, porque os tremores das patas traseiras persistem após secção da medula. O sono sísmico não exibe nenhum sinal electrofisiológico específico do sono paradoxal, como por exemplo a actividade do sistema ponto-geniculo-occipital (PGO). Além disso, as drogas (P. clorofenilalanina, por exemplo) e as lesões (lesões do rafe, por exemplo) capazes de suprimir o sono paradoxal no adulto não têm efeitos sobre o sono sísmico dos animais recém-nascidos, o que parece indicar que o sono sísmico é a expressão dos movimentos espontâneos que acompanham a neurogénese no fim da vida embrionária. O sono paradoxal só aparece e substitui - pouco a pouco - o sono sísmico quando a programação genética do sistema nervoso começa a estar concluída, apresentando, depois do vigésimo primeiro dia ou da segunda semana de vida, todos os sinais típicos do sono paradoxal dos adultos, incluindo a sua periodicidade. Quando isso ocorre, os tremores musculares desaparecem, subsistindo apenas os movimentos oculares, comandados pelo gerador do tronco cerebral, e a activação cortical aparece ao mesmo tempo que os sinais endógenos (actividade PGO) invadem o córtex visual: o sono paradoxal já pode ser aumentado ou suprimido com recurso às mesmas drogas que o aumentam ou suprimem no adulto. O estudo da filogénese e da ontogénese do sono paradoxal revela, pelo menos numa primeira aproximação, a existência de uma relação inversa entre a neurogénese e o sono paradoxal, aliás suportada por três enunciados observacionais: não existe sono paradoxal nos animais ectotérmicos (1), cuja neurogénese assegura a programação genética do cérebro durante toda a vida, de acordo com os mecanismos clássicos a partir do ADN; os episódios de sono paradoxal têm uma duração muito breve (5 a 15 segundos, constituindo apenas 3 a 5 por cento da duração total do sono) nas aves (2), nalgumas das quais a neurogénese persiste na idade adulta; e, nos mamíferos, o sono paradoxal substitui gradualmente o sono sísmico à medida que a neurogénese desaparece durante o seu desenvolvimento pós-natal (3).

