Violência Encarnada no Futebol |
«O homem gosta demasiadamente de se imaginar no centro do universo, não fazendo parte do resto da natureza, mas opondo-se a ela como um ser de essência diferente e superior. Perseverar neste erro é para muitos homens uma verdadeira necessidade. Fazem ouvidos de mercador ao mais inteligente conselho que um sábio alguma vez lhes deu: o famoso "Conhece-te a ti mesmo", atribuído a Sócrates, mas de facto pronunciado por Quílon. Que impede o homem de obedecer a esta ordem? (O orgulho impede-o de se conhecer a si próprio, escondendo-lhe o facto de que ele é um produto da evolução histórica.)» (Konrad Lorenz)
Primeiro a controvérsia evolucionista, no século XIX, depois a controvérsia etológica, e, por fim, a controvérsia sociobiológica, ambas no século XX: a Filosofia tem dedicado muita atenção às controvérsias científicas, nomeadamente à controvérsia entre Samuel Clarke e Leibniz, mas nunca se concentrou seriamente sobre estas três controvérsias biológicas. O que há de comum a estas controvérsias evolucionistas que fere o orgulho do homem? O facto delas desalojarem o homem da sua posição privilegiada na «criação», fazendo dele - tanto ao nível morfológico e fisiológico como ao nível comportamental - o resultado da evolução filogenética por selecção natural. As três revoluções evolucionistas - a revolução darwinista, a revolução etológica e a revolução sociobiológica - opõem-se ao antropocentrismo egoísta do homem. Desalojar o homem do lugar privilegiado que ocupa no universo tornou-se uma tarefa da ciência desde Copérnico: a revolução copernicana desalojou o homem do centro do universo e as revoluções evolucionistas privaram-no do seu lugar central na «criação» orgânica. A destruição do cosmos operada pela ciência moderna e a perda, pela Terra, da sua situação central e singular, levaram inevitavelmente à perda, pelo homem, da sua posição singular e privilegiada no drama teocósmico da «criação», da qual o homem era até então tanto a figura central como a cena. A revolução científica deixou-nos sozinhos no mundo mudo e aterrorizante de Pascal, um mundo desprovido de sentido, no qual o homem encontra o niilismo e o desespero. Nicolau de Cusa e Giordano Bruno não sentiram o deslocamento da Terra do centro do mundo como uma degradação: ambos ficaram satisfeitos com esse deslocamento, e Bruno vai além da afirmação de Cusa de que a imutabilidade não pode ser encontrada em parte alguma de todo o universo, para afirmar que o movimento e a mutação são sinais de perfeição e não de ausência de perfeição. Um universo imutável seria um universo morto; apenas um universo vivo é capaz de se mover e de se modificar. Encontramos aqui formulada a ideia fulcral do progresso: a ideia de aperfeiçoamento, o alvo da crítica protagonizada pela revolução ecológica. No decurso do século XX, a biologia foi a ciência natural que mais contribuiu para a modificação substancial da nossa imagem do mundo e do homem, e, no entanto, a Filosofia voltou-lhe as costas, como se as ciências sociais constituíssem uma plataforma paradigmática segura para conhecer o homem. A etologia, tal como foi elaborada pelo seu fundador, Konrad Lorenz, é menos «redutora» do que a sociobiologia criada por Edward Wilson. Ambas as disciplinas biológicas são contrárias ao antropocentrismo, segundo o qual «o homem é único entre os animais» (Tinbergen). Mas divergem de algum modo quanto à estratégia seguida para conhecer as «raízes animais» do comportamento humano. Ao contrário da estratégia seguida por Wilson, toda ela dirigida à busca das semelhanças e das bases genéticas do comportamento social, a estratégia etológica vacilou muito entre a busca das semelhanças e a busca das diferenças entre o animal e o homem. A conferência de Tinbergen, pronunciada no ciclo "Estudos Sociais e Biologia" na Universidade de Oxford, a 27 de Outubro de 1964, ajuda-nos a compreender esta diferença estratégica entre a etologia humana e a sociobiologia humana, de resto bem evidenciada na obra de John Tyler Bonner (1980) sobre a evolução da cultura nos animais e na obra de W. H. Thorpe (1974) sobre a natureza animal e a natureza humana, para já não referir a obra de I. Eibl-Eibesfeldt (1973) sobre o homem pré-programado.
