segunda-feira, 11 de fevereiro de 2008

Hannah Arendt e Desobediência Civil

A filosofia política de Hannah Arendt gira em torno da oposição entre a "consciência moral solitária" que prefere estar em desacordo com o mundo, se esse for o preço a pagar para viver em harmonia consigo mesma, e a "ética da responsabilidade" de cada indivíduo por um mundo que partilha com os outros.
Esta oposição ajuda a compreender a sua análise da desobediência civil, levada a cabo num ensaio com o mesmo título. Neste ensaio, integrado na sua obra “Crises of the Republic” (1969), H. Arendt procura apresentar a desobediência civil como um fenómeno político autêntico e positivo, distinto de todos os outros tipos de conflitos com a lei, tais como a criminalidade de direito comum, a violência revolucionária, a objecção de consciência e a resistência passiva.
Ao criticar a moralidade da consciência como falso critério para a compreensão do sentido da desobediência civil, H. Arendt argumenta a favor desta última, encarando-a desde logo como uma das principais formas de participação activa e legal na vida política de um sistema democrático. Ao contrário da moralidade da consciência que representa uma “demissão do mundo político”, a desobediência civil constitui um empenhamento activo no mundo e para o mundo. Por conseguinte, a desobediência civil não pode ser reduzida a uma forma de “objecção de consciência”, porque não se trata de uma oposição do indivíduo à lei da colectividade, mas de um modo fundamental de expressão da própria liberdade política enquanto liberdade individual de participar activamente na res publica. Arendt destaca também que não se trata da simples reivindicação da "liberdade de expressão das opiniões pessoais", mas da reivindicação ao “direito à comunicação”: o direito de tornar público (visível) o ponto de vista minoritário sobre o “mundo comum” ou o direito legítimo de cada opinião participar na construção dessa "comunidade do mundo".
Arendt refere dois movimentos americanos de desobediência civil, o "Movimento dos Direitos Cívicos" contra as leis raciais, e a "recusa do serviço militar obrigatório" durante a guerra do Vietname. Estes movimentos mostraram a necessidade de «encontrar uma fórmula que permita constitucionalizar a desobediência civil», de modo a integrar o reconhecimento jurídico deste modo de acção política que, na sua essência, corresponde ao espírito das leis, no sentido de Montesquieu (lei como reunião). E também permitiram a H. Arendt «desconstruir» o ponto de vista segundo o qual a desobediência civil seria uma negação da lei que rege a sociedade política. Na peugada de Tocqueville que admirava as «associações voluntárias», Arendt mostra que, num regime político onde as decisões são tomadas por maioria, é necessário escutar a voz das minorias, porque, se a sua voz for silenciada, o “princípio da maioria” pode converter-se «no reino sem entraves da maioria», ou na «ditadura da maioria» condenada por Tocqueville.
Socorrendo-se da distinção entre «contrato vertical» e «contrato horizontal», H. Arendt mostra que a desobediência civil não representa uma quebra ou rompimento com o “contrato social” pelo qual o indivíduo se comprometeu a obedecer às leis da sociedade. Pelo contrário, a desobediência civil emana do próprio espírito do “contrato horizontal” e da lei fundamental: a Constituição. Ao contrário do “contrato vertical” que, segundo Hobbes, consiste na submissão da maioria dos indivíduos a uma minoria, o “contrato horizontal” implica que cada indivíduo se comprometa a partilhar o poder com os outros, instituindo assim uma comunidade fundada no “princípio da liberdade entre iguais”. Numa sociedade fundada no contrato horizontal, portanto, democrática, a lei é o resultado de um “debate entre iguais” que conduz a um “acordo”.
Neste debate ou diálogo democrático, cada opinião tem o mesmo “direito de cidadania” e as opiniões minoritárias têm o mesmo direito de serem escutadas que as opiniões maioritárias que prevalecem nas decisões. A "maioria" não é, portanto, um “princípio político” que detenha a “legitimidade” contra a minoria, mas apenas um "instrumento político" necessário para a tomada de decisões. Porém, a partir do momento em que as decisões são tomadas e as leis votadas, a minoria tem o direito de continuar a exprimir publicamente o seu ponto de vista.
Segundo H. Arendt, o “princípio do consenso” implica, por essência, a “legitimidade do dissentimento”. Tanto o “acordo” como o “desacordo” são constitutivos do “princípio do debate”. A ideia de consenso designa a abertura, por princípio, de qualquer consenso empírico ou de facto ao dissentimento ou mesmo à possibilidade de um outro “consenso empírico”, e, por isso, não deve ser identificada com o “consenso de facto”. Este não representa o “consenso de direito” e a maioria e a unanimidade fechada a qualquer dissenção não constituem critérios de legitimidade. Dado a adesão a uma opinião poder ser resultado, não da sua força intrínseca de convicção, mas da força persuasiva que detém pelo simples facto de ser maioritária, a “opinião pública” é, para H. Arendt, a própria negação do debate de opiniões. A partir desta ideia, torna-se possível apresentar o "jornalismo manipulativo" (Habermas) como um dos maiores inimigos da qualidade da democracia e do princípio do diálogo.
Com esta análise subtil, H. Arendt pretende mostrar que a desobediência civil é a expressão de um desacordo antes de ser desobediência: quer dizer que antes de ser uma "questão de obediência ou de submissão", é uma "questão de opinião". O seu principal objectivo é a "publicidade" ou "visibilidade": ao contrário da convicção pessoal, a opinião deve ser partilhada por um grupo de indivíduos e debatida na esfera pública.
Com esta breve análise da argumentação desenvolvida por H. Arendt, podemos referir muito esquematicamente as três características essenciais da desobediência civil.
1. A "publicidade" (visibilidade) é a primeira característica da desobediência civil, a qual revela que o critério da consciência moral (o acordo entre o indivíduo e a sua consciência) não é adequado como critério político: a objecção de consciência transforma-se em desobediência civil, sempre que se faz ouvir no debate público. A desobediência civil não procura afirmar um interesse pessoal, mas sim exprimir um desacordo fundamental que é partilhado com outros indivíduos e, devido a esta publicidade, é distinta dos delitos de direito comum e da objecção de consciência.
2. A segunda característica essencial da desobediência civil é a “não-violência”. Aceita a legitimidade global do sistema jurídico e do sistema político da sociedade a que pertence e, por isso, distingue-se de todos os fenómenos de resistência ou de rebelião, bem como dos movimentos revolucionários. A desobediência civil pode reivindicar o restabelecimento de direitos (considerados) atropelados por certas leis ou decisões novas, ou a integração de novos direitos numa legislação (considerada) deficiente do ponto de vista do espírito da Constituição.
3. A terceira característica da desobediência civil é "partilhar uma opinião com os outros": deseja persuadir os outros de que certas mudanças são necessárias ou de que, pelo contrário, são nefastas, e, neste aspecto, distingue-se do rebelde solitário.
Ora, segundo H. Arendt, a "instância transcendental e imutável" a que recorrem as pessoas e as instituições jurídico-políticas é “indeterminada” e, por isso, ninguém pode reclamar para si o “monopólio da legitimidade”. Na "ausência de um critério absoluto" dado de modo indubitável, é impossível decidir a priori quem detém a legitimidade: o indivíduo ou a lei, a minoria ou a maioria. Daí que a única "referência legítima" só possa ser o "acordo relativamente a uma opinião", não considerado como critério último da legitimidade, mas como acordo empírico aberto à questão da legitimidade da opinião representada.
Comentário adicional: Os países latinos de todo o mundo, em particular os europeus, ao contrário dos países anglófonos, especialmente dos USA e de Inglaterra, bem como dos países nórdicos, procuram impor arbitrariamente o "domínio autoritário da lei", cuja administração é da exclusiva responsabilidade do poder judicial, aliás um poder sem legitimidade democrática, que, em Portugal, está profundamente corrompido e incapaz de administrar uma justiça equitativa para todos os cidadãos, dado ser manipulado e monopolizado, por magistrados destituídos de verdadeira cultura jurídica, em benefício dos mais ricos, portanto, em detrimento dos mais pobres. Contra a corrupção do poder judicial português, torna-se necessário os cidadãos reunirem-se e exigir uma "nova justiça mais equitativa e transparente", recorrendo à desobediência civil.
J Francisco Saraiva de Sousa