Este não é o lugar mais adequado para explicitar o modelo neurológico que serviu de base à teoria psicanalítica de Freud e ao seu modelo dos sonhos. Em 1890, Santiago Ramón y Cajal formulou a hipótese de que o cérebro é composto por células individuais, separadas umas das outras, e não por um sistema reticular, como propunha Golgi. Freud publicou, em 1895, o Projecto ou Esboço de uma Psicologia Científica, onde apoia a hipótese neuronal de Ramón y Cajal. Embora conhecesse os neurónios, Freud desconhecia nessa época a existência do potencial de acção dos nervos, descoberta realizada em 1910, o que marcou negativamente o seu modelo neurológico: os "neurónios" de Freud são completamente distintos dos "neurónios actuais". R. W. McCarley & J. A. Hobson (1977) analisaram o modelo neurológico de 1890 que serviu de base à psicanálise de Freud e ao seu modelo dos sonhos, contrastando-o com a neurobiologia tal como a conhecemos: três conceitos da neurologia de Freud determinaram a sua teoria dos sonhos, e cada um deles - a fonte de energia, o fluxo de energia e as transmissões de energia - mostra que o sistema nervoso e a actividade mental que ele suporta são completamente dependentes de energia e informação externa. Assim, para Freud, toda a energia no seio do sistema nervoso vem do exterior, não havendo fonte interna capaz de criar a sua própria acção. A energia externa que entra dentro do sistema nervoso não pode ser cancelada por um mecanismo interno, a inibição, sendo por isso apenas dissipada por descarga motora. Além disso, a energia que recebe do exterior não sofre transdução nas entradas periféricas do sistema nervoso, permanecendo inalterada em qualidade ou quantidade. Ora, todos estes conceitos cristalizam-se no conceito do inconsciente dinamicamente reprimido, sendo transportados para a teoria dos sonhos como a tendência dos desejos inconscientes - provenientes do Id - para irromper durante o sono quando as forças repressivas do Ego e do Superego estão relaxadas. O sistema nervoso esboçado por Freud é um sistema que precisa de controlar constantemente as ameaças de perturbação proveniente do interior e do exterior, de modo a zelar pela defesa psíquica. É certo que Freud reconheceu as possibilidades que a ciência do cérebro oferecia à psicologia, chegando mesmo a sustentar que no final as suas teorias seriam substituídas pelos dados da neurobiologia, construída a partir da doutrina neuronal de Ramón y Cajal, mas o desenvolvimento da psicanálise acabou por gerar um fosso entre a neurologia e a psiquiatria, em vez de contribuir para a sua fusão, como se o aspecto psíquico pudesse operar independentemente do aspecto fisiológico. A fusão da ciência do cérebro e das abordagens objectivas do sono e da actividade onírica deu origem a uma teoria da actividade onírica completamente distinta da teoria freudiana dos sonhos: a noção avançada por Schopenhauer de que a informação onírica é gerada pelo próprio cérebro - rejeitada por Freud! - encontra-se no centro dessa nova teoria neurofisiológica do sonho, a qual permite elucidar os mecanismos neurais responsáveis pelo comportamento de dormir (cérebro adormecido), pelo sonho (cérebro sonhador) e pela vigília alerta (cérebro desperto). Aserinsky & Kleitman descobriram em 1953 o sono REM ou sono paradoxal humano, vendo nele a base fisiológica da actividade onírica, e, em 1958, William Dement determinou que uma fase idêntica do sono ocorre nos gatos. Michel Jouvet observou mais tarde que, quando os seus gatos submetidos a tarefas de aprendizagem se aborreciam e entravam no sono paradoxal, perdiam o tónus muscular. Ora, esta atonia muscular era causada por uma inibição activa proveniente da protuberância occipital, situada ao nível do tronco cerebral pôntico, que Jouvet identificou como o centro gerador do sono paradoxal do cérebro em 1962. O sono paradoxal caracteriza-se pela actividade dessincronizada do electroencefalograma (EEG), pela atonia muscular, pelos movimentos rápidos dos olhos e pelo aumento da actividade genital, pelo menos nos seres humanos, sendo a sua taxa de metabolismo tão elevada como a da vigília. O sistema dos circuitos neurais que controlam o sono paradoxal é muito complexo: o primeiro acontecimento que precede uma fase de sono paradoxal é a activação de neurónios colinérgicos da área peribraquial - núcleo pedunculopôntico tegmental e núcleo laterodorsal tegmental - da protuberância dorsolateral. Estes neurónios activam directamente os mecanismos tronco-encefálicos responsáveis pelos movimentos rápidos dos olhos (área do tecto do mesencéfalo) e desencadeiam ondas PGO através das suas conexões com o núcleo geniculado lateral do tálamo, donde se dirigem para o córtex visual (occipital) primário. Além disso, activam os neurónios na região imediatamente ventral ao locus coeruleus - núcleo subcoeruleus - que, através das suas conexões com o núcleo magnocelular do bulbo, produzem atonia muscular, inibindo os neurónios motores da medula espinal. Finalmente, estes neurónios activam neurónios da formação reticular pontina medial (FRPM) que, por sua vez, excitam os neurónios colinérgicos do prosencéfalo basal responsáveis pela activação cortical que acompanha o sono paradoxal. Os neurónios noradrenérgicos do locus coeruleus e os neurónios serotonérgicos dos núcleos do rafe têm efeitos inibitórios sobre os neurónios colinérgicos da protuberância dorsolateral responsáveis pelo sono paradoxal. Os episódios do sono paradoxal só aparecem quando cessa a actividade dos neurónios noradrenérgicos e serotonérgicos. No homem, o sono paradoxal é, como já vimos, um fenómeno periódico que ocorre 90 minutos depois do adormecimento. A duração de uma fase de sono paradoxal é de 20 minutos e estas fases ocorrem de 90 em 90 minutos, sendo intercaladas por sono de ondas lentas. Assim, durante uma noite de sono, aparecem 4 ou 5 fases de sono paradoxal: cerca de 100 minutos ou 20 por cento da duração total do sono. Um dos factores que explicam a periodicidade do sono paradoxal é a temperatura: a temperatura do encéfalo diminui durante o sono de ondas lentas, em virtude do decréscimo da actividade metabólica cerebral. Ora, esta diminuição da temperatura do encéfalo pode estimular os neurónios responsáveis pelo sono paradoxal (Jouvet, 1975): o aumento da actividade cerebral que ocorre durante o sono paradoxal origina um aumento da temperatura do encéfalo, que volta a cair durante o período subsequente de sono de ondas lentas. Sem a constituição de reservas energéticas sob a forma de glicogénio, armazenado nas células (nutritivas) da glia, o sonho não pode irromper e gastar essas reservas segundo vias metabólicas diferentes da vigília, na medida em que a consciência onírica gasta uma quantidade de energia maior do que a consciência acordada ou desperta: o renovamento das reservas energéticas durante o sono de ondas lentas explica, em parte, o funcionamento periódico dos sistemas que geram e controlam a actividade onírica.