Quando se diz que o homem é único entre os animais, a palavra "único" pode ter dois significados ligeiramente diferentes. Pode significar: o homem não é idêntico a nenhum animal. É verdade que o homem é notavelmente diferente dos animais, mas este sentido aplica-se igualmente a todos os animais, porque cada espécie, bem como cada indivíduo, é única neste sentido. Mas também pode ter um sentido absoluto: o homem é tão essencialmente diferente que existe uma lacuna entre ele e os animais, a qual não pode ser preenchida, dado o homem ser algo totalmente novo. A utilização da palavra "único" neste sentido absoluto implica a presunção - ou melhor, o juízo precipitado, o preconceito - de que é inútil procurar as raízes animais do comportamento humano. Ora, este divórcio entre a natureza animal e a natureza humana não é uma conclusão baseada numa análise objectiva do comportamento, mas um preconceito antropocêntrico que inviabiliza qualquer tipo de estudo comparado do comportamento. Tinbergen utiliza a palavra "único" no seu sentido relativo: o homem é único por ser notavelmente diferente dos animais, embora também ele seja um animal. E, usando uma frase orwelliana, afirma que «todos os animais são únicos, mas o homem é mais único do que os demais (animais)». Toda a conferência de Tinbergen é dedicada à descoberta daquilo que no homem é realmente único. O singular do homem não reside nas suas estruturas corporais, mas no seu comportamento: o seu corpo e as suas funções são em geral muito similares às dos demais mamíferos, razão pela qual a medicina pode estudar nos animais as funções orgânicas básicas e extrapolar para o homem com certo grau de confiança. Afirmar a singularidade do comportamento humano equivale a afirmar a singularidade do cérebro humano. O homem é único porque o seu cérebro é único e funciona de uma maneira única. Para apreender o que no homem é realmente único, o biólogo recorre ao processo evolutivo: o homem evoluiu, lenta e muito gradualmente, a partir de animais ancestrais que eram muito mais similares aos outros mamíferos do que o é o homem de hoje. Tudo o que o homem é e tudo o que faz agora desenvolveu-se, mediante uma série de pequenos passos evolutivos, a partir do que os seus antepassados foram e fizeram. O homem separou-se gradualmente do tronco dos macacos para se converter no que é hoje em dia, da mesma maneira que as espécies animais modernas intimamente relacionadas se desenvolveram a partir de um tronco comum. O estudo deste processo gradual de evolução divergente implica a utilização de métodos indirectos que permitem aos biólogos reconstruir uma série de processos, cada um dos quais foi único, e de distintas etapas da evolução biológica. As propriedades estruturais podem ser estudadas com base nos fósseis, os quais podem ser datados e colocados numa escala de tempo. O registo fóssil permite-nos dizer com segurança que as baleias procedem dos mamíferos ou que os morcegos transformaram em asas os seus membros anteriores. Estes exemplos mostram que a evolução nunca produz nada realmente novo, operando, em vez disso, mudanças graduais em algo que já existia. A evolução humana não escapa a este modo de actuação da selecção natural, ao qual François Jacob chamou bricolagem: «A evolução não tira do nada as suas novidades. Trabalha sobre o que já existe, quer transformando um sistema antigo para lhe dar uma nova função, quer combinando diversos sistemas para com eles arquitectar um outro mais complexo. O processo de selecção natural não se parece com nenhum aspecto do comportamento humano. Mas se quisermos lançar mão duma comparação, deverá afirmar-se que a selecção natural actua, não à maneira dum engenheiro, mas dum engenhoqueiro (bricoleur); um engenhoqueiro que ainda não sabe o que vai fazer, mas que recupera tudo o que lhe vem às mãos (...) para daí tirar algum objecto utilizável». Além do método paleontológico, o biólogo dispõe de um segundo método, menos directo do que o primeiro: a comparação. Assim, por