sexta-feira, 6 de julho de 2012

Física e Filosofia

Porto: Ponte do Freixo
«O século que agora se aproxima do fim viu na física uma expansão fantástica das fronteiras do conhecimento científico. As teorias da relatividade restrita e geral de Einstein modificaram para sempre a nossa visão do espaço, tempo e gravitação. Numa cisão ainda mais radical com o passado, a mecânica quântica transformou a própria linguagem que utilizamos para descrevermos a Natureza: em vez de partículas com posições e velocidades definidas, aprendemos a falar de funções de onda e probabilidades. Da fusão da relatividade com a mecânica quântica surgiu uma nova visão do mundo, na qual a matéria perdeu o seu papel central. Este papel foi usurpado por princípios de simetria, alguns deles invisíveis no estado actual do universo. Sobre estes fundamentos construímos uma teoria bem sucedida do electromagnetismo e das interacções nucleares fraca e forte entre partículas elementares. Muitas vezes sentimo-nos como Siegfried, que, depois de ter provado o sangue do dragão, descobriu, para sua surpresa, que entendia a linguagem dos pássaros». (Steven Weinberg)

Ontem, a propósito da descoberta da partícula de Higgs, fui levado a reviver os meus tempos de estudante universitário quando estudava física no curso de medicina. Antes disso já tinha realizado um estudo sobre cosmologia intitulado A Vertigem de Empédocles. Tenho muitas obras de física, incluindo os manuais que utilizei para a estudar. Felizmente, como não sou "político profissional", não tive as facilidades de que estas criaturas das trevas desfrutam para obter pseudo-diplomas, ao abrigo dessa terrível burla que é o processo de Bolonha. Embora não me sentisse especialmente atraído pelo programa demasiado extenso de física, tive de a estudar, aprofundando mais a física atómica do que a mecânica, o calor, a acústica, a electricidade, o magnetismo e a óptica. A mecânica quântica atraia-me mais do que os modelos mecânicos clássicos utilizados na fisiologia. O formalismo matemático da mecânica quântica assusta qualquer mortal e, como não estudei numa universidade particular, a Universidade Lusófona por exemplo, permeável aos jogos corruptos do poder estabelecido depois do 25 de Abril, não tive outra saída a não ser mergulhar de cabeça nesse formalismo matemático. O meu professor de física "massacrou" os meus neurónios com a equação de Schrödinger durante todo o ano lectivo. Confesso que a meio do ano já não suportava ouvir o nome de Schrödinger, que também invadiu as aulas de fisiologia e de biologia molecular. Sempre fui um aluno "massacrado" pelos professores: na física era "massacrado" com a função de onda, na fisiologia e biologia molecular com a natureza e origem da vida, e até na anatomia do sistema nervoso com as experiências do cérebro dividido. Utilizei o termo "massacrado" entre aspas porque, na verdade, o conhecimento não me massacra; pelo contrário, alimenta-me. Este "massacre" mostra até que ponto os cientistas precisam da filosofia: eu era convocado nas aulas e nos gabinetes para pensar as implicações filosóficas das grandes descobertas científicas. Infelizmente, na altura, dominava mais a parte científica do que a parte filosófica dessas descobertas científicas. A minha posição tomada nesse período pode ser resumida deste modo: precisamos de avançar mais no terreno científico antes de tentar solucionar problemas filosóficos. De certo modo, esta é a minha filosofia espontânea de cientista: primeiro, fazer ciência de boa qualidade e, depois, elaborar a filosofia mais adequada a essa ciência. (Doravante, ser "político profissional" significa ser burro diplomado: a experiência profissional que lhes dá - aos políticos profissionais - um diploma é, ela própria, uma fraude!)