21 comentários:

Helena Antunes disse...

Gostei muito deste texto!
Hannah Arendt é mesmo fantástica!

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Bom Dia Helena

Está tudo bem consigo! Já tinha saudades dos seus comentários! Bem-vinda! Felicidades e muita força! :)))

Manuel Rocha disse...

Excelente trabalho !

Há no entanto ali para o fim umas derivações que temos de discutir.

Uma delas são os pressupostos do "contrato" de cidadania.

Ou seja, os meus direitos vão até onde o permite a Constituição que adopto para a sociedade a que quero pertencer, e é dentro dessa faixa que faz sentido a "desobediência civil" para reconduzir o processo politico ao seu quadro de referência.

Tenho algumas reservas é quanto à extensão do direito de usar essa estratégia para alterar o quadro de referência, sobretudo quando o protesto decorre sem que antes quem os seus promotores tenham feito uso dos restantes direitos e deveres de cidadania para fazer ouvir a sua voz.

A desobediência civil de Ghandi não se apoiava em minorias e faz sentido na medida em que promovida por uma sociedade gerida por regras que não escolheu.

Mas em democracia bem ou mal as regras são escrutinadas...

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Estes post prepara o terreno para o comentário de "Prós e Contras" de Hoje à noite! Sim, o desobediência civil tem sido colocada em termos de "minorias" e, concordo, que devemos alargar o seu âmbito de acção a todos os cidadãos. Vou preparar um post sobre a "violência", talvez ajude a esclarecer os problemas que coloca: Poder, Fortaleza e Violência. :)

Helena Antunes disse...

Pois é, ultimamente ando mais afastada da blogosfera. Tenho me dedicado ao meu blogue e pouco mais. Mas confesso que passo quase todos os dias pelo seu blogue, aepnas nem sempre leio tudo nem comento.