exemplo, se não tivéssemos fósseis dos antecessores das baleias, poderíamos concluir que elas derivam dos mamíferos terrestres fazendo duas comparações: as baleias compartilham a maioria dos seus caracteres com os mamíferos, apesar da sua semelhança superficial com os peixes; e, como a maioria dos mamíferos são terrestres, concluímos que as baleias descendem de mamíferos terrestres. O método comparativo fornece os mesmos resultados que o estudo dos fósseis, sendo frequentemente utilizado nos casos onde os fósseis são escassos ou não existem. Como os fósseis carecem de comportamento, o estudo evolutivo do comportamento só pode ser realizado com recurso ao método comparativo, o qual é mais seguro quando as diferenças entre as espécies comparadas são pequenas, e menos seguro quando as diferenças são grandes. Quando procuramos as raízes animais do comportamento humano, devemos ter em atenção que as semelhanças entre espécies diferentes podem desenvolver-se de duas maneiras totalmente diferentes. Nas espécies aparentadas as semelhanças são frequentemente o resultado de uma ligeira divergência evolutiva a partir de caracteres ancestrais comuns. Mas noutros casos, sobretudo quando os grupos animais são diferentes, as semelhanças são o resultado de uma convergência por uma adaptação comum a uma função: os padrões específicos de comportamento desenvolvem-se neste caso de maneira convergente. No primeiro caso, as semelhanças (homologias) indicam uma origem comum, enquanto no segundo caso são superficiais (analogias). Tinbergen refere outras dificuldades com as quais se confronta o estudo comparado do comportamento animal e humano, em especial a terminologia, mas quando isola os traços típicos do comportamento humano, tais como por exemplo a aptidão para a cultura, a aptidão para aprender, a capacidade de raciocínio, a linguagem, o sentido da beleza, a ética e a religião, fá-lo de modo a compreender a herança animal do homem, dando exemplos de comportamentos animais que anunciam desde logo esses mesmos traços humanos. Aquilo que parece ser especificamente humano - o comportamento novo - já se encontra pré-figurado e elaborado de algum modo na cadeia da evolução filogenética, diminuindo assim a distância entre o animal e o homem. Lorenz utilizou repetidas vezes este argumento: «Se dizemos: o homem é um mamífero e, muito especialmente, um antropóide, temos razão. Mas se dissermos: o homem na realidade não é mais do que um mamífero, estamos a blasfemar». A etologia humana, cujo programa foi traçado nessa conferência de Tinbergen, rejeita o reducionismo ontológico, de resto já acusado de ser totalmente falso por Julian Huxley que forjou o conceito de evolução psico-social - a evolução cultural de Lorenz e Tinbergen - para explicar as mudanças adquiridas através da experiência individual e transmitidas à geração seguinte por tradição.
O objectivo deste estudo é aflorar alguns aspectos da controvérsia etológica em torno da agressão. Os livros que foram alvo dos ataques brutais dos auto-intitulados humanistas foram os seguintes: A Agressão: Uma história natural do mal de Konrad Lorenz (1963), O Imperativo Territorial, O Contrato Social e African Genesis de Robert Ardrey (1966, 1970, 1961), Adventures with the Missing Link de Raymond A. Dart (1959), O Zoo Humano e O Macaco Nu de Desmond Morris (1969, 1967), A Agressividade Humana e A Destrutividade Humana de Anthony Storr (1968, 1972), e Sobre a guerra e a paz nos animais e no homem de Nico Tinbergen (1968). Estas obras são de valor científico desigual e, por isso, colocá-las ao mesmo nível é intelectualmente desonesto: as obras de divulgação de Ardrey e Morris, escritas numa linguagem jornalística, são «inferiores» - em termos científicos - às obras dos restantes autores que divulgam os resultados da sua própria prática científica. Os detractores da etologia humana - mais tarde desenvolvida por Irenäus Eibl-Eibesfeldt - usaram essa estratégia retórica para atribuir a todos os