Althusser defendeu a seguinte tese: as revoluções científicas - entendidas como rupturas epistemológicas - tendem a preceder as revoluções filosóficas. Esta tese não se aplica ao caso de Marx: a revolução filosófica ocorreu antes da abertura do continente-História à ciência. A tese de Althusser é demasiado complexa para ser aqui discutida em pormenor: o que interessa destacar é que, para Althusser, não podemos falar de rupturas na filosofia, porque nela «nada é radicalmente novo» e «nada é definitivamente resolvido». Em filosofia nada é radicalmente novo porque teorias antigas, retomadas e deslocadas, sobrevivem e revivem numa filosofia nova. Em filosofia nada é definitivamente resolvido porque há sempre o vaivém das tendências antagonistas, as viragens imprevistas, e as mais antigas filosofias estão sempre prontas a voltar ao assalto, disfarçadas sob formas novas, até mesmo sob formas mais revolucionárias. Ora, isso acontece porque a filosofia é, em última análise, luta de classes na teoria. Esta formulação da filosofia choca os ouvidos dos filósofos, mas ela constitui a realidade da filosofia. O que torna a filosofia tão difícil à compreensão dos físicos é precisamente o facto dela ser luta de classes na teoria. Ou por outras palavras: os físicos ainda são demasiado platónicos para compreender que a filosofia não tem idade, na medida em que as suas revoluções estão sempre expostas a ataques, a recuos e retrocessos, e até ao risco da contra-revolução, como sucedeu nas últimas décadas com o triunfo do neoliberalismo sobre o marxismo. A ciência é, actualmente, alvo do ataque de certas filosofias irracionais que parecem derivar de Marx. Convém dizer claramente que Marx nunca definiu a ciência como ideologia. A teoria da ideologia de Marx, ela própria uma descoberta científica, é genial. Quando generalizam o sentido da ideologia, fazendo dela um fenómeno ubíquo, os filósofos da desconstrução aniquiladora têm um único alvo a abater: a própria teoria da ideologia de Marx e a sua defesa da ciência. Mas nós sabemos, pelo menos depois da crise financeira de 2007, que a crítica da ciência é, ela própria, ideológica: as filosofias que criticam a ciência estão contaminadas pela ideologia mais reaccionária produzida pela classe dominante. Os físicos sabem que precisam da ajuda dos filósofos esclarecidos para evitar os erros destes filósofos da desconstrução. A grande linha de demarcação não é tanto entre ciência e metafísica mas entre ciência e ideologia. Esta é a função primordial da filosofia: traçar linhas de demarcação entre o científico e o ideológico. Desgraçadamente, devido à indigência cognitiva predominante, os filósofos não desenvolveram a teoria da ideologia de Marx: a filosofia está condenada a aperfeiçoar essa teoria enquanto intervém na prática científica, no seio da qual ela representa a política. A tese de Althusser permite-me defender outra tese: a mecânica quântica exige uma nova filosofia ou, por outras palavras, a revolução científica em curso só estará concluída quando der origem a uma imensa revolução filosófica. Os físicos estão convencidos de que a epistemologia é a única plataforma que lhes permite estabelecer um diálogo produtivo com os filósofos: eles ainda não compreenderam que a epistemologia sofreu o impacto poderoso da teoria da ideologia de Marx, embora já tenham entendido que a "sociologia" é tão ou mais importante do que a "psicologia". A análise da lição inaugural de Jacques Monod permitiu-me avançar com um modelo crítico. Pretendo agora aperfeiçoá-lo com a análise crítica das obras revolucionárias dos físicos. O facto de já ter estudado a teoria do Big Bang inclina-me a escolher a obra de Steven Weinberg: o objectivo da intervenção filosófica no domínio da física é, em última análise, elaborar uma Filosofia da Natureza. Já existem muitas teorias da realidade propostas pelos próprios físicos, uma das quais é a teoria da ordem implicada de David Bohm. Depois de um longo divórcio, a física regressa ao seio da própria filosofia. Aliás, é muito difícil distinguir entre física teórica e filosofia. Filosofia e Física não são, portanto, duas disciplinas avessas uma à outra: ambas são actividades teóricas que visam acrescentar ao mundo as suas determinações de conhecimento. Da sua cooperação resultará uma nova filosofia da natureza e do próprio conhecimento. 

J Francisco Saraiva de Sousa

2 comentários:

Unknown disse...

Como sempre... perfeito.

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Obrigado, Alfred Jerry! Ando a fazer aproximações a temas muito complexos.