Essa sua ideia de escrever sobre poder e violência parece-me interessante!
Fico à espera! :)

Manuel Rocha disse...

Hummm...isso promete...:)))

Mais logo vou escrever sobre "solo"...uma matéria onde haveria imenso lugar à desobediência civil....::))

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Escusado será dizer que aguardo os vossos posts, porque acompanho regularmente os vossos blogues.

Queria tb escrever algo sobre a cidade..., em reacção as teorias de Castells.

Helena Antunes disse...

Escrever sobre a cidade também me parece muito interessante. Castells, Wirth e Park têm boas visões sobre a cidade. Castells é, aliás, um pouco crítico de Wirth, dado que o primeiro tem uma abordagem da cidade com uma dimensão mais económico-política e o segundo uma visão mais cultural da cidade.

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Exacto, Helena

Quando tiver mais tempo, vou postar sobre a cidade e a arquitectura. Tenho sido mais político ultimamente! (rs)
Li o seu post sobre o véu e fiquei a meditar sobre esse assunto. Gostava que a Helena, como socióloga e Mulher, fizesse uma meditação mais profunda sobre isso, até levando em conta a libertação das mulheres. Sabe que gosto de ler os seus posts! :)))

Helena Antunes disse...

Sei que certamente muitas mulheres islâmicas não gostam de usar o véu e fazem-no porque são obrigadas. Aí sou contra.
Mas há quem faz porque realmente quer, por ser um costume/tradição da sua cultura e religião. E quando assim o é, devemos respeitar. E não discriminar. Por isso falei da importância e tolerância para com o multiculturalismo.

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

De acordo, devemos respeitar as diferenças e tolerá-las.
O que me impressiona nisso é o facto desse costume estar associado a outras agressões contra as mulheres, devido a suposto adultério, etc., como se vê no YouTube: cenas terríveis!

E. A. disse...

Muito educativo o seu texto.
A democracia é um sistema em desiquilíbrio permanente, porque da necessária persuasão racional que a acção política exige, resvala-se com muita facilidade para a manipulação; e, como fez referência no seu "comentário adicional", em países mais emotivos, o apelo ao pathos é mais recorrente e acaba por inebriar os cidadãos, ao ponto de se destituírem desta condição no seu sentido pleno. Devemos recuperar os instrumentos que fundaram a democracia: o pensamento livre, a razão, o diálogo, a filosofia.

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Papillon diz: "Devemos recuperar os instrumentos que fundaram a democracia: o pensamento livre, a razão, o diálogo, a filosofia."
Penso ser isso o que fazemos; os outros que nos "sigam", por "contagio filosófico"! :)))

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Ontem vi o "camara clara" (TV2), onde o Quintanilha falava de modo pouco cuidado da democracia ateniense. Penso ser necessário mostrá-la na sua força, sem a "condenar" (sic) por causa dos escravos... Vernant e Finley, entre outros, tratam disso de forma magnífica (cidade, democracia, filosofia e razão/política). :)

E. A. disse...

Eu também vi, aliás vejo sempre que possa.
Claro que sim, de resto, somente num regime livre, mesmo que esta liberdade seja relativa ou confinada a determinados grupos, podem surgir as formas mais elevadas das expressões humanas! Não foi por acaso que o auge de Atenas foi durante o "século de Péricles". A democracia está é em eminente fragilidade, como o grande Platão soube ver... e só sustentada numa "paideia" pode ser um bom regime; de outra maneira, esta invasão maciça de "doxas" definha os espíritos.

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Hummmm... Papillon Profunda

Gostei do conceito: a doxa definha o espírito. Muito giro!
Não tenho o discurso de Péricles ou tenho? Mas logo que tenha mais tempinho vou começar a falar mais dos gregos e de Heidegger, Gadamer, Ricoeur, Levinas, etc. :)

E. A. disse...

Mas eu sou profunda... :)))

Fale sobre o que quiser!

André LF disse...

Texto lúcido, bem escrito e articulado. Estimulou-me a conhecer melhor a obra de Hannah Arendt.

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

André

Hannah Arendt merece o investimento. :)

Marlon Turial disse...

Como sempre, H. Arendt consegue exprimir com maestria os conceitos constitucionais. Desobediência civil, no Brasil, tem sido entendida como caos e baderna, sem resultados positivos, ao contrário, com tragédias e caos. Mas o que se precisa entender é que o sentido de protesto, de movimento social organizado, depende de profundo conhecimento das leis nacionais, e de propostas viaveis para a solução dos problemas, com organização e utilizando ações efetivas que chamem a atenção do poder público com efetividade e discussão.

Marlon Turial disse...

No Brasil, desobediência civil tem sido distorcida, vista como meio de baderna e caos, com ações que geram violência, tragédias e com pouco ou nenhum resultado positivo para a política e a sociedade. Como ensina H. Arendt, o verdadeiro sentido de desobediencia civil deve ser a liberdade de expressar as opinioes com acoes que gerem discussoes com o poder publico e que o levem a rever seus atos e seus conceitos em favor da politica social como um todo.