autores referidos a mesma concepção da natureza humana, a do homem como assassino. Ora, esta noção foi explicitada por Ardrey a partir dos trabalhos de Dart: «Os arquivos da história humana, salpicados de sangue e entranhas destroçadas, desde os testemunhos egípcios e sumérios mais antigos até às atrocidades da Segunda Guerra Mundial, coincidem com o universal canibalismo primitivo, com as práticas de sacrifícios animais e humanos ou os seus equivalentes nas religiões formalizadas, com os costumes estendidos por todo o mundo de arrancar o couro cabeludo, caçar cabeças, mutilar corpos e demais actos necrófilos da humanidade, coincidem, repetimos, em proclamar essa comum paixão sanguinária, esse hábito predador, essa marca de Caim que separa dieteticamente o homem dos seus antropóides afins e o alia melhor com os mais letais carnívoros». Ardrey expressou esta ideia com mais simplicidade dizendo que «o ser humano, nos aspectos mais fundamentais da sua alma e do seu corpo, é ainda hoje a última palavra da natureza enquanto predadores armados, e a história humana deve ler-se em tais termos». O homem emergiu do fundo antropóide por uma única razão: «porque era um assassino». Hoje, graças aos trabalhos de campo de Jane Goodall sobre os chimpanzés na Tanzânia, sabemos que o "fundo antropóide" do qual emergiu o homem não é tão inocente como julgava Ardrey: os chimpazés organizam caçadas de membros de outros grupos de primatas e da própria espécie, matam-nos e comem a sua carne. Entre os primatas, não são apenas os homens que são filhos de Caim: os nossos "irmãos menores", os chimpanzés, também são filhos de Caim. Trata-se de um modelo de antropogénese que foi desenvolvido por S. L. Washburn & Ruth Moore (1980) na sua obra Ape into Human: A study of Human Evolution, e por S. L. Washburn & C. Lancaster (1968) no artigo The evolution of hunting, bem como por outros primatólogos (Claud A. Bramblett, 1976; Craig B. Stanford, 1999) e antropólogos (Lionel Tiger & Robin Fox, 1971), cuja ideia fulcral é a seguinte: «Somos filhos de Caim. A união do cérebro grande e do sistema carnívoro produziu o homem como possibilidade genética» (Ardrey). Eibl-Eibesfeldt (1970) escreveu um livro, Amor e Ódio, para combater a perspectiva de Dart e Ardrey, segundo a qual o modo de vida predador foi a condição necessária para a evolução da agressividade no seio da espécie humana, de modo a demonstrar que o conceito de assembleia dos instintos de Lorenz não permite a redução de tudo ao instinto de agressividade. O que Eibl-Eibesfeldt parece não ter compreendido é que o modo de vida carnívoro desempenhou um papel importante na antropogénese. Os modelos de antropogénese de Lorenz e de Dart-Ardrey são diferentes, mas não são incompatíveis. Infelizmente, Eibl-Eibesfeldt que escreveu importantes obras sobre etologia humana nunca deu especial destaque nelas à antropogénese, uma das grandes preocupações do seu mestre. Lorenz esboçou o seu modelo de antropogénese em diálogo com a antropologia filosófica, em especial com a abordagem antropobiológica de Arnold Gehlen, em dois importantes estudos: O Todo e a Parte na sociedade animal e humana (1950) e Psicologia e Filogénese (1954). No entanto, tanto quanto me lembro, o conceito de mentalidade de carnívoro, retomado de Dart, a propósito dos australopitecos, só aparece reavaliado na sua opus magnum que é A Agressão, cujos últimos três capítulos são dedicados exclusivamente ao estudo biológico do comportamento agressivo do homem. Lorenz comete o erro de pensar que os carnívoros profissionais desenvolveram mecanismos de inibição da agressividade intra-específica que os impedem de matar membros da sua própria espécie: a sociobiologia dos leões demonstrou que eles são capazes de matar os seus rivais e os seus descendentes menores no seu próprio meio natural. A teoria da natureza humana de Lorenz é deveras complicada para ser exposta aqui, tendo sofrido diversas remodelações e aperfeiçoamentos ao longo da sua vida intelectual.