Quanto à neurofisiologia dos diferentes aspectos do espírito - as consciências oníricas - durante o sono e os sonhos e das semelhanças ou diferenças entre eles e a consciência vigil, o domínio do desconhecido ainda excede em muito o domínio do conhecido. Além disso, ainda não foi possível determinar uma função para o sonho a partir dos seus mecanismos neurobiológicos, capaz de fazer esquecer a teoria freudiana do sonho como guardião do sono, ao impedir a intrusão de desejos não ocultos e inaceitáveis no sistema consciente, com a vigília consecutiva. Existem, é certo!, muitas teorias neurobiológicas sobre as funções do sonho: o sonho sentinela, que periodicamente torna mais leve o sono para permitir a sobrevivência do animal em meio hostil (Snyder, 1966); o sonho - a janela do sono paradoxal de Carlyle Smith! - que transforma a memória a curto prazo numa memória a longo prazo (E. Hennevin, P. Leconte & V. Bloch, 1977); o sonho que facilita ou inibe as transferências entre os hemisférios cerebrais direito e esquerdo (G. Perec, 1973); o sonho epifenómeno que funciona como fantasma da vida vigil; enfim, o sonho obrigatório - sonho esquecimento - para "apagar" as informações sem interesse, como se sonhássemos para esquecer (E. Crick & G. Mitchison, 1983). (A teoria do repouso neuronal de Pavlov e Sherrington já foi posta de lado!) Cada uma destas teorias ajuda a elucidar muitos aspectos do sonho, mais nos animais do que no homem, embora nenhuma delas possa reclamar um suporte empírico inquestionável. As únicas teorias sobre as funções da máquina endógena do sonho que merecem mais atenção são a hipótese sobre as funções do sono paradoxal no desenvolvimento ontogenético de H. Roffwang, J. N. Muzio & W. C. Dement (1966), a hipótese da programação do sono paradoxal de E. M. Dewan (1969) e a hipótese da programação iterativa de Michel Jouvet (1978): «O homem é sonhado. É o sonho que nos torna diferentes uns dos outros, porque é nessa altura que uma programação iterativa vem "apagar" os traços desta ou daquela aprendizagem ou, pelo contrário, reforçá-los, se estiverem de acordo com a programação genética do sonho (porque os neurónios dos homeotérmicos já não se dividem, ao contrário dos dos poiquilotérmicos). Não existe, pois, ao nível do cérebro, nenhum sistema que permita, graças ao ADN, a conservação dos traços hereditários que se observa ao nível dos outros órgãos, como o nariz dos Bourbons, por exemplo» (Jouvet). Como é demasiado evidente, toda esta viagem que realizei pelo mundo dos sonhos abona a favor destas três últimas hipóteses e, de modo especial, da hipótese da programação iterativa. No entanto, convém esclarecer que todas elas assentam nalguma forma de identidade entre processos mentais e processos neurais - o isomorfismo cérebro-mente da hipótese de activação-síntese da actividade onírica de J. Allan Hobson & Robert W. MacCarley (1977), pressuposto filosófico que carece de evidência empírica. Uma das funções da neurofilosofia é elucidar estes pressupostos filosóficos das teorias neurobiológicas e questioná-los à luz da teoria crítica da sociedade, tarefa que não levarei a cabo aqui, embora tenha iniciado esta viagem com algumas indicações nesse sentido. A teoria de Freud dos sonhos ainda tem uma vantagem sobre as teorias neurobiológicas: a sua teoria da mente, além de ser uma teoria (errada) do cérebro, é também uma teoria (crítica) da sociedade, como demonstraram Herbert Marcuse e, mais tarde, Jürgen Habermas. As neurociências começaram a dar os seus primeiros passos no domínio social, com a emergência fulgurante da neurociência social. As condições são favoráveis à irrupção no saber ocidental da neurofilosofia como disciplina filosófica fundamental que vem substituir a filosofia da mente.

J Francisco Saraiva de Sousa

8 comentários:

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Qualquer dia ainda faço uma conferência no senado dos USA! Ai, estou cansado de ler tanta papelada e projectos dos senadores! :)

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Ya, ando a ficar um pouco republicano! Movo-me bem entre os contrários e já não desejo a síntese... Sempre um lutador!

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Está a ficar cada vez mais frio e daqui a pouco estaremos aqui com uma temperatura negativa: -2 graus! Bem, não posso queixar-me muito, porque prefiro o frio temperado ao calor exagerado. :)

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Ai, as pessoas fogem da verdade como o diabo da cruz. Por isso, o seu mundo nunca melhora... :(

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Nem o meu poder de síntese é suficiente para permitir analisar as dificuldades num único post! Tema complexo, daí o título neurofilosofia: ...! Vai continuar noutros textos.

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Bem, afinal uma síntese fundamental! Está concluído, com o fim a reconduzir ao início, como gosto!

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Hoje estou chateado, porque não encontrei o livro sobre a Sé do Porto. Entretanto, descobri que, em 1466, havia um mercado de escravos no Porto. Enfim, o problema da escravatura merece estudo e é o que estou a fazer.

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Descobri novos documentos sobre o Monomotapa! Afinal, os ingleses conhecem melhor a história de Portugal do que os portugueses!