O que estava em causa neste debate entre etólogos e "cientistas sociais" - entre os quais destaco Ashley Montagu (The Nature of Human Aggression, 1976) e Erich Fromm (Anatomia da Destrutividade Humana, 1973) - era saber se a agressão é inata ou adquirida. A teoria da agressão de Lorenz assenta em dois pilares fundamentais: o conceito hidráulico de agressão e a ideia de que a agressão está ao serviço da vida. Ninguém pode duvidar seriamente do carácter instintivo da agressividade humana: o homem não aprende o comportamento agressivo, como sugere Montagu; o homem é, por natureza, um ser agressivo, capaz de matar não só os outros animais (agressividade interespecífica) como também os seus congéneres (agressividade intra-específica), tanto os do seu grupo (agressividade intragrupal) como os dos outros grupos estranhos (agressividade intergrupal). Li A Agressão de Lorenz pouco depois de ter entrado no curso de Medicina, e, logo nessa altura, constatei que estava diante da obra-prima da literatura etológica, que fez estremecer os débeis alicerces das ciências sociais, em particular da psicologia behaviorista americana. É de todas as obras de Lorenz aquela que avança no caminho certo para integrar as ciências sociais, de orientação filosófica, no seio das ciências naturais, mediante um conceito que, sendo usado pelos dois campos disciplinares, permite unificá-los: o conceito de ritualização que Julian Huxley utilizou pela primeira vez, pouco antes da Primeira Guerra Mundial, quando realizava os seus estudos pioneiros sobre o comportamento do mergulhão de crista, para designar certos modos de movimento que perderam no decurso da filogénese a sua função primitiva para se tornarem cerimónias puramente simbólicas. Graças a este conceito, no seu duplo sentido de ritualização filogenética e de ritualização cultural, Lorenz não só estabeleceu uma analogia produtiva entre a evolução biológica, cujos grandes construtores são a mutação e a selecção natural, e a evolução cultural, como também esboçou uma teoria natural da cultura e da sociedade - Lorenz distingue quatro grandes sistemas sociais: o bando anónimo, livre de qualquer agressividade, mas cujos membros não se conhecem individualmente e não mostram qualquer solidariedade social (1); a vida social e familiar das garças-gorazes e de outras aves que fazem ninho em colónias, vida inteiramente fundada na estrutura local do território a defender (2); a superfamília dos ratos, cujos membros se não reconhecem enquanto indivíduos mas pelo seu cheiro tribal, de tal modo que o seu comportamento social para com os membros da própria tribo é exemplar, enquanto combatem com ódio e persistência os congéneres que pertencem a outra tribo (3); e as sociedades, cujos membros não se combatem nem ferem mutuamente, porque há, entre indivíduos, laços de amizade e de amor que a isso se opõem (4) - que permite pensar o seu confronto perigoso com a «biologia». Eibl-Eibesfeldt, W. John Smith e Wolfgang Wickler deram contributos importantes no domínio das ritualizações, mas uma das obras mais interessantes é a de Pietro Scarduelli que compara os sistemas rituais humanos a partir da sua base filogenética. Apercebendo-se da ameaça que a etologia representava para o domínio dos letrados nas ciências sociais, cujo paradigma mais não é do que a teoria ambientalista, como lhe chama Eibl-Eibesfeldt, Fromm lamentou o facto de Lorenz ter escolhido como seu herói Darwin: «Para Lorenz, e para muitos outros, a ideia de evolução tornou-se a essência de todo um sistema de orientação e de devoção. Darwin tinha revelado a verdade derradeira quanto à origem do homem; todos os fenómenos humanos que pudessem ser explicados e abordados por considerações económicas, religiosas, éticas ou políticas tinham de ser entendidos do ponto de vista da evolução. Essa atitude quase religiosa em relação ao darwinismo é evidente no emprego que Lorenz faz da expressão "os grandes construtores", referindo-se à selecção e à mutação. Fala dos métodos e dos objectivos dos "grandes construtores" de modo muito parecido com a maneira como um cristão falaria dos actos de Deus. Emprega até mesmo o singular, o "grande construtor", chegando, dessa forma, mais perto da analogia com o conceito de Deus». Aqui está um exemplo da estratégia retórica seguida pelos detractores da etologia: acusar a qualidade idolatra do pensamento do seu fundador, em vez de discutir a própria teoria da agressão de uma forma séria e objectiva. E o mais engraçado é verificar que acusam Lorenz daquilo que eles próprios não conseguem explicar, em função da teoria do meio ambiente, que Lorenz demoliu em poucas frases: «Julgavam eles que as crianças a quem se poupasse todas as frustrações e a quem se fizesse sempre a vontade seriam menos neuróticas, mais bem adaptadas ao seu meio social e sobretudo menos agressivas. Mas um método de educação americano fundado nesta hipótese limitou-se apenas a mostrar que a pulsão agressiva, como muitos outros instintos, surge "espontaneamente" do coração do homem; o resultado desse método de educação foram crianças insuportáveis, insolentes e tudo menos não agressivas. O lado trágico desta tragicomédia revelou-se quando, depois de grandes, essas crianças abandonaram a família e se encontraram, já não frente a pais indulgentes, mas à opinião pública impiedosa, por exemplo ao entrarem para as universidades. Alguns psicanalistas americanos contaram-me que, sob a pressão de uma integração social duramente conquistada, muitos desses jovens se tornaram realmente neuróticos». Com o carácter espontâneo da agressividade encontramo-nos já no âmbito do conceito hidráulico de agressão, um dos pilares da teoria de Lorenz: «A ideia totalmente errada de que o comportamento animal e humano é, em primeiro lugar, reactivo e, portanto, mesmo que contenha também certos elementos inatos, modificável pela aprendizagem, é uma ideia que tem raízes profundas, difíceis de extirpar, no nosso conhecimento defeituoso dos princípios democráticos. Esses princípios, válidos em si mesmos, impedem-nos de admitir que os seres humanos não nasceram todos iguais e que nem todos têm idênticas probabilidades de se tornar cidadãos ideais. Além disso, durante vários decénios, a reacção, o "reflexo", é o único factor de comportamento que os psicólogos sérios estudaram, ao passo que abandonavam tudo o que é "espontaneidade" do comportamento aos vitalistas e à sua interpretação sempre um tanto mística da natureza». Para Lorenz, a agressividade humana é um instinto alimentado por uma fonte de fluxo ininterrupto de energia, e não - como pensam os amigos do reflexo - o resultado de uma reacção a estímulos externos, susceptível de ser modificada pela aprendizagem: Adrian, Paul Weiss, K. Roeder e sobretudo E. von Holst «revelaram-nos que o sistema nervoso central não precisa, para responder, de esperar pelos estímulos, tal como uma campainha precisa que lhe carreguem no botão. Ele pode produzir por si próprio os estímulos, o que na verdade dá uma explicação natural fisiológica do comportamento espontâneo dos animais e dos seres humanos». A energia específica destinada ao acto agressivo acumula-se continuamente nos centros nervosos responsáveis por este padrão de comportamento. Quando se acumula energia suficiente, de modo a aumentar a prontidão para a sua descarga, pode ocorrer um disparo, mesmo sem a presença de um estímulo externo. As experiências com casais de pombos realizadas por Wallace Craig «mostram que quando um comportamento instintivo - neste caso a dança de amor - é interrompido durante um tempo prolongado, o limiar dos estímulos que o provocam diminui. É um facto tão geral e que se produz com tal regularidade que a sabedoria popular o exprime dizendo: "À falta de melhor, come-se do que há". (...) A diminuição do limiar dos estímulos pode, em certos casos, aproximar-se de zero, ou seja, o movimento instintivo em questão pode iniciar-se sem ter havido qualquer estímulo exterior». Geralmente, o animal e o homem encontram estímulos que libertam a energia contida e recalcada do impulso, sem terem de aguardar passivamente pelo aparecimento dos estímulos adequados que o provocam. Eles procuram e até podem produzir os estímulos que libertam a energia armazenada, mediante o comportamento apetitivo (W. Craig): «O recalcamento de um movimento instintivo, produzido pela supressão durante tempo prolongado dos estímulos que o determinam, não tem apenas como resultado tornar o organismo mais pronto a reagir, mas provoca transformações muito profundas que o afectam no seu conjunto. Em princípio, todo o verdadeiro movimento instintivo a que se recusa a possibilidade de ab-reacção, tal como acabamos de descrever, pode ter como efeito pôr o animal num estado de agitação e fazê-lo procurar estímulos aptos a provocá-la». Assim, quando não encontram nenhum estímulo externo, a energia do impulso agressivo acaba por explodir, sendo posta em acção in vacuo, sem estimulação externa demonstrável (actividade no vazio). A agressão é, antes de tudo, uma excitação elaborada internamente que procura ser libertada sob a forma de um acto motor, independentemente da adequação dos estímulos externos: «O que dissemos basta já para fazer compreender que o recalcamento da agressão se torna tanto mais perigoso quanto mais intimamente os membros do grupo se conhecem, e quanto mais se compreendem e gostam uns dos outros. Posso confirmar por experiência que, em tal situação, todos os estímulos que podem desencadear a agressão e o comportamento combativo intra-específico sofrem um forte abaixamento do seu limiar. Coisa que se exprime subjectivamente pelo facto de se reagir contra os pequenos movimentos dos melhores amigos, o seu pigarro ou a maneira de se assoarem, como se se tivesse recebido uma bofetada dum brutamontes bêbedo. Entender o mecanismo fisiológico deste fenómeno extremamente penoso impede-nos de assassinarmos o nosso amigo, mas não minora o nosso sofrimento. A única solução para uma pessoa razoável é, no fundo, abandonar pé ante pé a barraca e, dirigindo-se a qualquer objecto, fazê-lo voar em estilhas com o maior barulho possível. Isto ajuda sempre um bocado e é aquilo a que se chama, na linguagem da fisiologia do comportamento, redirected activity, segundo Tinbergen». O modelo psico-hidráulico de Lorenz (1950) é uma construção teórica brilhante que nos permite explicar os comportamentos instintivos, entendidos como padrões específicos, estereotipados e herdados de comportamento. Lorenz (1981) reformulou-o mais tarde quando escreveu a sua grande síntese etológica, Os Fundamentos da Etologia, articulando-o com os modelos hierárquicos, para se aproximar do parlamento dos instintos, mas nunca ninguém - incluindo Thorpe (1956) - conseguiu traduzi-lo em linguagem neuronal adequada à neurobiologia (Cf. Gordon M. Shepherd, 1983; K. Roeder, 1955; Erich von Holst, 1969-70). O carácter a-fisiológico do modelo justifica-se pelo facto dele não implicar a existência de depósitos de líquido no sistema nervoso central: o seu objectivo era apenas fornecer uma maneira conveniente de descrever as propriedades gerais que deve ter o verdadeiro mecanismo neural, o qual já pode ser interpretado em termos aceitáveis pela actual neurofisiologia do sistema nervoso central. D. S. Lehrman (1953), R. A. Hinde (1970) e, em menor grau, Peter H. Klopfer (1985) criticaram a teoria do instinto de Lorenz e Tinbergen, desvirtuando o sentido dos conceitos e da sua relação estrutural no seio do sistema teórico: o primeiro procurando mostrar que o comportamento não pode ser separado em componentes inatos e aprendidos, distintos um do outro, de modo a rejeitar completamente a ideia de um comportamento inato, inscrito no genoma e não afectado por quaisquer factores ambientais; o segundo movendo um ataque contra os conceitos de accionador e de energia, de modo a rejeitar a ideia de comportamento instintivo, com os seus componentes congénito e accionado internamente; e o terceiro deslocando a etologia para o campo da ecologia do comportamento. No entanto, apesar destas críticas, Lorenz e Tinbergen não alteraram substancialmente a sua teoria.
O conceito hidráulico da agressão diz respeito ao mecanismo (causal) através do qual se produz a agressão: falta agora analisar o carácter adaptativo dos comportamentos agressivos: «Na natureza, a guerra está omnipresente. Os comportamentos e as armas ofensivas ou defensivas postas ao seu serviço atingiram tal perfeição que parece natural atribuí-los à pressão da selecção natural, agindo no interesse da espécie». A agressão está ao serviço da sobrevivência do indivíduo e da espécie: a agressividade que se manifesta por comportamentos programados geneticamente aumenta com a proximidade do território demarcado como próprio, com a atitude belicosa do adversário, com a provocação de percepções dolorosas e com a época do cio. A agressão intra-específica favorece a sobrevivência da espécie de três modos, as suas três funções: «a repartição de seres vivos semelhantes no espaço vital disponível, a selecção efectuada pelos combates entre rivais e a defesa da prole». Na época do acasalamento, a agressividade incrementa-se e leva a que sejam os machos mais fortes a procriar, transmitindo-se assim aos descendentes as melhores variações qualitativas da espécie. A agressividade que aumenta com a proximidade do território demarcado como próprio e que diminui com o seu afastamento, estimula a distribuição territorial e impede a superpopulação de um espaço reduzido, a qual - a densidade demográfica elevada - constitui um factor desencadeante de stress que prejudica as qualidades individuais. Quando despertada por percepções dolorosas, a agressividade fomenta a defesa contra agentes agressores passíveis de causarem danos consideráveis. Reduzindo-se ou anulando-se com a submissão do adversário, a agressividade não provoca destruições maciças nos indivíduos mais fracos das diversas espécies animais. Além disso, a agressão intra-específica permite estabelecer uma ordem social hierárquica que atenua os seus efeitos lesivos. A agressão assume esta função de conservação da espécie tanto mais efectivamente quanto mais a agressão mortal foi transformada em comportamentos, tais como ameaças simbólicas, rituais e comportamentos de submissão ou de apaziguamento, que preenchem a mesma função sem danificar a espécie ou mesmo sem a levar à auto-destruição. Pierre Karli (1987) procura desembaraçar-se das ideias de Lorenz tentando sublinhar algumas ambiguidades, contradições e lacunas que motivam a tomada de posição de Lorenz, duas das quais seriam a sua noção de comportamento agressivo e a confusão entre a função da agressão e a função da pulsão agressiva. Não vale a pena mostrar que a confusão não reside na obra de Lorenz, mas sim na obra do próprio Karli. Lorenz define a agressividade como sendo o instinto de combate do animal e do homem - o comportamento de rivalidade - dirigido contra os seus próprios congéneres. A agressão intra-específica está no centro da obra de Lorenz: os grandes arquitectos da evolução criaram mecanismos fisiológicos de comportamento, cuja função é impedir que os indivíduos da mesma espécie se lesem ou se matem uns aos outros. A solução mais engenhosa inventada pela evolução foi canalizar a agressão para vias mais inofensivas, através da reorientação do ataque graças ao processo de ritualização. A vinculação social que se desenvolveu sobre a base do comportamento de intimidação desvia a agressividade, sem no entanto a extinguir. Nas espécies armadas, a agressividade teria conduzido à sua destruição se não fosse o desenvolvimento de programas instintivos, as inibições instintivas, cujos mecanismos desencadeadores inatos se localizam no sistema nervoso central, que impedem a concretização da destruição da espécie. Geralmente, as lutas entre machos armados - meros combates rituais - não acabam com a morte do adversário, mas com uma atitude simbólica de derrota, anunciada por determinados gestos de submissão ou de humilhação. Ora, as espécies não armadas, como é o nosso caso, não desenvolveram inibições contra matar. É nesta passagem da agressão animal à agressão humana que a tese de Lorenz adquire toda a sua pertinência: «É a espontaneidade do instinto que o torna tão perigoso», sobretudo quando a sociedade não dá oportunidades - válvulas de escape - ao homem para descarregar a sua agressividade, a não ser talvez o futebol. A inteligência do homem - o ser desprovido de armas naturais - inventou armas mortíferas, desde os machados de pedra lascada dos tempos mais remotos até ao arsenal bélico sofisticado de hoje: a bomba H como expressão inteligente do instinto agressivo! Com a fabricação de armas, utilizadas nas guerras intertribais, a agressividade humana tornou-se maligna ou, se preferirem, patológica: os três últimos capítulos da obra de Lorenz são dedicados ao homem enquanto ser-em-perigo (Gehlen), isto é, enquanto ser ameaçado pelo perigo do fratricídio generalizado: «A única esperança está em que os actos especificamente humanos do pensamento racional e da moral responsável derivada dele possam salvar a Humanidade». Mas a reavaliação da sua teoria da agressividade humana implica levar em conta pelo menos dois outros estudos, Sobre o acto de matar o semelhante (1955) e Agressividade: Propriedade tendente à conservação da espécie ou fenómeno patológico? (1977), onde Lorenz afina a sua teoria da história natural da agressão, fazendo emergir os instintos sociais, resultantes do processo de ritualização, e estabelecendo novos princípios. A extensão deste estudo preparatório não permite levar a cabo essa reavaliação: a construção de Lorenz é extremamente complexa, englobando todos os aspectos das interacções sociais e repousando sobre a existência de uma pulsão agressiva geneticamente programada. Estou convencido de que podemos melhorar substancialmente a teoria de Lorenz, mas sem descartar os seus postulados fundamentais. Ler A Agressão é um bom título para um ensaio alargado sobre a teoria da agressão de Lorenz.
J Francisco Saraiva de Sousa